quarta-feira, 2 de novembro de 2011

UFBA Vestibular 2012 - O último voo do Flamingo - Comentário de Mara Rute


O Último voo  do Flamingo

 

Primeiras palavras

O autor Mia Couto realmente nos presenteia com essa obra e a UFBA também, quando dá a todos os estudantes e não somente àqueles que farão segunda fase, a oportunidade de degustar as palavras desse escritor moçambicano. O que considerar? Ele é homem. Admita vc pensou que era uma mulher....bricadeirinha....

Primeiro o próprio Mia Couto admite suas influencias do Guimaraes Rosa então verás uma linguagem inovadora. Quando foi a UFBA para as comemorações do centenário de Jorge percebemos são laço com a construção jorgeamediana. Então não fica difícil entender certas questões em sua obra como a mulher como fortes e sensuais haja vista Ermelinda, a prostituta Ana Deusqueira e Temporina[1].  O próprio fato - morte de Soldados por explosões deixando apenas o pênis  e o chapéu são motes bem próximas das narrativas do Jorge Amado. E, não é possível desconsiderar a influencia de Manoel de Barros e sua escrita simples com imagens inimagináveis “máquina que fotografa vozes” para dizer gravador. Fiquem atentos. Mia Couto tem também uma escrita assumidamente engajada com  denuncias dos desmandos em seu país. Vamos então mergulhar na obra desse autor?

O convite é analisarmos à margem do próprio texto literário. Como poderíamos resumir um autor construtor de um texto que é uma história contada com as formas da poesia? O próprio jeito como escreve é importante. Perca, ou melhor, ganhe seu tempo visitando essa obra que será significativa para sua conquista.

Vamos a Tizangara um lugar onde nada necessita de entendimento e, as pessoas dizem muito para falar pouco. Como assim? Deixe de perguntas. Apenas aceite um universo fantástico.



Boa Leitura.

Mara Rute Lima  



Trechos comentados:





1. Fui eu que transcrevi, em português visível, as falas que daqui se seguem[2]. Hoje são vozes que não escuto senão no sangue, como se a sua lembrança me surgisse não da memória, mas do fundo do corpo. É o preço de ter presenciado tais sucedências. Na altura dos acontecimentos, eu era tradutor ao serviço da administração de Tizangara. Assisti a tudo o que aqui se divulga, ouvi confissões, li depoimentos. Coloquei tudo nopapel por mando de minha consciência.... Mas o que se passou só pode ser contado por palavras que ainda não nasceram. Agora, vos conto tudo por ordem de minha única vontade. É que preciso livrar-me destas lembranças [3]como assassino se livra do corpo da vítima.



2. Estávamos nos primeiros anos do pós-guerra[4] e tudo parecia correr bem, contrariando as gerais expectativas de que as violências não iriam nunca parar.



3.  Eles, coitados, acreditavam ser donos de fronteiras, capazes de fabricar concórdias[5]. Tudo começou com eles, os capacetes azuis. Explodiram. Sim, é o que aconteceu a esses soldados. Simplesmente começaram a explodir. Hoje, um. Amanhã, mais outro. Até somarem, todos descontados, a quantia de cinco falecidos.



4. Agora, pergunto: explodiram na inteira realidade? Diz-se, em falta de verbo.

Porque de um explodido sempre resta alguma sobra de substância. No caso, nem resto, nem fatia. Em feito e desfeito, nunca restou nada de seu original formato. Os soldados da paz morreram? Foram mortos? Deixo-vos na procura da resposta, ao longo destas páginas[6].

(Assinado: O tradutor de Tizangara)



Capítulo 1 - UM SEXO AVULTADO E AVULSO

“ O mundo não é o que existe, mas o que acontece”. Dito de Tizangara



1. Nu e cru, eis o fato: apareceu um pênis decepado, em plena Estrada Nacional, à entrada da vila de Tizangara. Era um sexo avulso e avultado. Os habitantes relampejaram-se[7] em face do achado. Vieram todos, de todo lado. Uma roda de gente se engordou em redor da coisa.

2.  Certo é o ditado: se a agulha cai no poço muitos espreitam, mas poucos descem a buscá-la[8].



3. Na nossa vila, acontecimento era coisa que nunca sucedia[9]. Em Tizangara só os fatos são sobrenaturais. E contra fatos tudo são argumentos. Por isso, tudo acorreu, ninguém arredou. E foi o inteiro dia, uma roda curiosa, cozinhando rumores.



4. - Agora é que vem aí chuva de molhar vento[10].

- Sim, é melhor voltarmos às vidas.

- Se emborem, pá!



5. Sobrei para ali, sozinho, com um estranho pressentimento[11]. Em minha alma, um espinho me magoava. ...  Aquilo não era ainda o sucedimento, mas os preparativos de sua chegada. Quando o silêncio clareia é que se escutam os escuros presságios. Foi nesse momento que me surpreendeu a voz, esbaforida:

- Está ser chamado!

- Chamado, eu?

Eu conhecia mais que bem o mensageiro: era Chupanga, o adjunto do administrador. Homem mucoso, subserviente - um engraxa-botas. Como todo o agradista: submisso com os grandes, arrogante com os pequenos. O fulano me fingia desconhecer, ocupado em suas superiores aparências. Ainda tentei um aperto de mão, mas logo ele foi atalhando o tempo. O burro, na companhia do leão, já não cumprimenta o cavalo[12].

- Não é você que fala afluentemente as outras línguas?[13]



6. - Está ser chamado por Sua Excelência.

Sua Excelência era o administrador. Ordem daquelas não se duvida. Ouvimos, calamos e fazemos de conta que, calados, obedecemos. Nem vale a pena invocar ousadia[14].



7. Eu sabia, como todos na vila: o administrador Jonas tinha desviado o gerador do hospital para seus mais privados serviços. Dona Ermelinda, sua esposa, tinha vazado os equipamentos públicos das enfermarias: geleiras, fogão, camas. Até saíra num jornal da capital que aquilo era abuso de poder. Jonas ria-se: ele não abusava; os outros é que não detinham poderes nenhuns.



8. Com razão e motivo: uma delegação oficial devia estar prestes a chegar. Vinha investigar o caso do sexo decepado. Haviam de vir os do governo de dentro, mais os do governo de fora. Até das Nações Unidas viriam.

Vinham investigar o caso do sexo decepado. E os outros casos que envolviam os capacetes azuis desaparecidos. Nunca a vila de Tizangara tinha recebido tais altas individualidades. A voz do administrador Estêvão Jonas tremia quando apontou para

mim e disse:

- Pois você fica, de imediato, nomeado tradutor oficial.

- Tradutor? Mas para que língua?

- Isso não interessa nada. Qualquer governo prezável tem seus tradutores. Você é o meu tradutor particular. Está compreender?

Não entendia, mas aprendera que, em Tizangara, nada necessita de entendimento[15].



9. A administratriz de novo se interpôs, deixando invisível o esposo[16]. Falava ajeitando o turbante e sacudindo as longas túnicas. Ermelinda clamava que eram vestes típicas de África. Mas nós éramos africanos, de carne e alma, e jamais havíamos visto

tais indumentárias[17]. No momento, ela reiterava:

- O que eu quero, em tanto que Ermelinda, é que eles fiquem a saber que nós, em Tizangara, temos tradução simultânea.

2 - A MISSÃO DE INQUÉRITO
“O que não pode florir no momento certo acaba explodindo[1] depois”.
Outro dito de Tizangara
1. A vila se formigava em roda vivente. Constava que, da capital, não tardaria a chegar a importantíssima delegação com soldados nacionais e os das Nações Unidas.
2. De entre a multidão figurava um bem visível cartaz com enormíssimas letras: “Boas vindas aos camaradas soviéticos! Viva o internacionalismo proletário!”. O administrador deu ordem instantânea de se mandar retirar o dístico. E que ninguém entoasse vivas a ninguém. O povo andava bastante confuso com o tempo e a atualidade[2].

3. A ordem para evacuar dali o caprino veio tarde de mais: as sirenes já invadiam a praça. Num segundo, as velozes viaturas encheram a praça de poeira e ruído. De súbito, a travagem aflita. E escutou-se um baque surdo, o fragor de um carro embatendo num corpo. Era o cabrito. O bicho voou que nem uma garça felpuda e se estatelou num passeio próximo. Não morreu instantâneo. Antes, ficou por ali, manchado e desmanchado, amplificando seus berros pelo mundo... O homem pegou no
desirmanado corpo e entregou-o ao administrador.
- Excelência, isto é seu.
Estêvão Jonas, em fúria, atirou o chifre para o chão. Puxou-me pelo braço, num esticão, e segredou a ordem árida:
- Vá ali e mate-me de vez esse filho da puta desse cabrito[3].

4. O povo se conglomerava, espantado de presenciar tal desfile de eminências. Tudo aquilo chamado por um sexo masculino, ainda para mais jazendo em paz? ... Uns se admiravam de me ver ali, entre os notáveis. Passara eu a partilhar da panela dos graúdos, a beneficiar do fogão deles? Outros me acenavam com improvisado respeito, não fosse eu um mandador de chuva.

5. Dona Ermelinda, ao lado de seu esposo, lhe bichanava:
- Reparou nas sirenes? Não será que lhes pode pedir para eles as deixarem
aqui?[4]

6. - Com o devido respeito, Excelências: e se chamássemos Ana Deusqueira?!
- Mas, essa Ana, quem é? - inquiriu o ministro.
Vozes se cruzaram: como se podia não conhecer a Deusqueira? Ora, ela era a prostituta da vila, a mais competente conhecedora dos machos locais.
- Prostitutas? Vocês já têm cá disso?
E o administrador, empoleirado na vaidade, murmurou:
- É a descentralização, senhor ministro, é a promoção da iniciativa local! – e repetia, enfunado: - A nossa Ana! .... essa Ana era uma mulher às mil imperfeições, artista de invariedades, mulher bastante descapotável.
Quem, senão ela, podia dar um parecer abalizado sobre a identidade do órgão? Ou não era ela perita em medicina ilegal?
- Está compreender, Excelência? Chamamos a Ana Deusqueira para ela identificar o todo pela parte[5].

7. Já o mensageiro partia, fulminante, quando estacou e arrepiou caminho. E perguntou ao administrador, em voz pública:
- Desculpe, Excelência, mas onde poderei encontrar a cuja convocada?
Estêvao Jonas pigarreou, atrapalhaço. Ora, ele, por que raio ele tinha que saber do paradeiro dessa uma criatura? E chamando o adjunto mais perto lhe bichanou:
- Seu burro! Vá aquele sítio que você já sabe.

8. Já Ana Deusqueira se anunciava, com menos sirene que a delegação, mas com maiores espampanâncias. A mulher exibia demasiado corpo em insuficientes vestes. Os tacões altos se afundavam na areia como os olhos se espetavam nas suas curvaturas. O povo, em volta, olhava como se ela fosse irreal. Até recentemente não existira uma prostituta na vila. Nem palavra havia na língua local para nomear tal criatura.
Afinal, não fora convocada para os usuais préstimos. Ana recebeu a surpresa, sempre em pose. Depois, amoleceu os charmes e agravou a voz. Ao fim ao cabo, vinha envergada a despropósito.
- Txarra! Estava pensar era uma chamada de serviço. E com taxa de urgência.

9. - Como está a nossa Primeira Senhora?
Dona Ermelinda tinha os olhos que cuspiam. Seu esposo a afastou, precavendo desmandos.
- Volte para casa, mulher.
- É melhor ela ficar - corrigiu a prostituta -, e irmos juntas lá ver os restos do acidente. Quem sabe ela pode ajudar a identificar a coisa?
O confronto ficou-se por ali[6]. Porque os estrangeiros fardados rodearam a prostituta, fungando da intensidade dos seus aromas. A delegação se interessava: seria zelo, simples curiosidade? E pediram-lhe documentos comprovativos da sua rodagem: curriculum vitae, participação em projetos de desenvolvimento sustentável, trabalho em ligação com a comunidade.
- Duvidam? sou puta legítima. Não uma desmeretriz, dessas. Até já dormi com...
- Adiante, adiante - apressou o ministro, que logo iniciou uma dissertação sobre vagos assuntos como as previsões da chuva, o estado miserável das estradas e outras nenhumarias.
Ana Deusqueira a tudo respondia, em verbo e gesto, olhos postos no italiano[7].

10. Depois, a prostituta deu costas à delegação e aproximou-se do polêmico achado, no chão da estrada. Mirou o órgão desfigurado, tombado como um verme flácido.
Joelhou-se e, com um pauzinho, revirou o hífen carnal. Em volta de Ana Deusqueira se formou um círculo, olhos de ansiosa expectativa. Impôs-se silêncio. Até que o chefe da polícia local inquiriu:
... - Essa coisa, como o senhor polícia chama, essa coisa não pertence a nenhum
dos homens daqui. - Está certa? - Com a máxima e absoluta certeza.
Cumprida a examinação, Ana Deusqueira sacudiu as mãos e abanicou a cabeleira desfrisada como se fosse uma rainha. O ministro chamou à parte o delegado das Nações Unidas. Conferenciaram-se:
- Desculpe lhe dizer, mas eu acho que é mais um desses casos...
- Quais casos? - perguntou o estrangeiro.
- Desses das explosões.
- Não me diga uma coisa dessas!
- Digo-lhe que é mais um explodido.
- Não me venha com essa merda dos explodidos. Cinco! Eu tenho que dar relatório aos meus chefes em Nova Iorque, não quero estórias nem lendas.
- Mas o meu governo...
- O seu governo está a receber muito. Agora são vocês a dar qualquer coisa em troca. E nós queremos uma explicação plausível!
.... - Mas os depoimentos são todos unânimes: os soldados explodem!
- Explodem? Como é que explodem sem minas, sem granadas, sem explosivos? Não me venha com conversa. Quero tudo gravado, aqui.
Entregou um gravador e uma caixa de cassetes. Sobrou um silêncio grave.


11. Confirmou, então, que Massimo Risi ficara na vila, juntamente com uma porção dos chefes. Ana Deusqueira se aproximou dele e disse:
- Morreram milhares de moçambicanos, nunca vos vimos cá. Agora,
desaparecem cinco estrangeiros e já é o fim do mundo?
O italiano permaneceu mudo. Ana Deusqueira se encostou nele, dengosamente, e prometeu que ajudaria a esclarecer o mistério.

3 - UMA MULHER ESCAMOSA
Saudade de um tempo? Tenho saudade é de não haver tempo.
Dito de Tizangara
1. Os visitantes se arrumaram na vila: o ministro se estabeleceu na casa do responsável local. Havia uma outra residência para o representante das Nações Unidas. Mas o italiano preferiu ficar na pensão local. Queria manter as independências, fora dos esquemas montados pelas autoridades locais. ...  Massimo Risi recusou que eu lhe levasse as bagagens e lá foi tropeçando pelos
buracos, com maltas de crianças lhe perseguindo e mendigando doces.

2. Os europeus, quando caminham, parecem pedir licença ao mundo. Pisam o chão com delicadeza mas, estranhamente, produzem muito barulho[8].

3.  Chegamos, enfim, à pensão. Na fachada havia ainda vestígios dos tiros. Buraco de tiro é como ferrugem: nunca envelhece. Aquelas ocavidades pareciam recém-recentes, até faziam estremecer, tal a impressão que a guerra ainda estivesse viva. Em cima da porta, sobrevivia a placa “Pensão Martelo Jonas”. Antes, o nome do estabelecimento era Martelo Proletário. Mudam-se os tempos, desnudam-se as vontades[9].

4. Massimo entrou a medo para uma sala escura. Mil olhos esbugolhavam o branco entrando na pensão. Frente a um balcão coberto de jornais antigos, o italiano perguntou:
- Pode-me informar quantas estrelas tem este estabelecimento?
- Estrelas?
O recepcionista achou que o homem não entendia do bom português e sorriu condescendente:
- Meu senhor: aqui, a esta hora, não temos nenhumas estrelas[10].
O estrangeiro olhou para trás pedindo meu socorro. ...
O italiano olhou o teto com ar de pássaro à procura de orifício na gaiola. ...
A convite do recepcionista lá fomos pelo obscuro corredor. O homem ia explicando as insuficiências com o mesmo entusiasmo que outro hoteleiro, em qualquer lugar do mundo, anunciaria os luxos e confortos do seu hotel. E o italiano parecia se arrepender de alguma vez ter querido saber: só havia eletricidade uma hora por dia.
- Também não há água nas torneiras.
- Não há água?
- Não se preocupa, meu caro senhor: manhã cedo, havemos de trazer uma lata de água.
- E vem de onde, essa água?
- A água não vem de nenhum lugar: é um miúdo que traz.
O homem debruçou-se sobre ela e foi tirando objetos diversos:
- Esta revista é para matar as moscas. Esta sola velha é para as baratas. Esta bengala...
- Deixe estar, eu resolvo.

4.  De repente, o italiano tropeçou num vulto. Era uma velha, talvez a mais idosa pessoa que ele jamais vira. Ajudou-a a erguer-se, conduziu-a até à porta do quarto ao lado. ... O italiano esfregou os olhos como se buscasse acertar visão. É que o pano deixava entrever um corpo surpreendentemente liso, de moça polpuda e convidativa. Era como se aquele rosto encarquilhado não pertencesse àquela substância dela[11].

5.  - O seu amigo branco que tenha cuidado com essa velha.
- Porquê? - perguntou Massimo.
- Ela é uma dessas que anda, mas não leva a sombra com ela.
- Que é que ele está falando? voltou a inquirir o italiano.
- Você lhe explique, com devido tempo[12].

6.  Ele me olhou, como se fosse por primeira vez:
- Você quem é?
- Sou seu tradutor.
- Eu posso falar e entender. Problema não é a língua. O que eu não entendo é este mundo daqui.
Um peso invisível lhe fez descair a cabeça. Parecia derrotado, sem esperança.
- O senhor vai conseguir.
- Acha que vou saber quem fez explodir os soldados?

7. - Que se passa?
- O senhor não sabe o que significa a chegada de meu velho.


4 - APRESENTAÇÃO DO FALADOR DA ESTÓRIA[13]
Deus me deu tarefa de morrer.
Nunca cumpri.
Agora, porém, já aprendi a obediência.
Palavras de Dona Hortênsia
1. Há aqueles que nascem com defeito. Eu nasci por defeito. Explico: no meu parto não me extraíram todo, por inteiro. Parte de mim ficou lá, grudada nas entranhas de minha mãe. Tanto isso aconteceu que ela não me alcançava ver: olhava e não me
enxergava. Essa parte de mim que estava nela me roubava de sua visão. Ela não se conformava:
- Sou cega de si, mas hei-de encontrar modos de lhe ver!
A vida é assim: peixe vivo, mas que só vive no correr da água. Quem quer prender esse peixe tem que o matar[14]. Só assim o possui em mão. ...
Conselhos de minha mãe foram apenas silêncios[15]. Suas falas tinham o sotaque de nuvem[16].

2. Eu lhe pedia explicação do nosso destino, ancorados em pobreza.
- Veja você, meu filho, já apanhou mania dos brancos! ... Você quer entender o mundo que é coisa que nunca se entende.

3. Enquanto falava, seus dedos datilogravavam meu rosto, linha por linha. Minha mãe me lia por dedos tortos[17].

4. Depois de mim seu ventre se fechou. Eu não era apenas um filho - era o castigo de ela não mais poder ser mãe. E aquele destino em outras punições se multiplicou: meu pai, em lugar de lhe reservar mais carinho, passou a lhe infligir penas, deitando-lhe as culpas pelos males do universo. E se sentiu aliviado: se ela perdera fertilidade, ele tinha direito de não ter deveres[18]. ... E passou a dormir fora, gastando sua idade em leitos de outras. Minha mãe chorava enquanto dormia na solidão do leito desconjugal[19].
Eu a tirava dali, daquelas águas, e a enxugava sempre com o mesmo pano. Outra toalha não podia ser: aquele era o pano que havia recebido seu único parto. Aquele pano me embrulhara em minha estreia de ser. Seria, quem sabe, a sua última cobertura.

5. Apesar da noturna tristeza de minha mãe, eu vivia com o sossego de peixe em água parada. Naquele tempo, não havia antigamentes[20]. Tudo para mim era recente, em via de nascer.

6. - A vida, meu filho, é uma desilusionista[21].
Em fins de tarde, os flamingos cruzavam o céu. Minha mãe ficava calada, contemplando o voo. Enquanto não se extinguissem os longos pássaros ela não pronunciava palavra. Nem eu me podia mexer. Tudo, nesse momento, era sagrado. Já no desfalecer da luz minha mãe entoava, quase em surdina, uma canção que ela tirara de seu invento. Para ela, os flamingos eram eles que empurravam o sol para que o dia chegasse ao outro lado do mundo.
- Este canto é para eles voltarem, amanhã mais outra vez![22]

7.  Passou-se o tempo e eu saí da terra nossa, encorajado pelo padre Muhando. Na cidade, eu tinha acesso à carteirinha das aulas. a escola foi para mim como um barco: me dava acesso a outros mundos. Contudo, aquele ensinamento não me totalizava. Ao contrário, mais eu aprendia, mais eu sufocava[23]. Ainda me demorei por anos, ganhando saberes precisos e preciosos.
Na viagem de regresso não seria já eu que voltava. Seria um quem não sei, sem minha infância. Culpa de nada. Só isto: sou árvore nascida em margem. Mais lá, no adiante, sou canoa, a fugir pela corrente; mais próximo sou madeira incapaz de escapar
do fogo[24].

8. - Afinal, você é parecido com ele...
- Com meu pai?
Ela voltou a sorrir, fosse quase em suspiro, enquanto repetia:
- Com ele.[25]..
Me apertou as mãos, em espasmo. ... A morte é uma brevíssima varanda. Dali se espreita o tempo como a águia se debruça no
penhasco - em volta todo o espaço se pode converter em esplêndida voação.
- Mãe? Quem é ele?
Ela falecera nesse instante em que iniciava a contemplação de mim. Seria verdade que me chegara ver? Nem isso já contava para nenhuma importância. O que era preciso era avisar meu pai desse desacontecimento[26].


9. Nossa gente não vive sem tratar os do lado de lá, passados a poente fino. Habitamos assim: a vida a oriente, a morte a ocidente. A morte, a morte mais sua inexplicável utilidade[27]! Minha mãe partira na curva da chuva, saindo a habitar a estrela de nenhumas pontas. A partir de então, a vida já não lhe comparecia: ela apanhara o
último desencontrão.... Ainda lembrei suas palavras amadurecendo uma esperança para mim quando eu de tudo descria:
- Não vê os rios que nunca enchem o mar? A vida de cada um também é assim: está sempre toda por viver.

10. E agora, por não-consequência, eu partia para encontrar meu pai. Onde ele pairava? Se mantinha ali nos arredores do nosso distrito, incapaz do longe, inapto para o perto?
Em toda sua vida, ele só andara pelos interiores. Era um sabedor de matos, ignorante de oceano.
...Depois dos conflitos que tivera com a administração, meu velho não guardava boa ideia do trabalho. Antes, ele acreditara no poder de o trabalho criar futuro. Perdera essa crença[28]. Em ano recente, até decidiu envergar pijama para toda a vida. Apenas de noite, quando o pijama devia cumprir seus congênitos serviços, ele se libertava do vestuário. Despia-se para dormir.
...  Mas não era apenas o caso do pijama: o velho se aumentava de manias que contrariavam a gente universal. Como, noutro exemplo: só no domingo ele calçava. Nos restantes dias, os da semana, seus pés terreavam, satisfeitos por acariciarem o infinito
do chão... ele andava descalço para não gastar seu único par de sapatos[29]. Trazia-os pendurados pelas mãos, mas sem nunca os envergar enquanto marchasse. Calçava-os apenas depois, quando já estava parado em pose de senhor.

11. - Está ver aquele caminhozito?... Quando chegar o fim do mundo você toma este carreirinho. Está a ouvir?
Conselho que nunca quereria cumprir. Mas que não podia depositar dúvida. Que ele sabia que era certo e certeiro o final da humanidade[30].

12.  Meus saberes de cidade serviam para quê? Aqueles caminhos tinham serviços que não eram os mesmos das ruas urbanas: pareciam feitos apenas para passarem sonhos e poentes.

13.  Finalmente o descobri. Meu pai, o que lhe tinha sido feito? Estava magrito, esgazelado, parecia que até a alma lhe era uma coisa externa. Desde minha última visita ele se inquilinara num escuro, no oco de um velho farol. Tinha se tornado faroleiro.
- Agora, meu filho, eu já não falo nenhuma língua, falo só sotaques. Entende?

14. - Pai, a guerra já acabou.
- Você acredita nisso?







5 - A EXPLICAÇÃO DE TEMPORINA
Uns sabem e não acreditam. Esses não chegam nunca a ver.
Outros não sabem e acreditam. Esses não veem mais que um cego.
Provérbio de Tizangara
1. O italiano se havia reclinado como um ponteiro. Parecia ter gostado do relato das minhas infâncias. Quando terminei ele se deixou em silêncio. Por um tempo permaneceu assim, dissolvido naquela pausa. Só depois falou:
- Esta sua estória... tudo isso é verdadeiro?
Era tempo de regressarmos à pensão[31].

2. O italiano, cansado, nem se sentiu adormecer. Nessa noite, um estranho sonho tomou conta dele: a velha do corredor entrava no quarto, se despia revelando as mais apetitosas carnes que ele jamais presenciara. No sonho, o italiano fez amor com ela.
Massimo Risi nunca tinha experimentado tão gostosas carícias. ... Se era pesadelo, ele muito se divertia[32]. Despertou suado e sujo, o peito ainda resfolegando. Olhou em volta e reparou que alguém mexera nas suas roupas. Alguém estivera no quarto. Levantou-se e viu o balde com água. Suspirou, aliviado. Tinha sido, certamente, o rapaz da pensão.

8. Massimo lavou-se com a ajuda de um copo. Barbeou-se com o resto da água do banho.
Ficou olhando o balde como se reparasse, pela primeira vez, o quanto pode valer um pouco de água[33].

9.  Era a velha Temporina.
- Estou grávida de você...Esta noite fiquei grávida consigo.
Era o hospedeiro que entrou, cerimonioso. Depois de sucessivos “dá licenças” ele se fez ao assunto:
- Senhor Massimo, eu ouvi tudo... Você se atente, caro amigo. Essa mulher ela é uma enfeitiçada. Quem sabe agora você não explode como os outros?
- Mas eu não fiz nada.
- Agora essa moça vai querer lhe acompanhar lá para sua terra. Ela mais o vosso filho mulato.
Percebeu-se algum desprezo no modo como disse “mulato”.

10.  O padre Muhando[34] já falara contra esse preconceito. O pensamento do sacerdote ia direito no assunto: mulatos, não somos todos nós? Mas o povo, em Tizangara, não se queria reconhecer amulatado. Porque o ser negro - ter aquela raça - nos tinha sido passado como nossa única e última riqueza[35].

11.  E o hospedeiro já se retirava quando notou qualquer coisa no chão. Se debruçou
a inspecionar e a sua voz se aflautou:
- Você matou-lhe!
O italiano se ergueu aflito. Outra morte? E o recepcionista, juntando as mãos no rosto, gritava olhando o chão:
- Hortênsia!
Que se passava, agora? Olhou para mim pedindo socorro[36] e eu aproximei-me do hospedeiro para esclarecimento. O homem apontava no chão uma louva-a-deus morta. Também a mim me veio um arrepio. De repente, aquele cadáver estava para além de um inseto. ... Uma louva-a-deus não era um simples inseto. Era um antepassado visitando os
viventes.

12. - Temporina, explique quem você é. E você, italiano, escute bem.
- Tenho duas idades. Mas sou miúda. Nem vinte não tenho... Tenho cara de velha porque recebi castigo dos espíritos...Castigaram-me porque se passaram os tempos sem que nenhum homem provasse da minha carne.
Era verdade: ela não aceitara nenhum namoro enquanto moça. Quando deu conta, tinha-se passado o prazo da sua adolescência. Mais que o permitido. E assim desceu sobre ela a punição divina. Numa só noite seu rosto se preencheu de ruga, se perfez nela todo o redesenhar do tempo. Contudo, no restante corpo, ela guardava sua juventude.

13.  Hortênsia era a última neta dos fundadores da vila.
- Venha! Vamos a casa de minha falecida tia.
Ajudei Temporina a convencer o estrangeiro. A casa de Hortênsia era importante para a missão. Tinham usado o grande casarão para alojar os soldados das Nações Unidas. Foi o administrador que decidiu contra vontade de todos. A casa era um lugar de espíritos. Não importava o que os soldados fizessem. Importava, sim, o que o lugar ia fazer aos inautorizados visitantes.

14.  À entrada, Temporina, gritou:
- Dá licença, Tia Hortênsia?
Silêncio. O italiano me pegou pelo ombro. Hortênsia não estava falecida? Pedia-se autorização a um morto? Pedi que respeitasse o silêncio. A um imperceptível sinal, Temporina recebeu resposta da antiga dona. Podíamos entrar. ...Contei-lhe então quem fora a antiga dona. Hortênsia. Não era em vão que tinha nome de flor. Não que fosse bonita. Todavia, ficava na varanda o dia inteiro, fingindo olhar o tempo. .. Tia Hortênsia vivia com seus dois sobrinhos. Temporina era a mais velha. O outro, era um rapaz de comprovadas inabilidades... O moço não era um fulano, nem um indivíduo. Assim, nem nome nenhum lhe foi posto[37]. Valia a pena desperdiçar um nome humano num ser de que se duvidavam as propriedades? Hortênsia nada fazia senão expor-se na varanda. Ali se encenava o dia inteiro.
- Mas, tia, por que se varandeia tanto, de manhã até à noite?
- Só quero ser contemplável.
Falava tudo por enfeite.
Quando, enfim, a doença disputou seu corpo, Hortênsia chamou os dois sobrinhos e comunicou a Temporina:
...
- Quer saber por que fiquei sempre na varanda?
- E porquê, Tia Hortênsia?
- Para ver se Deus me escolhia e me levava. Nunca me levou. Eu sou muito negra, deve ser por causa disso que, mesmo eu ficando frente à igreja, ele nunca me escolheu.
Hortênsia se obscureceu naquela noite. Morreu de mão dada com a sobrinha. Dizem que foi essa contiguidade que fez passar a maldição da solidão de Hortênsia para Temporina.

15. - Entende agora por que viemos aqui? Para você ver que em Tizangara não há dois mundos.
Ele que visse, por si, os vivos e os mortos partilharem da mesma casa. Como Hortênsia e seu sobrinho. E pensasse nisso quando procurasse os seus mortos.
- É porque aqui temos três vilas com seus respectivos nomes - Tizangara-terra, Tizangara-céu, Tizangara-água. Eu conheço as três. E só eu amo todas elas.

16. De longe, ainda vi como Temporina se sentava no colo do italiano e como seus corpos se enleavam. De súbito, o rosto dela se colocou em luz e eu me espantei: em flagrante de amor Temporina juvenescia. Toda ela era sem ruga, sem cicatriz do tempo. E recuei meus olhos, recolhi meu enleio. O italiano havia de descer e eu retomaria meus serviços. Agora, por certo, ele não carecia de tradutor.

17.  Temporina falava para ele:
- Andei olhando você. Desculpa, Massimo, mas você não sabe andar.
- Como não sei andar?
- Não sabe pisar. Não sabe andar neste chão. Venha aqui: lhe vou ensinar a caminhar.
Ele riu, acreditando ser brincadeira. Porém, ela, grave, advertiu:
- Falo sério: saber pisar neste chão é assunto de vida ou morte[38]. Venha, que eu lhe ensino.

18.   - É uma carta de Sua Excelência - depois, se aproximou mais para me segredar:
- Ele disse para você ler primeiro. É só traduzir para o estrangeiro um resumo da
carta.
Não procedi segundo aquelas instruções. Esperei que o mensageiro se afastasse e me sentei na sombra. Li alto para Massimo Risi o inteiro conteúdo da carta[39].

6 - PRIMEIRO ESCRITO DO ADMINISTRADOR
Não sou mau lembrador.
Minha única dificuldade é ter que escrever
por escrito.
Confissão do administrador.
1. Sua Excelência
O Chefe Provincial
Escrevo, Excelência, quase por via oral[40]. As coisas que vou narrar, passadas aqui na localidade, são de mais admirosas que nem cabem num relatório... Começou-se tudo na madrugada antepassada. Minha esposa, Dona Ermelinda, veio à janela e perguntou que barulho era aquele. ... - Não ouve, Jonas? Parece um barco a apitar...Ermelinda afastou os pesados cortinados, herança
dos coloniais[41]. Desculpe, a franqueza não é fraqueza: o marxismo seja louvado, mas há muita coisa escondida nestes silêncios africanos.

2. Tínhamos orientações superiores: não podíamos mostrar a Nação a mendigar, o País com as costelas todas de fora. Na véspera de cada visita, nós todos, administradores, recebíamos a urgência: era preciso esconder os habitantes, varrer toda aquela pobreza. Porém, com os donativos da comunidade internacional, as coisas tinham mudado. Agora, a situação era muito contrária. Era preciso mostrar a população com a sua fome, com suas doenças contaminosas. Lembro bem as suas palavras, Excelência: a nossa miséria está render bem. Para viver num país de pedintes, é preciso arregaçar as feridas, colocar à mostra os ossos salientes dos meninos[42].

3.  Eu me irrito com as bazófias dela. Se é tão esperta por que razão não é ela a administradora? Ou administratriz? Sempre eu lhe faço lembrar meu heroísmo na luta armada. Em pleno mato, sem nada para comer, tudo em sacrifício pela libertação do povo. Certa vez, até comi Colgate.
- Pois devia ter comido mais pasta de dente! É que ainda tem muito mau hálito.
Veja os modos dela responder, taco no taco[43].

4. Todavia, eu sofro de uma estranheza. É que quando toco em mulher minhas mãos aquecem até ficarem como carvão aceso. Houve vezes até que pegaram fogo e eu fui obrigado a parar o ato. Viu uma coisa destas? Deve ser um feitiço que Ermelinda me
encomendou. Quem sabe um dia, de tão quente, também eu expludo  no meio da noite?

7 - UNS PÓS NA BEBIDA (FALA DE DEUSQUEIRA)
- Tenho saudades de minha casa, lá na Itália.
- Também eu gostava de ter um lugarzinho meu, onde pudesse chegar e me aconchegar.
- Não tem, Ana?
- Não tenho? Não temos, todas nós, as mulheres.
- Como não?
- Vocês, homens, vêm para casa. Nós somos a casa.
Extrato de um diálogo entre o italiano e Deusqueira

1. - Já falei com Ana Deusqueira. Gravei tudo, conforme se combinou.
Olhei em volta e me admirei: o ministro estava só. Nem administrador nem Chupanga figuravam na sala. Sentamos enquanto o governante pressionou o botão do gravador e a voz da prostituta se espalhou pelo quarto. O italiano não escondeu um
arrepio. A voz de Deusqueira era carnal, incendiadora como bebida de afugentar razão.

2. Começo assim, explico esse meu serviço. Para dizer uma coisa, o seguinte: o senhor, num próximo tempo, vai deixar de ser ministro. Transitará para ex-ministro. Mas eu não transitarei nunca. Uma puta nunca é “ex”. Há ex-enfermeira, há exministro... só não existe ex-prostituta. a putice é condenação eterna, uma mancha que não se lava nunca mais.

3. Deixe-me explicar, não me interrompa. O senhor é ministro, eu sou uma simples mulher de virar lençol.
Espalham aí que dou donativo de corpo, faço de graça com os que não podem pagar. ... Vale a pena responder a essas mentiras? É inútil como limpar a ferrugem do prego. Eu é que sei a minha vida. Quem conhece a sujidade do muro é o caracol que trepa na parede[44]....Este mundo tem mais dentes que bocas. É mais fácil morder que beijar, acredite, doutor[45].

4. Senta aqui, Excelência. Senta que é colchão limpo, lençol lavadinho. Isso, isso mesmo. Onde estava nem lhe via como deve ser. O senhor tem olhos de jejum. Me desculpe, o que eu mais vejo é pelos olhos. Vida miudinha, grandezas e infinitos: tudo
está escrito no olhar. Quer apoiar nesta almofada? Não quer?[46] Está certo, o senhor fica na comodidade do seu desejo.

5. Pronto. Agora, vou ao assunto. Quer saber toda a verdade do acontecido? Os soldados estrangeiros explodem, sim senhor. Não é que pisam em mina, não. Somos nós, mulheres, os engenhos explosivos. Não faça essa cara. Nós temos poderes, o senhor sabe. Ou já esqueceu as forças da terra? Pergunta por aí, todos sabem. O povo não fala, mas estão sempre nascendo falagens. O capim, não parece, mas dá flor[47].

6. - Está ver como são as pessoas daqui? Falam muito para dizerem pouco[48]. Essa gaja ainda não disse nada.

7. O soldado zambiano chegou, exibindo a farda. Entrou no bar, arrotando presença. Batia os calcanhares, mandando vir as bebidas. Não gostamos, sabe, esses ares de dono. Só fingimos simpatias, mais nada. Nessa bebida, eu vi, alguém juntou uns pós tratados, feitiços desses, nossos. Não sei quem, nem sei o quê. Obra dos homens, ciumeiras deles que não querem ver mexidas as mulheres da terra[49].

8.  E eu, Excelência, eu até me sinto orgulhada nesses ciúmes deles. É que nunca eu fui de ninguém. Nunca. Haver homens que me disputam me faz sentir pertencida, faz conta que sou mulher de um só, exclusivo. Porém, foi assim. Isto que lhe conto não tem ouvido nem boca[50]. Eu vi os pós, caindo como areia na cerveja do desgraçado. Vi tudo por inteiro. Quando esse zambiano me pegou na mão eu já sabia o destino dele. Lhe acompanhei sem pena...
9.  Uma enorme explosão deflagrou: o mundo parecia desconjuntar-se. Janelas esvoaçaram inteiras e o italiano foi projetado de encontro à parede. Também eu fui arremassado no meio do chão... Na pensão nos informaram: não longe dali, tinha ocorrido mais um desses estranhos rebentamentos. A escassa distância um outro soldado das Nações Unidas havia desaparecido, desfeito em mistério.
- Desta vez, dizem, foi um paquistanês.
...a nova vítima era um paquistanês, responsável pela guarda da residência oficial do administrador Estêvão Jonas. Desta feita, a explosão dera-se em plenas entranhas do Poder.
Chegado ao quarto, na solidão de tudo, comecei a ler as datilografias de Estêvão Jonas. O que me deu estranheza foi o tom de carta, de feitio humano. Li foi nas extralinhas.




[1] Vocês sabem que eu sou fã de Milton Santos e, portanto não escondo como gosto do conceito dele de explosões. Aqui é  manifestação do povo. No tempo presente em reações como a que vemos no Oriente Médio.
[2] O autor deixa claro o problema de identidade política que seu país Moçambique, atravessava
[3] É mais uma das histórias hilárias do livro para mostrar de modo cômico a chegada da comitiva das Nações Unidas  e os desmandos de Jonas Estevão. Coitado do cabrito. Veja o desenvolvimento do local, cabrito no meio da rua....
[4] Sinha Vitória queria uma cama de varas, D. Ermelinda sirenes.
[5] Eles tinham um problema. Como identificar um morto sem um corpo. É aí que Ana entra. Supostamente ela conhecia todos os pênis da cidade.
[6] D. Ermelinda em outros momentos da história fica do lado de Ana numa sugestão de se conhecerem de antes. E se conhecem.
[7] Ela foi quem encomendou o feitiço que protegia o italiano de explodir se se deitasse com uma das mulheres da terra.
[8] É interessante ficar atento a esse jeito de caminhar. Seria uma interessante questão de prova. Veja que quando Temporina ensina Massimo a andar de outro jeito mais delicadamente, sobrevivendo ao chão africano, salva sua vida porque ele pisa num terreno cheio de minas.
[9] Perceba  a forma sutil de referência ao tempo que Moçambique vivia.
[10] Acho essa cena bem interessante. Note logo o choque cultural de Massimo vai sofrer.
[11] A primeira vez eu ele vê Temporina com quem se envolverá mais tarde na narrativa. Ele tem um rosto assim por causa de uma maldição de família e se livrará dela com a ajuda de Massimo.
[12] Uma prova que não era a língua, mas certa questões de Tizangara que Massimo precisa entender e, esse era o papel do tradutor.
[13] Esse capítulo é a apresentação de sua história do tradutor.  
[14] Como já sinalizamos antes o autor faz uso de frases, imagens para explicar certas coisas. Aqui ele quis dizer que a vida não pode ser presa. Quem tenta mata-a.
[15] Ela não dizia nada, mas não deixava de ser conselho viu gente.
[16] Percebe que é facilmente compreensível se vc observar a imagem anterior.
[17] Veja que imagem fantástica!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
[18] Veja como eram culturalmente os valores da família e o valor dado ao papel da mulher de procriadora.
[19] Percebe a imagem?
[20] Porque ele era muito jovem e não tinha passado.
[21] Observe os valores sobre a vida da mãe. Não se pode prender. Ele desilude as pessoas....
[22] Lembre-se que essa imagem é importante porque se liga ao título do livro e ao final da história. No fim ele canta essa canção de sua mãe.
[23] Perceba que a concepção do saber escolar não é diferente da concepção que Fabiano do Vidas Secas tem.
[24] Ele afirma que sofreu, com o tempo,  mudanças.
[25] Como já foi dito no início do capítulo. A mãe não podia vê-lo só conseguiu aqui. No leito de morte.
[26] Viu como ele brinca com a linguagem, como faz Guimarães Rosa?
[27] Veja como ele aqui define o jeito de ser ( ethos) do seu povo. Que dá um extremo valor à vida além e mias: esse além convive entre eles.
[28] Também Fabiano de Vidas Secas  não acreditava no trabalho.
[29] Fabiano também vivia quase todo o tempo descalço. Inclusive a imagem dos pés de Fabiano rachados como a terra e seus olhos da cor do céu e seu cabelo vermelho como sua habitação é uma interessante questão.
[30] O pai tinha razão afinal o mundo se acaba mesmo no fim da narrativa.
[31] Perceba que o capítulo anterior que o tradutor contou fugindo  do curso da história oficial aparece aqui como se ele estivesse contando para Massimo.
[32] Não era pesadelo. Ele se deitou mesmo com Temporina.
[33] Veja o valor da água tanto em Tizangara quanto em Vidas Secas.
[34] É só citado. Essa personagem será apresentada depois.
[35] Esse orgulho também aparece em Cadernos Negros.
[36] Ele precisa desse tipo de tradução.
[37] Perceba os valores culturais do lugar. E, antes que me pergunte. Não se compara aos filhos da Fabiano. O motivo para os meninos serem chamados de mais novo e mais velho é que para eles serão os próximos Fabianos. Aqui o conceito não é o mesmo.
[38] Porque não saber pisar poderia fazê-lo morrer em uma mina.
[39] Veja que ele não segue as ordens de Jonas Estevão.
[40] Escrevo quase como falo.
[41] Ela sempre quer copiar as formas culturais dos brancos.
[42] Numa reflexão sobre um assunto que já tratamos ( A fome) esse trecho é bem interessante uma vez que ele revela que dar comida como faz a ONU e a maioria dos países capitalistas para resolver a questão da miséria na África não é a melhor opção.
[43] Já tínhamos em outros  momentos do livro sinalizado a forma de agir de Ermelinda.
[44] Perceba que como quase todas as vozes do texto ela fala também por imagem. Falando em vozes perceba que a voz do texto não é apenas do narrador/ tradutor. O artificio de ouvir uma gravação dá, nesse momento, a voz a Ana Desqueira.
[45] Visão negativa da vivência. Isso lembra um poema de Augusto dos Anjos: “ Escarra nessa boca que te beija”
[46] Perceba que não temos a voz do ministro respondendo as questões. O que entendemos é por inferência/ suposição.
[47] Adorei essa frase!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
[48] Excelente definição
[49] Justificativa de Ana para a explosão dos soldados. Lembre-se eu ela é  a primeira a ser ouvida. E que a explosão dos da terra não é por essa razão, mas por minas.
[50] Ninguém contou. Ela viu 


Gostou? O comentário de todos os capítulos estará  disponível a partir de sábado. Aqui e no www.euqueropassar.com nosso site.



[1] Se uma das três estiver na prova vc vai me dar o que de presente?
[2] Observe já a linguagem. “Português visível”
[3] Anuncia o motivo da escrita. Livrar sua memória.
[4] Veja a referência histórica do livro
[5] Não é diferente do Iraque ou qualquer país em que o processo de paz é construído pelos estrangeiros.
[6] A história gira em torno dessas explosões. A ONU envia uma comitiva para Tizangara e depois deixa um representante para fazer um relatório. Massimo – O italiano. A maior parte do romance gira em torno do depoimento das personagens contando suas versões:  feitiço é o que  imagina ter sido segundo Ana Deusqueira. Feito por encomenda para quando os soldados transassem com as mulheres do lugar pelos homens da terra. A questão é que não só os soldados explodiam, mas as outras explosões – reais e denuncia do livro do problema das minas da pós guerra que matava os habitantes locais, delas o mundo não se importava. Novidade? Nenhuma. Não se esqueça de que enquanto o massacre em Ruanda acontecia nós assistíamos por três dias o luto a Ayrton Senna.
[7] Veja como o autor é bem original em sua linguagem. Ao longo do livro vamos colocar algumas considerações sobre esse termos considerando que a UFBA sempre faz algumas questões tendo em face a substituição de termos por termos correlatos.
Os habitantes correram rápido para lá para ver o achado. Nesse caso o tal Pênis.
[8] Muitos olhavam o Pênis, mas até então ninguém ia lá para apanhá-lo. Também pudera né Mia Couto?
[9] Lugar pequeno. Quase nada acontece. Esse nem precisava explicar....
[10] Termo para dizer que a coisa ia ficar feia porque a essa altura dos acontecimentos se descobriu a boina e  que se tratava de um soldado da ONU.
[11] O narrador admite ser movido por forças sentimentais.
[12] O livro interior é recheado desses ditos. Fique atento a eles.
[13] Ele vai ser contrato pelo governo para ser Tradutor.
[14] Já dá indícios do modo de governar de Jonas Estevão.
[15] Esse elemento é importante uma vez que a tradução que de fato foi feita não foi  linguística, mas cultural. Ele mostrou ao italiano, e por extensão a todos nós esse país e seu jeito.
[16] Importante ressaltar o poder dessa figura feminina e sua força dentro da própria administração de Tizangara.
[17] Crítica a cultura plástica. Não muito diferente de nós que quando recebemos Obama dançamos capoeira. Pelo amor de Deus, nada contra a acapoeira, mas é isso que vivemos fazendo. Andamos de tapa sexo sambando e em rodas de capoeira?