Gente,
Não há melhor forma de entender o Barroco no seu contexto se não for lendo esse capítulo. Bom proveito!!!!!
CAPÍTULO XVII: O
BARROCO
“... da mesma
matéria de que são feitos os sonhos...” .
Durante alguns
dias, Sofia não teve mais notícias de Alberto, mas procurou por
Hermes no jardim
várias vezes ao dia. Dissera à mãe que o cão fora sozinho para casa, e o
seu dono, um
velho professor de física, a convidara para tomar café. Ele falara a Sofia
acerca do
sistema solar e da nova ciência que nascera no século XVI.
Contou mais a
Jorunn. Falou-lhe da sua visita a Alberto, do postal no vão da
escada e da
moeda de dez coroas que encontrara no caminho para casa. Mas guardou para
si o sonho com
Hilde e a história do crucifixo de ouro.
Na terça-feira,
dia 29 de Maio, Sofia estava na cozinha e enxugava a louça,
enquanto a mãe
via as notícias na sala de estar. Quando a música de abertura esmoreceu,
Sofia ouviu na
cozinha que um major do contingente norueguês da ONU fora morto por
uma granada.
Sofia deixou
cair o pano da louça no lava-louça e correu para a sala de estar.
Durante alguns
segundos tremeluziu uma fotografia do soldado da ONU na tela - depois, as
notícias
continuaram.
- Oh, não! –
exclamou Sofia. A sua mãe voltou-se.
- Sim, a guerra
é terrível...
Sofia desfez-se
em lágrimas.
- Mas, Sofia.
Não é assim tão grave.
- Disseram o
nome dele?
-Sim... mas já
não me recordo. Ele era de Grimstad.
- Isso não é o
mesmo que Lillesand?
- Não, estás a
brincar?
- Mas quando se
é de Grimstad, também se pode ir à escola em Lillesand. Já não
chorava. Por sua
vez, a mãe reagiu. Levantou-se e desligou o televisor.
- Mas que
excessos são estes, Sofia?
- Ah, nada...
- Sim, tem de
haver alguma coisa! Tu tens um namorado, e eu começo a acreditar
que ele é muito
mais velho que tu. Responde-me agora: conheces algum homem no
Líbano?
- Não, não é bem
isso...
- Conheces o
filho de alguém que esteja no Líbano?
- Não, ouve. Eu
nem sequer conheço a filha dele!
- De quem é que
estás a falar?
- Não tens nada
a ver com isso.
- Ah, não?
- Talvez devesse
ser antes eu a interrogar. Porque é que o pai nunca está em casa?
Talvez porque
vocês sejam demasiado cobardes para se separarem? Terás um namorado do
qual o pai e eu
nada sabemos? E assim por diante. Ambas temos as nossas perguntas.
- De qualquer
modo, acho que temos de conversar uma com outra.
- Talvez. Mas
agora estou tão cansada que prefiro ir para a cama. E além disso,
estou com o
período.
Saiu da sala a
correr com um nó na garganta.
Mal saíra da
casa de banho e se enfiara nos lençóis, a mãe entrou no quarto. Sofia
fingiu que
dormia, apesar de saber que a mãe não acreditava. Também sabia que a mãe
sabia que Sofia
sabia que ela não acreditava nisso.
No entanto, a
mãe fez como se Sofia já estivesse a dormir.
Sentou-se ao
canto da cama e acariciou-lhe a cabeça. Sofia pensou como era difícil
levar uma vida
dupla. Começava a alegrar-se com o fim do curso de filosofia. Talvez
terminasse até
ao dia dos seus anos - ou pelo menos até à noite de S. João, quando o pai de
Hilde
regressasse do Líbano...
- Eu queria
fazer uma festa no meu aniversário - afirmou então.
- É uma boa
idéia. E quem queres convidar?
- Muitas
pessoas... posso?
- Claro. Temos
um jardim grande. E talvez o bom tempo se mantenha.
- Mas, de
preferência, eu gostaria de festejar só na noite de S. João.
- Está bem,
então fazemos isso.
- É um dia
importante - afirmou Sofia, e não estava a pensar apenas no seu
aniversário.
- Ah...
- Acho que me
tornei tão adulta nos últimos tempos.
- Sim, não é
bom?
- Não sei.
Sofia mantivera
a cabeça enterrada na almofada enquanto falavam. A mãe sondou
então:
- Mas Sofia,
tens de me contar porque é que... porque é que agora estás tão
desequilibrada.
- Tu não eras
assim com quinze anos?
- Certamente.
Mas tu sabes o que quero dizer.
Sofia voltou-se
para a mãe.
- O cão chama-se
Hermes - afirmou.
- Sim?
-Pertence a um
homem chamado Alberto.
- Ahá.
- Ele mora na
parte antiga da cidade.
- Foste tão
longe atrás do cão?
- Mas não é
perigoso.
- Tu disseste
que o cão já tinha estado aqui outras vezes.
- Sim!
Sofia tinha de
refletir. Ela queria revelar o máximo que lhe era possível, mas não
podia contar
tudo.
- Tu quase nunca
estás em casa - começou.
- Não, estou
muito ocupada.
-Alberto e
Hermes já estiveram aqui muitas vezes.
- Mas por quê?
Também já estiveram dentro de casa?
- Podes fazer
uma pergunta de cada vez? Eles não estiveram na casa. Mas vão
freqüentemente
passear no bosque. Achas isso estranho?
- Não, isso não
é nada estranho.
- Como todos os
outros, passam pelo nosso portão ao passearem. Uma vez em que
eu vinha da
escola, Hermes farejava aqui à volta. Foi deste modo que eu conheci o Alberto.
- E quanto ao
coelho branco e todas as outras coisas?
- Foi o Alberto
que falou nisso. É que ele é um verdadeiro filósofo. Falou-me dos
filósofos
- Assim por cima
da vedação do jardim?
- Não,
sentamo-nos. Mas ele também me escreveu cartas, bastantes. Por vezes,
vieram pelo
correio, outras vezes ele pô-las na nossa caixa do correio ao passar.
- Essas eram
então as "cartas de amor" de que falamos.
- Só que não
eram cartas de amor.
- Ele só
escreveu sobre filósofos?
- Sim, imagina
tu. E já aprendi mais com ele do que em oito anos de escola. Já
ouviste falar,
por exemplo, de Giordano Bruno, que morreu na fogueira em 1600? Ou da lei
da gravitação de
Newton?
- Não, há muita
coisa que eu não sei...
- Se bem te
conheço, nem sequer sabes por que é que a Terra gira à volta do Sol, e
não o contrário.
- Que idade é
que ele tem, aproximadamente?
- Não faço
idéia. Pelo menos cinqüenta.
-E o que é que
ele tem a ver com o Líbano?
Isso era mais
complicado. Sofia pensou em dez respostas possíveis ao mesmo
tempo. Depois
escolheu a única que lhe parecia credível:
- O irmão do
Alberto é major na ONU. E ele é de Lillesand. Deve ter morado a
certa altura na
cabana do major.
-Alberto não é
um nome um pouco estranho?
- Talvez.
- Soa a
italiano.
- Eu sei. Quase
tudo o que é importante vem da Grécia ou da Itália.
- Mas ele fala
norueguês?
- Sim,
fluentemente.
- Sabes o que
acho, Sofia? Acho que devias convidar o Alberto para nossa casa.
Nunca estive com
um verdadeiro filósofo.
- Vamos ver.
- Talvez o possamos
convidar para a tua grande festa.
É divertido
misturar as gerações. E nessa altura, eu podia estar também presente.
Eu poderia
servir à mesa. Achas uma boa idéia?
- Sim, se ele
quiser. De qualquer modo, é muito mais interessante conversar com
ele do que com
os rapazes da minha turma. Mas... nesse caso, todos acharão que o Alberto
é o teu
namorado.
- Então,
dizes-lhes que isso não é verdade.
- Vamos ver.
- Sim, vamos
ver. E Sofia - é verdade que nem tudo foi fácil entre mim e o pai.
Mas eu nunca
tive um namorado...
- Agora, quero
dormir. Tenho uma dor de barriga horrível.
- Queres uma
aspirina?
- Está bem.
Quando a mãe voltou com um comprimido e um copo de água, Sofia já
tinha
adormecido. O dia 31 de Maio era uma quinta-feira. Sofia esteve preocupada durante
as últimas
aulas. Em algumas disciplinas tinha melhorado desde que o curso de Filosofia
começara.
Na maioria das
disciplinas estivera sempre entre "bom" e "muito bom"; mas
nos
últimos meses
tinha conseguido um "muito bom" num trabalho escrito de ciências
humanas
e numa
composição de casa. Na matemática as coisas não estavam tão bem...
Na última aula,
o professor entregou uma composição que tinha corrigido. Sofia
tinha escolhido
o tema "O homem e a técnica". Escrevera sobre o Renascimento e o
desenvolvimento
científico, sobre a nova visão da natureza, sobre Francis Bacon, que
afirmara
"saber é poder", e sobre o novo método científico.
Explicara
detalhadamente que o método empírico era mais antigo do que as
invenções
técnicas. Escrevera depois o que lhe ocorrera acerca das desvantagens da
técnica.
Tudo o que os
homens faziam podia resultar no bem ou no mal, escrevera no fim. Bem e
mal eram como um
fio branco e um fio preto que se estavam sempre a entrelaçar. Por
vezes, ambos os
fios estão tão unidos que é impossível separar um do outro.
Ao entregar as
composições, o professor olhou para Sofia e piscou-lhe o olho.
Teve um cinco, e
o professor perguntou: - Como é que sabes isso tudo?
Sofia agarrou
numa caneta de feltro e escreveu em maiúsculas na folha: "Eu
Estudo
Filosofia". Ao fechar o livro de exercícios, algo caiu das páginas do
meio. Era um
postal ilustrado
do Líbano. Sofia debruçou-se sobre a mesa e leu:
“Querida Hilde:
Quando leres isto, já teremos falado ao telefone acerca da trágica
morte ocorrida
aqui. Por vezes, pergunto-me se a guerra e a violência não poderiam ser
evitadas se os
homens pudessem pensar de outro modo. Talvez o melhor meio contra a
guerra e a
violência fosse um pequeno curso de filosofia. Que tal um "Pequeno livro
de
filosofia da
ONU" - de que cada novo cidadão do mundo receberia um exemplar na língua
materna? Vou
expor esta idéia ao secretário-geral.
Ao telefone,
contaste que agora já prestas mais atenção às tuas coisas. Isso é bom,
porque és
realmente a maior cabeça de vento que eu conheço. Depois, disseste que desde a
nossa última
conversa apenas perdeste uma moeda de dez coroas. Farei o possível para te
compensar. Eu
estou muito longe de casa, mas ainda tenho uma mão amiga na velha pátria.
(Se encontrar a
moeda de dez coroas, junto-a ao teu presente de aniversário).
Beijos do pai,
que tem a sensação de já ter iniciado a longa viagem de regresso”.
Sofia acabara de
ler o postal quando a aula terminou.
De novo se
desencadeou uma forte tempestade de pensamentos na sua mente.
No pátio da escola,
Jorunn esperava por ela como sempre.
A caminho de
casa, Sofia abriu a sua pasta da escola e mostrou à amiga o postal.
- De quando é o
carimbo? - perguntou Jorunn.
- De certeza que
é de 15 de Junho...
-Não, espera...
aqui está 30-5-1990.
- Isso foi ontem...
ou seja, no dia a seguir à tragédia no Líbano.
- Não acredito
que um postal leve apenas um dia do Líbano até à Noruega - refletiu
Jorunn.
-Pelo menos não
com esta direção: Hilde Mõller Knag, a/c Sofia Amundsen,
Escola
Secundária Furulia...
- Achas que veio
pelo correio? E o professor meteu-o simplesmente no livro?
-Não faço idéia.
E também não sei se me atrevo a perguntar.
Não falaram mais
acerca do postal.
- Na noite de S.
João, vou fazer uma grande festa no jardim - contou Sofia.
- Com rapazes?
Sofia encolheu
os ombros.
- Não precisamos
de convidar os mais bobos.
- Mas vais
convidar Jõrgen?
- Se quiseres.
Talvez convide o Alberto Knox.
- Deves estar
doida.
- Eu sei.
Não falaram
mais, e separaram-se no supermercado. A primeira coisa que fez
quando chegou a
casa foi procurar Hermes no jardim. E nesse dia, ele andava de fato entre
as macieiras.
- Hermes!
O cão ficou
parado por um momento. Sofia sabia exatamente o que se iria passar
nesse segundo. O
cão ouvira-a chamar, reconhecera a sua voz e decidira verificar se ela
estava ali, e de
onde viera o ruído. Só então a descobriu e decidiu correr para ela. As suas
quatro pernas
desataram a agitar-se.
Era de fato
muito para um só segundo.
Foi ter com ela
a correr, abanou a cauda energicamente e saltou para ela.
-Bonito cão,
Hermes! Não... não, pára de lamber, estás a ouvir? Senta... assim,
sim!
Sofia abriu a
porta de casa. Sherekan surgiu então dos arbustos. O animal estranho
era um pouco
sinistro para o gato. Mas Sofia colocou comida no prato dele, pôs sementes
no comedouro dos
pássaros, deixou à tartaruga uma folha de alface e escreveu um bilhete à
mãe.
Escreveu que
queria levar Hermes para casa e que telefonaria caso não pudesse
estar em casa
antes das sete.
Depois,
puseram-se a caminho pela cidade. Desta vez, Sofia tinha trazido dinheiro.
Pensou em
apanhar o ônibus com Hermes, mas depois se lembrou que Alberto
podia não estar
de acordo.
Ao andar atrás
de Hermes, começou a pensar no que era um animal. Qual era a
diferença entre
um cão e um homem? Ela ainda sabia o que Aristóteles dissera a esse
respeito.
Afirmara que homens e animais eram seres vivos com muitas semelhanças
importantes. Mas
havia também uma diferença essencial entre um homem e um animal, a
razão.
Como é que ele
tinha a certeza desta diferença?
Demócrito, por
seu lado, não vira uma grande diferença entre homens e animais,
visto que ambos
são compostos por átomos. Também não acreditava que homens ou
animais tivessem
almas imortais. Acreditava que a alma era formada por pequenos átomos
que se separavam
em todas as direções quando as pessoas morriam. Para ele, a alma do
homem estava
indissociavelmente ligada ao cérebro.
Mas como é que a
alma podia ser constituída por átomos? É que a alma não podia
ser tocada, ao
contrário de todas as outras partes do corpo. Era algo "espiritual".
Tinham
atravessado a praça principal e aproximavam-se da parte antiga da cidade.
Quando chegaram
ao local onde Sofia encontrara a moeda de dez coroas, o seu olhar
dirigiu-se
instintivamente para o chão. E ali – precisamente ali, onde já se inclinara uma
vez para apanhar
uma moeda de dez coroas - estava agora, com a fotografia virada para
cima, um postal
ilustrado. A fotografia mostrava um jardim com palmeiras e laranjeiras.
Sofia baixou-se
e apanhou o postal. Simultaneamente, Hermes começou a rosnar.
Parecia não
gostar que Sofia tivesse agarrado no postal.
No postal estava
escrito:
“Querida Hilde!
A vida consiste
numa cadeia interminável de coincidências. Não é totalmente
inverossímil que
as dez coroas que perdeste tenham chegado aqui. Talvez uma senhora
idosa, que
esperava pelo ônibus para Kristiansand, a tenha encontrado na praça principal
de
Lillesand. Em
Kristiansand, apanhou o comboio para visitar os seus netos, e muitas horas
mais tarde pode
ter perdido aqui a moeda de dez coroas. Em seguida, é possível que essa
moeda tenha sido
apanhada mais tarde por uma moça que precisava de dez coroas para
poder ir para
casa de ônibus. Nunca se pode saber, Hilde, mas se foi mesmo assim temos de
nos questionar
de fato se não há uma providência divina por trás de tudo.
Beijos do pai
que em pensamento já está sentado na doca em Lillesand.
P.S.: Eu bem
disse que ia ajudar-te a procurar as dez coroas.”
Como endereço,
estava escrito no postal: "Hilde Mõller Knag, a/c de uma
transeunte
acidental..." O postal tinha o carimbo do dia 15 de Junho.
Sofia subiu os
degraus atrás de Hermes. Quando Alberto abriu a porta, disse:
- Sai do
caminho, velhote. Aqui vem o correio!
Ela achava que
naquele preciso momento tinha uma boa razão para estar um pouco
irritada. Ele
deixou-a entrar. Hermes deitou-se debaixo dos cabides, como na vez anterior.
- O major deixou
um novo cartão de visita, minha filha?
Sofia olhou para
Alberto. Só então descobriu que ele trazia um traje novo. Reparou
primeiro numa
comprida peruca encaracolada.
Além disso,
trazia um fato comprido largo com muitas rendas. À volta do pescoço
tinha um vistoso
lenço de seda e sobre o fato uma capa vermelha.
Trazia meias
brancas e, nos pés, elegantes sapatos de verniz, com laços. No
conjunto, fazia
lembrar aqueles quadros representando a corte de Luís XIV que Sofia já
tinha visto.
- Que pavão! -
comentou, entregando-lhe o postal.
- Humm... e tu
encontraste de fato as dez coroas precisamente no local onde o
postal estava
hoje?
- Precisamente
ali.
- Ele está cada
vez mais atrevido. Mas talvez isto seja bom.
- Porquê?
- Assim será
mais fácil desmascará-lo. Esta encenação é realmente empolada e
repugnante.
Cheira a perfume barato.
- Perfume?
- Tem um efeito
indiscutivelmente elegante, mas é apenas uma brincadeira. Vês
como ele ousa
comparar os seus fracos métodos de vigilância com a providência divina?
Ergueu o postal.
Depois o rasgou em pedaços tal como o anterior. Para não
perturbar ainda
mais o seu estado de espírito, Sofia não mencionou o postal que encontrara
no livro da
escola.
- Vamos
sentar-nos na sala de estar, cara discípula. Que horas são?
- Quatro.
- Hoje vamos
falar sobre o século XVII. Foram para a sala que tinha o teto
inclinado e a
clarabóia. Sofia reparou que Alberto substituíra alguns objetos desde a última
vez.
Na mesa via-se
um antigo cofre com uma coleção de diversas lentes. Ao lado,
estava um livro
aberto. Era muito antigo.
- O que é isto?
- perguntou Sofia.
- É uma primeira
edição do famoso livro de “René Descartes”, “O Discurso do
Método”. É do
ano de 1637 e é um dos meus objetos mais estimados.
- E o cofre... -
... contém uma coleção exclusiva de lentes - ou vidros óticos. Foram
polidos por
volta de meados do século XVII pelo filósofo holandês “Espinosa”. Ficaramme
caras, mas
também são das minhas preciosidades mais valiosas.
- Eu
compreenderia sem dúvida melhor o valor do livro e do cofre se soubesse
alguma coisa
sobre Descartes e Espinosa.
-Claro. Mas
vamos tentar primeiro familiarizar-nos um pouco com a sua época.
Sentemo-nos.
E sentaram-se
como na vez anterior, Sofia numa poltrona grande e Alberto no sofá.
Entre eles
estava a mesa com o livro e o cofre. Quando se sentaram, Alberto tirou a peruca
e pô-la na
escrivaninha.
- Vamos falar
agora sobre o século XVII - ou a época que é designada por
“Barroco”.
- Barroco? Não é
um nome estranho?
- A designação
"barroco" provém de uma palavra que significa na realidade
"pérola
irregular". Típico da arte do Barroco eram as formas exuberantes e com
muitos
contrastes, ao
contrário da arte do Renascimento, mais simples e harmoniosa. O século
XVII é
caracterizado pela tensão entre opostos inconciliáveis.
Por um lado,
continuava a haver a visão otimista do mundo como no
Renascimento –
por outro, muitos se agarraram ao extremo oposto e levavam uma vida de
recusa do mundo
e retiro religioso. Na arte e na vida real encontramos uma ostentação
pomposa de vida.
Simultaneamente,
surgiram os movimentos monásticos que renunciavam ao
mundo.
- Palácios
imponentes e mosteiros escondidos, portanto.
- Sim, podes
dizê-lo assim. Um chavão do Barroco era o provérbio latino "carpe
diem" - que
significa: "goza o dia!". Um outro provérbio latino muito evocado
diz:
"memento
mori" - e significa:
"Recorda
que tens de morrer!". Na pintura, o mesmo quadro podia mostrar
simultaneamente
uma grande exuberância enquanto num canto inferior estava pintada uma
caveira.
Em muitos
aspectos, o Barroco caracteriza-se pela “frivolidade” e a “afetação”,
mas também pela
consciência da “efemeridade” de todas as coisas, ou seja, pelo fato de que
tudo o que é
belo tem de perecer e decompor-se um dia.
- É verdade, mas
é uma idéia triste pensar que nada é estável.
- Nesse caso,
pensas exatamente como muitas pessoas no século XVII. No
domínio
político, o Barroco também foi a época de grandes conflitos.
Primeiro, a
Europa foi devastada por guerras. A mais grave foi a Guerra dos Trinta
Anos, que
assolou quase toda a Europa de 1618 a 1648. Na realidade, consistiu em muitas
guerras
pequenas, que atingiram principalmente a Alemanha. Como conseqüência da
Guerra dos
Trinta Anos, a França tornou-se pouco a pouco a potência dominante na
Europa.
- Porque é que
eles combatiam?
- Era
principalmente uma guerra entre protestantes e católicos. Mas também se
tratava do poder
político.
-Mais ou menos
como no Líbano.
- Além disso, o
século XVII estava marcado por enormes diferenças de classes.
Com certeza já
ouviste falar da nobreza francesa e da corte de Versalhes. Não sei se
também estudaste
a miséria do povo. Mas toda a ostentação do luxo assenta sobre a
ostentação do
poder. Diz-se que a situação política do Barroco pode ser comparada com a
arte e a
arquitetura contemporâneas. Os edifícios do Barroco estavam sobrecarregados de
volutas,
estuques e decorações. E a política estava cheia de assassínios, intrigas e
tramas.
- Não houve um
rei sueco que foi assassinado no teatro nessa altura?
- Estás a pensar
em Gustavo III, e tens aí um verdadeiro exemplo daquilo a que me
refiro. O
assassínio de Gustavo III deu-se já no ano de 1792, mas em circunstâncias muito
barrocas. Ele foi
assassinado num grande baile de máscaras.
- E eu pensava
que tinha sido no teatro.
- O baile de
máscaras teve lugar na Ópera. O Barroco sueco, no fundo, só terminou
com o assassínio
de Gustavo III. Durante o seu reinado dominou o despotismo esclarecido,
mais ou menos
como quase cem anos antes com Luís XIV. Além disso, Gustavo III era um
homem muito
frívolo, que adorava todas as cerimônias e cortesias francesas. E repara que
também gostava
muito de teatro...
- E isso foi-lhe
fatal.
- Mas o teatro
no Barroco era mais do que uma mera forma artística. Era o símbolo
mais importante
da sua época.
- E o que é que
simbolizava?
- A vida, Sofia.
Não sei quantas vezes se disse durante o século XVII: "A vida é
teatro".
Certamente muitas vezes. E foi durante o barroco que surgiu o teatro moderno -
com a sua
maquinaria e cenografia. No teatro, punha-se em cena uma ilusão - que era
desmascarada
como mera ficção.
Deste modo, o
teatro tornou-se a imagem da vida humana em geral. O teatro podia
mostrar que
"quanto mais alto é o vôo, maior é a queda", oferecendo uma
representação
impiedosa da
fragilidade humana.
- “William
Shakespeare” viveu no período do Barroco?
- Ele escreveu
os seus grandes dramas por volta do ano de 1600. Desse modo, tem
um pé no
Renascimento e o outro no Barroco. Mas já em Shakespeare se encontram muitas
reflexões sobre
a vida como teatro. Gostarias de ouvir alguns exemplos?
- Sim, muito.
- No drama “As
You Like It”, ele afirma:
“O mundo é um
palco e todos os homens e mulheres meros atores. Entram e saem
de cena, e cada
um representa muitos papéis no seu tempo...”.
E em “Macbeth”
diz-se: “A vida é apenas uma sombra inconstante; Um pobre
comediante que
se pavoneia e se agita Durante a sua hora em cena, e depois nada mais. Se
ouve dele; é uma
história, Contada Por um idiota, cheia de som e de fúria, Que nada
significa.”
- Isso é mesmo
pessimista.
- Mas a
brevidade da vida preocupou-o. Provavelmente já ouviste a mais famosa
citação de
Shakespeare:
- Ser ou não ser
- eis a questão.
- Sim, foi
Hamlet que o disse. Num dia estamos na terra - no dia seguinte
desaparecemos.
- Obrigada, isso
eu já compreendi.
- Quando não
comparam a vida com o teatro, os escritores barrocos comparam-na
com um sonho. Já
Shakespeare afirmava, por exemplo: "Somos feitos da mesma matéria
que os sonhos, e
esta breve vida abrange um sono...".
- Que poético.
- O poeta
espanhol “Calderón”, que nasceu por volta de 1600, escreveu um drama
com o título “A
vida é sonho”. Aí afirma "O que é a vida? Loucura! O que é a vida? Uma
ilusão, uma
sombra, uma ficção. E o maior dos bens tem pouco valor, pois a vida é um
sonho".
- Talvez ele
tenha razão.
Nós lemos uma
peça na escola. Chamava-se “Jeppe de Bjerget”. - De “Ludvig
Holberg”, sim.
Aqui no Norte uma grande figura de transição entre o Barroco e o
Iluminismo. -
Jeppe adormece num fosso de estrada... e depois acorda na cama do barão. E
pensa ter
sonhado ser apenas um pobre camponês. Depois, é levado de volta para o fosso, a
dormir - e
acorda de novo. E acha nessa altura ter sonhado que estivera deitado na cama do
barão.
- Holberg
retirou este motivo de Calderón, como Calderón o fizera a partir dos
contos árabes
das “Mil e Uma Noites”. Mas a comparação entre vida e sonho é ainda mais
antiga, e
encontramo-la inclusivamente na Índia e na China. Já o antigo sábio chinês
“Tchuang Tsu
(cerca de 350 a.C.) sonhou uma vez que era uma borboleta e, após ter
acordado
perguntou se era um homem que sonhara ser uma borboleta ou uma borboleta que
estava nesse
momento a sonhar que era um homem”.
- De qualquer
modo, é impossível provar qual está certo.
- Na Noruega
tivemos um poeta barroco típico, de nome “Petter Dass”. Viveu
entre 1647 e
1707. Por um lado, queria retratar a vida como é realmente, por outro
sublinhava que
apenas Deus é eterno e constante.
- Deus é Deus,
mesmo se tudo fosse deserto, Deus é Deus, mesmo se todos
estivessem
mortos...
-Mas no mesmo
hino ele descreve também a cultura norueguesa - escrevendo
sobre todos os
tipos de peixe que se encontram nesta zona. Isso é típico do Barroco. Num
mesmo texto é
descrito o terreno, imanente - e o celestial, transcendente. O conjunto pode
fazer-nos
lembrar a separação platônica entre o mundo sensível concreto e o mundo
imutável das
idéias.
-E a filosofia?
- Também a
filosofia era caracterizada por duras lutas entre modos de pensar
contraditórios.
Como já ouvimos, para alguns filósofos, a realidade era fundamentalmente
de natureza
mental ou espiritual.
Designamos essa
perspectiva por “idealismo”. A concepção oposta é o
“materialismo”,
uma filosofia que defende que a realidade se reduz a substâncias materiais
concretas. O
materialismo também teve no século XVII muitos defensores. O mais
influente talvez
tenha sido o filósofo inglês “Thomas Hobbes”. Segundo ele, todos os seres
- logo, também
homens e animais - consistem exclusivamente em partículas de matéria.
Mesmo a
consciência do homem - ou a alma humana - nasce através do movimento de
partículas
minúsculas no cérebro.
152
- Então ele
pensava o mesmo que Demócrito dois mil anos antes.
- Idealismo e
materialismo são como fios condutores através de toda a história da
filosofia. Mas
muito raramente as duas concepções surgiram tão claramente numa mesma
época como no
Barroco. O materialismo consolidou-se progressivamente através das novas
ciências da
natureza.
Newton mostrou
que as mesmas leis para o movimento são válidas em todo o
universo, e que
as leis da gravitação e dos movimentos dos corpos são responsáveis por
todas as
transformações na natureza - tanto na terra como no espaço.
Portanto, tudo é
governado com a mesma regularidade constante - ou com a
mesma mecânica.
Assim, em princípio, podemos calcular qualquer transformação na
natureza com
exatidão matemática. Deste modo, Newton forneceu os últimos elementos
para a chamada
“concepção mecanicista do mundo”.
- Ele imaginava
o mundo como uma grande máquina?
- Exatamente. O
termo "mecânico" provém da palavra grega “mêchanê”, que
significa
máquina. Mas devemos ter em atenção que nem Hobbes nem Newton viam uma
contradição
entre uma concepção mecanicista do mundo e a crença em Deus. Isto não é
válido para
todos os materialistas dos séculos XVIII e XIX. O médico e filósofo francês
“La Mettrie”
escreveu em meados do século XVIII um livro com o título “L'homme
machine”.
Significa:
"o homem máquina".
Tal como a perna
tem músculos para andar, assim o cérebro, escreveu ele, tem
"músculos"
para pensar. Posteriormente, o matemático francês “Laplace” exprimiu com o
seguinte
pensamento uma concepção mecanicista extrema: se uma inteligência conhecesse
a posição de
todas as partículas de matéria num certo momento, nada seria incerto, e tanto o
futuro como o
passado seriam evidentes. Estaria "nas cartas" o que haveria de
suceder.
Designamos esta
concepção por “determinismo”.
- Nesse caso, o
homem não pode ter livre arbítrio.
- Não, tudo é
produto de processos mecânicos - inclusivamente os nossos
pensamentos e
sonhos. No século XIX, materialistas alemães afirmaram que os processos
de pensamento se
comportam em relação ao cérebro tal como a urina em relação aos rins e
a bílis em
relação ao fígado.
- Mas a urina e
a bílis são materiais. Os pensamentos não. - Estás a dizer uma coisa
importante.
Posso contar-te uma história que diz o mesmo.
Certa vez, um
cosmonauta e um neurocirurgião russos discutiam sobre religião. O
cirurgião era
cristão, o cosmonauta não. "Eu já estive várias vezes no espaço",
gabava-se o
cosmonauta,
"mas não vi nem Deus nem anjos". "E eu já operei muitos cérebros
inteligentes",
respondeu o cirurgião, "e também não encontrei em lado algum um único
pensamento".
- O que não
significa que os pensamentos não existam.
- Não. Apenas
esclarece que os pensamentos são algo completamente diferente de
tudo o que pode
ser amputado ou dividido em partes cada vez menores. Por exemplo, não é
fácil remover
uma alucinação com uma operação. Um importante filósofo do século XVII,
chamado
“Leibniz”, referiu que a grande diferença entre tudo o que é feito de “matéria”
e
tudo o que é
feito de “espírito” consiste precisamente no fato de a matéria poder ser
dividida em
partes cada vez menores. Mas a alma não pode ser cortada em pedaços.
- Pois não, que
tipo de faca se usaria?
Alberto abanou a
cabeça. Depois, apontou para a mesa entre ambos e afirmou:
- Os dois
filósofos mais importantes do século XVII foram Descartes e Espinosa.
Também eles se
preocuparam com questões como a relação entre alma e corpo.
Vamos observar
mais pormenorizadamente estes filósofos.
- Conta. Mas, se
não estivermos despachados até às sete, tenho de telefonar à
minha mãe.
INTERESSADO EM LER A
OBRA COMPLETA?