domingo, 7 de abril de 2013

Barroco - Capítulo XVII do livro O mundo de Sofia



Gente,
Não há melhor forma de entender o Barroco no seu contexto se não for lendo esse capítulo. Bom proveito!!!!!


CAPÍTULO XVII: O BARROCO
“... da mesma matéria de que são feitos os sonhos...” .
Durante alguns dias, Sofia não teve mais notícias de Alberto, mas procurou por
Hermes no jardim várias vezes ao dia. Dissera à mãe que o cão fora sozinho para casa, e o
seu dono, um velho professor de física, a convidara para tomar café. Ele falara a Sofia
acerca do sistema solar e da nova ciência que nascera no século XVI.
Contou mais a Jorunn. Falou-lhe da sua visita a Alberto, do postal no vão da
escada e da moeda de dez coroas que encontrara no caminho para casa. Mas guardou para
si o sonho com Hilde e a história do crucifixo de ouro.
Na terça-feira, dia 29 de Maio, Sofia estava na cozinha e enxugava a louça,
enquanto a mãe via as notícias na sala de estar. Quando a música de abertura esmoreceu,
Sofia ouviu na cozinha que um major do contingente norueguês da ONU fora morto por
uma granada.
Sofia deixou cair o pano da louça no lava-louça e correu para a sala de estar.
Durante alguns segundos tremeluziu uma fotografia do soldado da ONU na tela - depois, as
notícias continuaram.
- Oh, não! – exclamou Sofia. A sua mãe voltou-se.
- Sim, a guerra é terrível...
Sofia desfez-se em lágrimas.
- Mas, Sofia. Não é assim tão grave.
- Disseram o nome dele?
-Sim... mas já não me recordo. Ele era de Grimstad.
- Isso não é o mesmo que Lillesand?
- Não, estás a brincar?
- Mas quando se é de Grimstad, também se pode ir à escola em Lillesand. Já não
chorava. Por sua vez, a mãe reagiu. Levantou-se e desligou o televisor.
- Mas que excessos são estes, Sofia?
- Ah, nada...
- Sim, tem de haver alguma coisa! Tu tens um namorado, e eu começo a acreditar
que ele é muito mais velho que tu. Responde-me agora: conheces algum homem no
Líbano?
- Não, não é bem isso...
- Conheces o filho de alguém que esteja no Líbano?
- Não, ouve. Eu nem sequer conheço a filha dele!
- De quem é que estás a falar?
- Não tens nada a ver com isso.
- Ah, não?
- Talvez devesse ser antes eu a interrogar. Porque é que o pai nunca está em casa?
Talvez porque vocês sejam demasiado cobardes para se separarem? Terás um namorado do
qual o pai e eu nada sabemos? E assim por diante. Ambas temos as nossas perguntas.
- De qualquer modo, acho que temos de conversar uma com outra.
- Talvez. Mas agora estou tão cansada que prefiro ir para a cama. E além disso,
estou com o período.
Saiu da sala a correr com um nó na garganta.
Mal saíra da casa de banho e se enfiara nos lençóis, a mãe entrou no quarto. Sofia
fingiu que dormia, apesar de saber que a mãe não acreditava. Também sabia que a mãe
sabia que Sofia sabia que ela não acreditava nisso.
No entanto, a mãe fez como se Sofia já estivesse a dormir.
Sentou-se ao canto da cama e acariciou-lhe a cabeça. Sofia pensou como era difícil
levar uma vida dupla. Começava a alegrar-se com o fim do curso de filosofia. Talvez
terminasse até ao dia dos seus anos - ou pelo menos até à noite de S. João, quando o pai de
Hilde regressasse do Líbano...
- Eu queria fazer uma festa no meu aniversário - afirmou então.
- É uma boa idéia. E quem queres convidar?
- Muitas pessoas... posso?
- Claro. Temos um jardim grande. E talvez o bom tempo se mantenha.
- Mas, de preferência, eu gostaria de festejar só na noite de S. João.
- Está bem, então fazemos isso.
- É um dia importante - afirmou Sofia, e não estava a pensar apenas no seu
aniversário.
- Ah...
- Acho que me tornei tão adulta nos últimos tempos.
- Sim, não é bom?
- Não sei.
Sofia mantivera a cabeça enterrada na almofada enquanto falavam. A mãe sondou
então:
- Mas Sofia, tens de me contar porque é que... porque é que agora estás tão
desequilibrada.
- Tu não eras assim com quinze anos?
- Certamente. Mas tu sabes o que quero dizer.
Sofia voltou-se para a mãe.
- O cão chama-se Hermes - afirmou.
- Sim?
-Pertence a um homem chamado Alberto.
- Ahá.
- Ele mora na parte antiga da cidade.
- Foste tão longe atrás do cão?
- Mas não é perigoso.
- Tu disseste que o cão já tinha estado aqui outras vezes.
- Sim!
Sofia tinha de refletir. Ela queria revelar o máximo que lhe era possível, mas não
podia contar tudo.
- Tu quase nunca estás em casa - começou.
- Não, estou muito ocupada.
-Alberto e Hermes já estiveram aqui muitas vezes.
- Mas por quê? Também já estiveram dentro de casa?
- Podes fazer uma pergunta de cada vez? Eles não estiveram na casa. Mas vão
freqüentemente passear no bosque. Achas isso estranho?
- Não, isso não é nada estranho.
- Como todos os outros, passam pelo nosso portão ao passearem. Uma vez em que
eu vinha da escola, Hermes farejava aqui à volta. Foi deste modo que eu conheci o Alberto.
- E quanto ao coelho branco e todas as outras coisas?
- Foi o Alberto que falou nisso. É que ele é um verdadeiro filósofo. Falou-me dos
filósofos
- Assim por cima da vedação do jardim?
- Não, sentamo-nos. Mas ele também me escreveu cartas, bastantes. Por vezes,
vieram pelo correio, outras vezes ele pô-las na nossa caixa do correio ao passar.
- Essas eram então as "cartas de amor" de que falamos.
- Só que não eram cartas de amor.
- Ele só escreveu sobre filósofos?
- Sim, imagina tu. E já aprendi mais com ele do que em oito anos de escola. Já
ouviste falar, por exemplo, de Giordano Bruno, que morreu na fogueira em 1600? Ou da lei
da gravitação de Newton?
- Não, há muita coisa que eu não sei...
- Se bem te conheço, nem sequer sabes por que é que a Terra gira à volta do Sol, e
não o contrário.
- Que idade é que ele tem, aproximadamente?
- Não faço idéia. Pelo menos cinqüenta.
-E o que é que ele tem a ver com o Líbano?
Isso era mais complicado. Sofia pensou em dez respostas possíveis ao mesmo
tempo. Depois escolheu a única que lhe parecia credível:
- O irmão do Alberto é major na ONU. E ele é de Lillesand. Deve ter morado a
certa altura na cabana do major.
-Alberto não é um nome um pouco estranho?
- Talvez.
- Soa a italiano.
- Eu sei. Quase tudo o que é importante vem da Grécia ou da Itália.
- Mas ele fala norueguês?
- Sim, fluentemente.
- Sabes o que acho, Sofia? Acho que devias convidar o Alberto para nossa casa.
Nunca estive com um verdadeiro filósofo.
- Vamos ver.
- Talvez o possamos convidar para a tua grande festa.
É divertido misturar as gerações. E nessa altura, eu podia estar também presente.
Eu poderia servir à mesa. Achas uma boa idéia?
- Sim, se ele quiser. De qualquer modo, é muito mais interessante conversar com
ele do que com os rapazes da minha turma. Mas... nesse caso, todos acharão que o Alberto
é o teu namorado.
- Então, dizes-lhes que isso não é verdade.
- Vamos ver.
- Sim, vamos ver. E Sofia - é verdade que nem tudo foi fácil entre mim e o pai.
Mas eu nunca tive um namorado...
- Agora, quero dormir. Tenho uma dor de barriga horrível.
- Queres uma aspirina?
- Está bem. Quando a mãe voltou com um comprimido e um copo de água, Sofia já
tinha adormecido. O dia 31 de Maio era uma quinta-feira. Sofia esteve preocupada durante
as últimas aulas. Em algumas disciplinas tinha melhorado desde que o curso de Filosofia
começara.
Na maioria das disciplinas estivera sempre entre "bom" e "muito bom"; mas nos
últimos meses tinha conseguido um "muito bom" num trabalho escrito de ciências humanas
e numa composição de casa. Na matemática as coisas não estavam tão bem...
Na última aula, o professor entregou uma composição que tinha corrigido. Sofia
tinha escolhido o tema "O homem e a técnica". Escrevera sobre o Renascimento e o
desenvolvimento científico, sobre a nova visão da natureza, sobre Francis Bacon, que
afirmara "saber é poder", e sobre o novo método científico.
Explicara detalhadamente que o método empírico era mais antigo do que as
invenções técnicas. Escrevera depois o que lhe ocorrera acerca das desvantagens da técnica.
Tudo o que os homens faziam podia resultar no bem ou no mal, escrevera no fim. Bem e
mal eram como um fio branco e um fio preto que se estavam sempre a entrelaçar. Por
vezes, ambos os fios estão tão unidos que é impossível separar um do outro.
Ao entregar as composições, o professor olhou para Sofia e piscou-lhe o olho.
Teve um cinco, e o professor perguntou: - Como é que sabes isso tudo?
Sofia agarrou numa caneta de feltro e escreveu em maiúsculas na folha: "Eu
Estudo Filosofia". Ao fechar o livro de exercícios, algo caiu das páginas do meio. Era um
postal ilustrado do Líbano. Sofia debruçou-se sobre a mesa e leu:
“Querida Hilde: Quando leres isto, já teremos falado ao telefone acerca da trágica
morte ocorrida aqui. Por vezes, pergunto-me se a guerra e a violência não poderiam ser
evitadas se os homens pudessem pensar de outro modo. Talvez o melhor meio contra a
guerra e a violência fosse um pequeno curso de filosofia. Que tal um "Pequeno livro de
filosofia da ONU" - de que cada novo cidadão do mundo receberia um exemplar na língua
materna? Vou expor esta idéia ao secretário-geral.
Ao telefone, contaste que agora já prestas mais atenção às tuas coisas. Isso é bom,
porque és realmente a maior cabeça de vento que eu conheço. Depois, disseste que desde a
nossa última conversa apenas perdeste uma moeda de dez coroas. Farei o possível para te
compensar. Eu estou muito longe de casa, mas ainda tenho uma mão amiga na velha pátria.
(Se encontrar a moeda de dez coroas, junto-a ao teu presente de aniversário).
Beijos do pai, que tem a sensação de já ter iniciado a longa viagem de regresso”.
Sofia acabara de ler o postal quando a aula terminou.
De novo se desencadeou uma forte tempestade de pensamentos na sua mente.
No pátio da escola, Jorunn esperava por ela como sempre.
A caminho de casa, Sofia abriu a sua pasta da escola e mostrou à amiga o postal.
- De quando é o carimbo? - perguntou Jorunn.
- De certeza que é de 15 de Junho...
-Não, espera... aqui está 30-5-1990.
- Isso foi ontem... ou seja, no dia a seguir à tragédia no Líbano.
- Não acredito que um postal leve apenas um dia do Líbano até à Noruega - refletiu
Jorunn.
-Pelo menos não com esta direção: Hilde Mõller Knag, a/c Sofia Amundsen,
Escola Secundária Furulia...
- Achas que veio pelo correio? E o professor meteu-o simplesmente no livro?
-Não faço idéia. E também não sei se me atrevo a perguntar.
Não falaram mais acerca do postal.
- Na noite de S. João, vou fazer uma grande festa no jardim - contou Sofia.
- Com rapazes?
Sofia encolheu os ombros.
- Não precisamos de convidar os mais bobos.
- Mas vais convidar Jõrgen?
- Se quiseres. Talvez convide o Alberto Knox.
- Deves estar doida.
- Eu sei.
Não falaram mais, e separaram-se no supermercado. A primeira coisa que fez
quando chegou a casa foi procurar Hermes no jardim. E nesse dia, ele andava de fato entre
as macieiras.
- Hermes!
O cão ficou parado por um momento. Sofia sabia exatamente o que se iria passar
nesse segundo. O cão ouvira-a chamar, reconhecera a sua voz e decidira verificar se ela
estava ali, e de onde viera o ruído. Só então a descobriu e decidiu correr para ela. As suas
quatro pernas desataram a agitar-se.
Era de fato muito para um só segundo.
Foi ter com ela a correr, abanou a cauda energicamente e saltou para ela.
-Bonito cão, Hermes! Não... não, pára de lamber, estás a ouvir? Senta... assim,
sim!
Sofia abriu a porta de casa. Sherekan surgiu então dos arbustos. O animal estranho
era um pouco sinistro para o gato. Mas Sofia colocou comida no prato dele, pôs sementes
no comedouro dos pássaros, deixou à tartaruga uma folha de alface e escreveu um bilhete à
mãe.
Escreveu que queria levar Hermes para casa e que telefonaria caso não pudesse
estar em casa antes das sete.
Depois, puseram-se a caminho pela cidade. Desta vez, Sofia tinha trazido dinheiro.
Pensou em apanhar o ônibus com Hermes, mas depois se lembrou que Alberto
podia não estar de acordo.
Ao andar atrás de Hermes, começou a pensar no que era um animal. Qual era a
diferença entre um cão e um homem? Ela ainda sabia o que Aristóteles dissera a esse
respeito. Afirmara que homens e animais eram seres vivos com muitas semelhanças
importantes. Mas havia também uma diferença essencial entre um homem e um animal, a
razão.
Como é que ele tinha a certeza desta diferença?
Demócrito, por seu lado, não vira uma grande diferença entre homens e animais,
visto que ambos são compostos por átomos. Também não acreditava que homens ou
animais tivessem almas imortais. Acreditava que a alma era formada por pequenos átomos
que se separavam em todas as direções quando as pessoas morriam. Para ele, a alma do
homem estava indissociavelmente ligada ao cérebro.
Mas como é que a alma podia ser constituída por átomos? É que a alma não podia
ser tocada, ao contrário de todas as outras partes do corpo. Era algo "espiritual".
Tinham atravessado a praça principal e aproximavam-se da parte antiga da cidade.
Quando chegaram ao local onde Sofia encontrara a moeda de dez coroas, o seu olhar
dirigiu-se instintivamente para o chão. E ali – precisamente ali, onde já se inclinara uma
vez para apanhar uma moeda de dez coroas - estava agora, com a fotografia virada para
cima, um postal ilustrado. A fotografia mostrava um jardim com palmeiras e laranjeiras.
Sofia baixou-se e apanhou o postal. Simultaneamente, Hermes começou a rosnar.
Parecia não gostar que Sofia tivesse agarrado no postal.
No postal estava escrito:
“Querida Hilde!
A vida consiste numa cadeia interminável de coincidências. Não é totalmente
inverossímil que as dez coroas que perdeste tenham chegado aqui. Talvez uma senhora
idosa, que esperava pelo ônibus para Kristiansand, a tenha encontrado na praça principal de
Lillesand. Em Kristiansand, apanhou o comboio para visitar os seus netos, e muitas horas
mais tarde pode ter perdido aqui a moeda de dez coroas. Em seguida, é possível que essa
moeda tenha sido apanhada mais tarde por uma moça que precisava de dez coroas para
poder ir para casa de ônibus. Nunca se pode saber, Hilde, mas se foi mesmo assim temos de
nos questionar de fato se não há uma providência divina por trás de tudo.
Beijos do pai que em pensamento já está sentado na doca em Lillesand.
P.S.: Eu bem disse que ia ajudar-te a procurar as dez coroas.”
Como endereço, estava escrito no postal: "Hilde Mõller Knag, a/c de uma
transeunte acidental..." O postal tinha o carimbo do dia 15 de Junho.
Sofia subiu os degraus atrás de Hermes. Quando Alberto abriu a porta, disse:
- Sai do caminho, velhote. Aqui vem o correio!
Ela achava que naquele preciso momento tinha uma boa razão para estar um pouco
irritada. Ele deixou-a entrar. Hermes deitou-se debaixo dos cabides, como na vez anterior.
- O major deixou um novo cartão de visita, minha filha?
Sofia olhou para Alberto. Só então descobriu que ele trazia um traje novo. Reparou
primeiro numa comprida peruca encaracolada.
Além disso, trazia um fato comprido largo com muitas rendas. À volta do pescoço
tinha um vistoso lenço de seda e sobre o fato uma capa vermelha.
Trazia meias brancas e, nos pés, elegantes sapatos de verniz, com laços. No
conjunto, fazia lembrar aqueles quadros representando a corte de Luís XIV que Sofia já
tinha visto.
- Que pavão! - comentou, entregando-lhe o postal.
- Humm... e tu encontraste de fato as dez coroas precisamente no local onde o
postal estava hoje?
- Precisamente ali.
- Ele está cada vez mais atrevido. Mas talvez isto seja bom.
- Porquê?
- Assim será mais fácil desmascará-lo. Esta encenação é realmente empolada e
repugnante. Cheira a perfume barato.
- Perfume?
- Tem um efeito indiscutivelmente elegante, mas é apenas uma brincadeira. Vês
como ele ousa comparar os seus fracos métodos de vigilância com a providência divina?
Ergueu o postal. Depois o rasgou em pedaços tal como o anterior. Para não
perturbar ainda mais o seu estado de espírito, Sofia não mencionou o postal que encontrara
no livro da escola.
- Vamos sentar-nos na sala de estar, cara discípula. Que horas são?
- Quatro.
- Hoje vamos falar sobre o século XVII. Foram para a sala que tinha o teto
inclinado e a clarabóia. Sofia reparou que Alberto substituíra alguns objetos desde a última
vez.
Na mesa via-se um antigo cofre com uma coleção de diversas lentes. Ao lado,
estava um livro aberto. Era muito antigo.
- O que é isto? - perguntou Sofia.
- É uma primeira edição do famoso livro de “René Descartes”, “O Discurso do
Método”. É do ano de 1637 e é um dos meus objetos mais estimados.
- E o cofre... - ... contém uma coleção exclusiva de lentes - ou vidros óticos. Foram
polidos por volta de meados do século XVII pelo filósofo holandês “Espinosa”. Ficaramme
caras, mas também são das minhas preciosidades mais valiosas.
- Eu compreenderia sem dúvida melhor o valor do livro e do cofre se soubesse
alguma coisa sobre Descartes e Espinosa.
-Claro. Mas vamos tentar primeiro familiarizar-nos um pouco com a sua época.
Sentemo-nos.
E sentaram-se como na vez anterior, Sofia numa poltrona grande e Alberto no sofá.
Entre eles estava a mesa com o livro e o cofre. Quando se sentaram, Alberto tirou a peruca
e pô-la na escrivaninha.
- Vamos falar agora sobre o século XVII - ou a época que é designada por
“Barroco”.
- Barroco? Não é um nome estranho?
- A designação "barroco" provém de uma palavra que significa na realidade
"pérola irregular". Típico da arte do Barroco eram as formas exuberantes e com muitos
contrastes, ao contrário da arte do Renascimento, mais simples e harmoniosa. O século
XVII é caracterizado pela tensão entre opostos inconciliáveis.
Por um lado, continuava a haver a visão otimista do mundo como no
Renascimento – por outro, muitos se agarraram ao extremo oposto e levavam uma vida de
recusa do mundo e retiro religioso. Na arte e na vida real encontramos uma ostentação
pomposa de vida.
Simultaneamente, surgiram os movimentos monásticos que renunciavam ao
mundo.
- Palácios imponentes e mosteiros escondidos, portanto.
- Sim, podes dizê-lo assim. Um chavão do Barroco era o provérbio latino "carpe
diem" - que significa: "goza o dia!". Um outro provérbio latino muito evocado diz:
"memento mori" - e significa:
"Recorda que tens de morrer!". Na pintura, o mesmo quadro podia mostrar
simultaneamente uma grande exuberância enquanto num canto inferior estava pintada uma
caveira.
Em muitos aspectos, o Barroco caracteriza-se pela “frivolidade” e a “afetação”,
mas também pela consciência da “efemeridade” de todas as coisas, ou seja, pelo fato de que
tudo o que é belo tem de perecer e decompor-se um dia.
- É verdade, mas é uma idéia triste pensar que nada é estável.
- Nesse caso, pensas exatamente como muitas pessoas no século XVII. No
domínio político, o Barroco também foi a época de grandes conflitos.
Primeiro, a Europa foi devastada por guerras. A mais grave foi a Guerra dos Trinta
Anos, que assolou quase toda a Europa de 1618 a 1648. Na realidade, consistiu em muitas
guerras pequenas, que atingiram principalmente a Alemanha. Como conseqüência da
Guerra dos Trinta Anos, a França tornou-se pouco a pouco a potência dominante na
Europa.
- Porque é que eles combatiam?
- Era principalmente uma guerra entre protestantes e católicos. Mas também se
tratava do poder político.
-Mais ou menos como no Líbano.
- Além disso, o século XVII estava marcado por enormes diferenças de classes.
Com certeza já ouviste falar da nobreza francesa e da corte de Versalhes. Não sei se
também estudaste a miséria do povo. Mas toda a ostentação do luxo assenta sobre a
ostentação do poder. Diz-se que a situação política do Barroco pode ser comparada com a
arte e a arquitetura contemporâneas. Os edifícios do Barroco estavam sobrecarregados de
volutas, estuques e decorações. E a política estava cheia de assassínios, intrigas e tramas.
- Não houve um rei sueco que foi assassinado no teatro nessa altura?
- Estás a pensar em Gustavo III, e tens aí um verdadeiro exemplo daquilo a que me
refiro. O assassínio de Gustavo III deu-se já no ano de 1792, mas em circunstâncias muito
barrocas. Ele foi assassinado num grande baile de máscaras.
- E eu pensava que tinha sido no teatro.
- O baile de máscaras teve lugar na Ópera. O Barroco sueco, no fundo, só terminou
com o assassínio de Gustavo III. Durante o seu reinado dominou o despotismo esclarecido,
mais ou menos como quase cem anos antes com Luís XIV. Além disso, Gustavo III era um
homem muito frívolo, que adorava todas as cerimônias e cortesias francesas. E repara que
também gostava muito de teatro...
- E isso foi-lhe fatal.
- Mas o teatro no Barroco era mais do que uma mera forma artística. Era o símbolo
mais importante da sua época.
- E o que é que simbolizava?
- A vida, Sofia. Não sei quantas vezes se disse durante o século XVII: "A vida é
teatro". Certamente muitas vezes. E foi durante o barroco que surgiu o teatro moderno -
com a sua maquinaria e cenografia. No teatro, punha-se em cena uma ilusão - que era
desmascarada como mera ficção.
Deste modo, o teatro tornou-se a imagem da vida humana em geral. O teatro podia
mostrar que "quanto mais alto é o vôo, maior é a queda", oferecendo uma representação
impiedosa da fragilidade humana.
- “William Shakespeare” viveu no período do Barroco?
- Ele escreveu os seus grandes dramas por volta do ano de 1600. Desse modo, tem
um pé no Renascimento e o outro no Barroco. Mas já em Shakespeare se encontram muitas
reflexões sobre a vida como teatro. Gostarias de ouvir alguns exemplos?
- Sim, muito.
- No drama “As You Like It”, ele afirma:
“O mundo é um palco e todos os homens e mulheres meros atores. Entram e saem
de cena, e cada um representa muitos papéis no seu tempo...”.
E em “Macbeth” diz-se: “A vida é apenas uma sombra inconstante; Um pobre
comediante que se pavoneia e se agita Durante a sua hora em cena, e depois nada mais. Se
ouve dele; é uma história, Contada Por um idiota, cheia de som e de fúria, Que nada
significa.”
- Isso é mesmo pessimista.
- Mas a brevidade da vida preocupou-o. Provavelmente já ouviste a mais famosa
citação de Shakespeare:
- Ser ou não ser - eis a questão.
- Sim, foi Hamlet que o disse. Num dia estamos na terra - no dia seguinte
desaparecemos.
- Obrigada, isso eu já compreendi.
- Quando não comparam a vida com o teatro, os escritores barrocos comparam-na
com um sonho. Já Shakespeare afirmava, por exemplo: "Somos feitos da mesma matéria
que os sonhos, e esta breve vida abrange um sono...".
- Que poético.
- O poeta espanhol “Calderón”, que nasceu por volta de 1600, escreveu um drama
com o título “A vida é sonho”. Aí afirma "O que é a vida? Loucura! O que é a vida? Uma
ilusão, uma sombra, uma ficção. E o maior dos bens tem pouco valor, pois a vida é um
sonho".
- Talvez ele tenha razão.
Nós lemos uma peça na escola. Chamava-se “Jeppe de Bjerget”. - De “Ludvig
Holberg”, sim. Aqui no Norte uma grande figura de transição entre o Barroco e o
Iluminismo. - Jeppe adormece num fosso de estrada... e depois acorda na cama do barão. E
pensa ter sonhado ser apenas um pobre camponês. Depois, é levado de volta para o fosso, a
dormir - e acorda de novo. E acha nessa altura ter sonhado que estivera deitado na cama do
barão.
- Holberg retirou este motivo de Calderón, como Calderón o fizera a partir dos
contos árabes das “Mil e Uma Noites”. Mas a comparação entre vida e sonho é ainda mais
antiga, e encontramo-la inclusivamente na Índia e na China. Já o antigo sábio chinês
“Tchuang Tsu (cerca de 350 a.C.) sonhou uma vez que era uma borboleta e, após ter
acordado perguntou se era um homem que sonhara ser uma borboleta ou uma borboleta que
estava nesse momento a sonhar que era um homem”.
- De qualquer modo, é impossível provar qual está certo.
- Na Noruega tivemos um poeta barroco típico, de nome “Petter Dass”. Viveu
entre 1647 e 1707. Por um lado, queria retratar a vida como é realmente, por outro
sublinhava que apenas Deus é eterno e constante.
- Deus é Deus, mesmo se tudo fosse deserto, Deus é Deus, mesmo se todos
estivessem mortos...
-Mas no mesmo hino ele descreve também a cultura norueguesa - escrevendo
sobre todos os tipos de peixe que se encontram nesta zona. Isso é típico do Barroco. Num
mesmo texto é descrito o terreno, imanente - e o celestial, transcendente. O conjunto pode
fazer-nos lembrar a separação platônica entre o mundo sensível concreto e o mundo
imutável das idéias.
-E a filosofia?
- Também a filosofia era caracterizada por duras lutas entre modos de pensar
contraditórios. Como já ouvimos, para alguns filósofos, a realidade era fundamentalmente
de natureza mental ou espiritual.
Designamos essa perspectiva por “idealismo”. A concepção oposta é o
“materialismo”, uma filosofia que defende que a realidade se reduz a substâncias materiais
concretas. O materialismo também teve no século XVII muitos defensores. O mais
influente talvez tenha sido o filósofo inglês “Thomas Hobbes”. Segundo ele, todos os seres
- logo, também homens e animais - consistem exclusivamente em partículas de matéria.
Mesmo a consciência do homem - ou a alma humana - nasce através do movimento de
partículas minúsculas no cérebro.
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- Então ele pensava o mesmo que Demócrito dois mil anos antes.
- Idealismo e materialismo são como fios condutores através de toda a história da
filosofia. Mas muito raramente as duas concepções surgiram tão claramente numa mesma
época como no Barroco. O materialismo consolidou-se progressivamente através das novas
ciências da natureza.
Newton mostrou que as mesmas leis para o movimento são válidas em todo o
universo, e que as leis da gravitação e dos movimentos dos corpos são responsáveis por
todas as transformações na natureza - tanto na terra como no espaço.
Portanto, tudo é governado com a mesma regularidade constante - ou com a
mesma mecânica. Assim, em princípio, podemos calcular qualquer transformação na
natureza com exatidão matemática. Deste modo, Newton forneceu os últimos elementos
para a chamada “concepção mecanicista do mundo”.
- Ele imaginava o mundo como uma grande máquina?
- Exatamente. O termo "mecânico" provém da palavra grega “mêchanê”, que
significa máquina. Mas devemos ter em atenção que nem Hobbes nem Newton viam uma
contradição entre uma concepção mecanicista do mundo e a crença em Deus. Isto não é
válido para todos os materialistas dos séculos XVIII e XIX. O médico e filósofo francês
“La Mettrie” escreveu em meados do século XVIII um livro com o título “L'homme
machine”.
Significa: "o homem máquina".
Tal como a perna tem músculos para andar, assim o cérebro, escreveu ele, tem
"músculos" para pensar. Posteriormente, o matemático francês “Laplace” exprimiu com o
seguinte pensamento uma concepção mecanicista extrema: se uma inteligência conhecesse
a posição de todas as partículas de matéria num certo momento, nada seria incerto, e tanto o
futuro como o passado seriam evidentes. Estaria "nas cartas" o que haveria de suceder.
Designamos esta concepção por “determinismo”.
- Nesse caso, o homem não pode ter livre arbítrio.
- Não, tudo é produto de processos mecânicos - inclusivamente os nossos
pensamentos e sonhos. No século XIX, materialistas alemães afirmaram que os processos
de pensamento se comportam em relação ao cérebro tal como a urina em relação aos rins e
a bílis em relação ao fígado.
- Mas a urina e a bílis são materiais. Os pensamentos não. - Estás a dizer uma coisa
importante. Posso contar-te uma história que diz o mesmo.
Certa vez, um cosmonauta e um neurocirurgião russos discutiam sobre religião. O
cirurgião era cristão, o cosmonauta não. "Eu já estive várias vezes no espaço", gabava-se o
cosmonauta, "mas não vi nem Deus nem anjos". "E eu já operei muitos cérebros
inteligentes", respondeu o cirurgião, "e também não encontrei em lado algum um único
pensamento".
- O que não significa que os pensamentos não existam.
- Não. Apenas esclarece que os pensamentos são algo completamente diferente de
tudo o que pode ser amputado ou dividido em partes cada vez menores. Por exemplo, não é
fácil remover uma alucinação com uma operação. Um importante filósofo do século XVII,
chamado “Leibniz”, referiu que a grande diferença entre tudo o que é feito de “matéria” e
tudo o que é feito de “espírito” consiste precisamente no fato de a matéria poder ser
dividida em partes cada vez menores. Mas a alma não pode ser cortada em pedaços.
- Pois não, que tipo de faca se usaria?
Alberto abanou a cabeça. Depois, apontou para a mesa entre ambos e afirmou:
- Os dois filósofos mais importantes do século XVII foram Descartes e Espinosa.
Também eles se preocuparam com questões como a relação entre alma e corpo.
Vamos observar mais pormenorizadamente estes filósofos.
- Conta. Mas, se não estivermos despachados até às sete, tenho de telefonar à
minha mãe.

INTERESSADO EM LER A OBRA COMPLETA?


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