I-Juca-Pirama
I
No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos — cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d’altiva nação;
...
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes,
Condão de prodígios, de glória e terror!
As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,
As armas quebrando, lançando-as ao rio,
O incenso aspiraram dos seus maracás:
Medrosos das guerras que os fortes acendem,
Custosos tributos ignavos lá rendem,
Aos duros guerreiros sujeitos na paz.
No centro da taba se estende um terreiro,
Onde ora se aduna o concílio guerreiro
Da tribo senhora, das tribos servis:
...
Derramam-se em torno dum índio infeliz.
Quem é? — ninguém sabe: seu nome é ignoto,
Sua tribo não diz: — de um povo remoto
Descende por certo — dum povo gentil;
....
II
O prisioneiro, cuja morte anseiam,
Sentado está,
O prisioneiro, que outro sol no ocaso
Jamais verá!
.....
Que tens, guerreiro? Que temor te assalta
No passo horrendo?
Honra das tabas que nascer te viram,
Folga morrendo.
Folga morrendo; porque além dos Andes
Revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos
Da fria morte.
III
Vem a terreiro o mísero contrário;
Do colo à cinta a muçurana desce:
"Dize-nos quem és, teus feitos canta,
"Ou se mais te apraz, defende-te." Começa
O índio, que ao redor derrama os olhos,
Com triste voz que os ânimos comove.
IV
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Aos golpes do imigo,
Meu último amigo,
Sem lar, sem abrigo
Caiu junto a mi!
O velho no entanto
Sofrendo já tanto
De fome e quebranto,
Só qu’ria morrer!
Não mais me contenho,
Nas matas me embrenho,
Das frechas que tenho
Me quero valer.
Eu era o seu guia
Na noite sombria,
A só alegria
Que Deus lhe deixou:
Em mim se apoiava,
Em mim se firmava,
Em mim descansava,
Que filho lhe sou.
Ao velho coitado
De penas ralado,
Já cego e quebrado,
Que resta? — Morrer.
Enquanto descreve
O giro tão breve
Da vida que teve,
Deixai-me viver!
Não vil, não ignavo,
Mas forte, mas bravo,
Serei vosso escravo:
Aqui virei ter.
Guerreiros, não coro
Do pranto que choro:
Se a vida deploro,
Também sei morrer.
V
Soltai-o! — diz o chefe. Pasma a turba;
Os guerreiros murmuram: mal ouviram,
Nem pode nunca um chefe dar tal ordem!
...
Timbira, diz o índio enternecido,
Solto apenas dos nós que o seguravam:
És um guerreiro ilustre, um grande chefe,
Tu que assim do meu mal te comoveste,
...
— És livre; parte.
— E voltarei.
— Debalde.
— Sim, voltarei, morto meu pai.
— Não voltes!
É bem feliz, se existe, em que não veja,
Que filho tem, qual chora: és livre; parte!
— Acaso tu supões que me acobardo,
Que receio morrer!
— És livre; parte!
— Ora não partirei; quero provar-te
Que um filho dos Tupis vive com honra,
E com honra maior, se acaso o vencem,
Da morte o passo glorioso afronta.
— Mentiste, que um Tupi não chora nunca,
E tu choraste!... parte; não queremos
Com carne vil enfraquecer os fortes.
VI
— Filho meu, onde estás?
— Ao vosso lado;
Aqui vos trago provisões; tomai-as,
As vossas forças restaurai perdidas,
E a caminho, e já!
— Tardaste muito!
Não era nado o sol, quando partiste,
E frouxo o seu calor já sinto agora!
— Sim demorei-me a divagar sem rumo,
Perdi-me nestas matas intrincadas,
Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo;
...
— Mas tu tremes!
— Talvez do afã da caça....
— Oh filho caro!
Um quê misterioso aqui me fala,
Aqui no coração; piedosa fraude
Será por certo, que não mentes nunca!
...
E com mão trêmula, incerta
Procura o filho, tateando as trevas
Da sua noite lúgubre e medonha.
Sentindo o acre odor das frescas tintas,
Uma idéia fatal ocorreu-lhe à mente...
...
Recua aflito e pávido, cobrindo
Às mãos ambas os olhos fulminados,
Como que teme ainda o triste velho
De ver, não mais cruel, porém mais clara,
Daquele exício grande a imagem viva
Ante os olhos do corpo afigurada.
...
— Tu prisioneiro, tu?
— Vós o dissestes.
— Dos índios?
— Sim.
— De que nação?
— Timbiras.
— E a muçurana funeral rompeste,
Dos falsos manitôs quebraste a maça...
— Nada fiz... aqui estou.
— Nada! —
Emudecem;
Curto instante depois prossegue o velho:
— Tu és valente, bem o sei; confessa,
Fizeste-o, certo, ou já não fôras vivo!
— Nada fiz; mas souberam da existência
De um pobre velho, que em mim só vivia....
— E depois?...
— Eis-me aqui.
VII
"Por amor de um triste velho,
Que ao termo fatal já chega,
Vós, guerreiros, concedestes
A vida a um prisioneiro.
Ação tão nobre vos honra,
Nem tão alta cortesia
Vi eu jamais praticada
Entre os Tupis, — e mas foram
Senhores em gentileza.
"Eu porém nunca vencido,
Nem nos combates por armas,
Nem por nobreza nos atos;
Aqui venho, e o filho trago.
Vós o dizeis prisioneiro,
Seja assim como dizeis;
Mandai vir a lenha, o fogo,
A maça do sacrifício
E a muçurana ligeira:
Em tudo o rito se cumpra!
E quando eu for só na terra,
Certo acharei entre os vossos,
Que tão gentis se revelam,
Alguém que meus passos guie;
Alguém, que vendo o meu peito
Coberto de cicatrizes,
Tomando a vez de meu filho,
De haver-me por pai se ufane!"
Mas o chefe dos Timbiras,
Os sobrolhos encrespando,
Ao velho Tupi guerreiro
Responde com tôrvo acento:
— Nada farei do que dizes:
É teu filho imbele e fraco!
Aviltaria o triunfo
Da mais guerreira das tribos
Derramar seu ignóbil sangue:
Ele chorou de cobarde;
Nós outros, fortes Timbiras,
Só de heróis fazemos pasto. —
...
VIII
"Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
...
"Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d’argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sê maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és."
IX
Isto dizendo, o miserando velho
A quem Tupã tamanha dor, tal fado
Já nos confins da vida reservara,
Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias
Da sua noite escura as densas trevas
Palpando. — Alarma! alarma! — O velho pára!
O grito que escutou é voz do filho,
Voz de guerra que ouviu já tantas vezes
Noutra quadra melhor. — Alarma! alarma!
...
Ele que em tanta dor se contivera,
Tomado pelo súbito contraste,
Desfaz-se agora em pranto copioso,
Que o exaurido coração remoça.
...
Era ele, o Tupi; nem fora justo
Que a fama dos Tupis — o nome, a glória,
Aturado labor de tantos anos,
Derradeiro brasão da raça extinta,
De um jacto e por um só se aniquilasse.
— Basta! Clama o chefe dos Timbiras,
— Basta, guerreiro ilustre! Assaz lutaste,
E para o sacrifício é mister forças. —
O guerreiro parou, caiu nos braços
Do velho pai, que o cinge contra o peito,
Com lágrimas de júbilo bradando:
"Este, sim, que é meu filho muito amado!
"E pois que o acho enfim, qual sempre o tive,
"Corram livres as lágrimas que choro,
"Estas lágrimas, sim, que não desonram."
X
Um velho Timbira, coberto de glória,
Guardou a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi!
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Dizia prudente: — "Meninos, eu vi!
"Eu vi o brioso no largo terreiro
Cantar prisioneiro
Seu canto de morte, que nunca esqueci:
Valente, como era, chorou sem ter pejo;
Parece que o vejo,
Que o tenho nest’hora diante de mi.
"Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo!
Pois não, era um bravo;
Valente e brioso, como ele, não vi!
E à fé que vos digo: parece-me encanto
Que quem chorou tanto,
Tivesse a coragem que tinha o Tupi!"
Assim o Timbira, coberto de glória,
Guardava a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi.
E à noite nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Tornava prudente: "Meninos, eu vi!".
QUESTÕES
Trecho I
As tribos vizinhas, sem forças, sem brio[24],
As armas quebrando, lançando-as ao rio,
O incenso aspiraram dos seus maracás:
Medrosos das guerras que os fortes acendem,
Custosos tributos ignavos lá rendem,
Aos duros guerreiros sujeitos na paz[25].
Trecho II
Os outros dois o Capitão teve nas naus, aos quais deu o que já ficou dito, nunca mais aqui apareceram -- fatos de que deduzo que é gente bestial e de pouco saber, e por isso tão esquiva. Mas apesar de tudo isso andam bem curados, e muito limpos. E naquilo ainda mais me convenço que são como aves, ou alimárias montesinhas, as quais o ar faz melhores penas e melhor cabelo que às mansas, porque os seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode ser mais!. ( A carta de Pero Vaz de Caminha)
1. Os trechos pertencem a momentos na história literária brasileira em que o índio aparece como elemento constitutivo de nossa nacionalidade. De que maneira os textos devem ser tomados como distintos?
Leia o trecho abaixo da obra I Juca – pirama para responder ao questionamento proposto.
No centro da taba se estende um terreiro,
Onde ora se aduna o concílio guerreiro
Da tribo senhora, das tribos servis:
Os velhos sentados praticam d’outrora,
E os moços inquietos, que a festa enamora,
Derramam-se em torno dum índio infeliz.
2. Justifique a infelicidade do índio apresentando elementos que estejam presentes no poema.
No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos — cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d’altiva nação;
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão.
São rudos, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, já cantam vitória,
Já meigos atendem à voz do cantor:
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes,
Condão de prodígios, de glória e terror!
As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,
As armas quebrando, lançando-as ao rio,
O incenso aspiraram dos seus maracás:
Medrosos das guerras que os fortes acendem,
Custosos tributos ignavos lá rendem,
Aos duros guerreiros sujeitos na paz.
3. a) O trecho acima apresenta a descrição do grupo que aprisionou ou do grupo a que pertencia Juca-Pirama?
b) Transcreva versos que comprovem a descrição como seguidora do ideal apresentado por Gonçalves Dias na Primeira geração Romântica.
c) O que se poderia entender do verso “ seu nome lá voa na boca das gentes”?
Quem é? — ninguém sabe: seu nome é ignoto,
Sua tribo não diz: — de um povo remoto
Descende por certo — dum povo gentil;
Assim lá na Grécia ao escravo insulano
Tornavam distinto do vil muçulmano
As linhas corretas do nobre perfil.
4. As impressões que os guerreiros tiveram de Juca- Pirama estavam certas? Justifique.
Que tens, guerreiro? Que temor te assalta
No passo horrendo?
Honra das tabas que nascer te viram,
Folga morrendo.
Folga morrendo; porque além dos Andes
Revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos
Da fria morte.
5. a) Qual seria a resposta de Juca – Pirama para a resposta acima?
b) É correto afirmar que o valor apresentado acima difere do nosso modelo social? Justifique.
"Dize-nos quem és, teus feitos canta,
"Ou se mais te apraz, defende-te." Começa
O índio, que ao redor derrama os olhos,
Com triste voz que os ânimos comove.
6. A resposta para esse questionamento constrói o canto IV do poema Juca-Pirama. Releia-o e apresente uma resposta para os questionamentos acima.
"Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
7. Apresente maldições construídas pelo pai para o filho e justifique o motivo das maldições.
Assim o Timbira, coberto de glória,
Guardava a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi.
E à noite nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Tornava prudente: "Meninos, eu vi!".
8. Qual a importância dessa personagem na história?
9. Comente sobre a construção poética presente na Obra.
10. Juca Pirama nos dá uma visão mais próxima do índio, ligado aos seus costumes, convenhamos dizer que ainda é muito idealizado e moldado ao gosto romântico. Apresente elementos do romantismo presentes na construção do índio.
11. Os Modernistas do primeiro tempo do Brasil propõem um manifesto denominado de Antropofágico. É possível assemelhar o ideal desses escritores com a antropofagia proposta em I- Juca- pirama?
12. Em sua segunda viagem ao Brasil, Staden partiu de Castela rumo ao Novo Mundo, alcançando o Brasil a 24 de Novembro. Depois de violentos enfrentamentos com indígenas e passar por fortes tempestades, o seu navio naufragou próximo a São Vicente. Ele e seus companheiros sobreviveram e Staden foi contratado como artilheiro pelos colonos portugueses para o Forte de São Filipe da Bertioga.
Enquanto caçava sozinho, Staden foi feito prisioneiro por uma tribo Tupinambá que o conduziu a Ubatuba. Desde o início ficou claro que a intenção dos seus captores era devorá-lo. Pouco tempo depois, os tupiniquins aliados dos portugueses atacaram a aldeia onde ele era mantido prisioneiro. Mesmo cativo, e não tendo escolha, lutou ao lado dos tupinambás. Seu desejo era tentar fugir para unir-se aos atacantes. Mas, estes, vendo que a luta era inútil, logo desistiram. Foi resgatado pelo navio corsário francês Catherine de Vetteville, comandado por Guillaume Moner, depois de mais de nove meses aprisionado.
Observe um trecho de seu relato:
"Formaram um círculo ao redor de mim, ficando eu no centro com duas mulheres, amarraram-me numa perna um chocalho e na nuca penas de pássaros. Depois começaram as mulheres a cantar e, conforme um som dado, tinha eu de bater no chão o pé onde estavam atados os chocalhos.
As mulheres fazem bebidas. Tomam as raízes de mandioca, que deixam ferver em grandes potes. Quando bem fervidas tiram-nas (...) e deixam esfriar (...) Então as moças assentam-se ao pé, e mastigam as raízes, e o que fica mastigado é posto numa vasilha à parte.
Acreditam na imortalidade da alma(...)."
Observe a imagem:
12. É possível estabelecer uma relação entre o texto de Hans Staden a imagem e o poema I Juca –pirama? Justifique.