Antes de ler siga as instruções da Parte I
O
empréstimo
Vou
divulgar uma anedota, mas uma anedota no genuíno sentido do vocábulo, que o
vulgo ampliou às historietas de pura invenção. Esta é verdadeira; podia citar
algumas pessoas que a sabem tão bem como eu. Nem ela andou recôndita, senão por
falta de um espírito repousado, que lhe achasse a filosofia. Como deveis saber,
há em todas as coisas um sentido filosófico.[1] Carlyle descobriu o
dos coletes, ou, mais propriamente, o do vestuário; e ninguém ignora que os
números, muito antes da loteria do Ipiranga, formavam o sistema de Pitágoras. Pela minha parte creio ter decifrado este
caso de empréstimo; ides ver se me engano[2].
E,
para começar, emendemos Sêneca. Cada dia, ao parecer daquele moralista, é, em
si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vida dentro da vida. Não
digo que não; mas por que não acrescentou ele que muitas vezes uma só hora é a
representação de uma vida inteira?[3]
Vede este rapaz:
entra no mundo com uma grande ambição, uma pasta de ministro, um Banco, uma
coroa de visconde, um báculo pastoral. Aos cinqüenta anos, vamos achá-lo
simples apontador de alfândega, ou sacristão da roça. Tudo isso que se passou
em trinta anos, pode algum Balzac metê-lo em trezentas páginas; por que não há
de a vida, que foi a mestra de Balzac, apertá-lo em trinta ou sessenta minutos?
Tinham batido quatro horas no cartório do
tabelião Vaz Nunes, à rua do Rosário. Os escreventes deram ainda as últimas
penadas: depois limparam as penas de ganso na ponta de seda preta que pendia da
gaveta ao lado; fecharam as gavetas, concertaram os papéis, arrumaram os
livros, lavaram as mãos; alguns que mudavam de paletó à entrada, despiram o do
trabalho e enfiaram o da rua; todos saíram. Vaz Nunes ficou só.
Este honesto tabelião era um dos homens
mais perspicazes do século. Está morto:
podemos elogiá-lo à vontade[4].
Tinha um olhar de lanceta, cortante e agudo. Ele adivinhava o caráter das pessoas que o buscavam para escriturar os
seus acordos e resoluções; conhecia a alma de um testador muito antes de acabar
o testamento; farejava as manhas secretas e os pensamentos reservados[5].
Usava óculos, como todos os tabeliães de teatro; mas, não sendo míope, olhava
por cima deles, quando queria ver, e através deles, se pretendia não ser visto.
Finório como ele só, diziam os escreventes. Em todo o caso, circunspecto. Tinha cinqüenta anos, era viúvo, sem
filhos, e, para falar como alguns outros serventuários, roía muito caladinho os
seus duzentos contos de réis.[6]
- Quem é? perguntou ele de repente olhando
para a porta da rua.
Estava à porta, parado na soleira, um homem
que ele não conheceu logo, e mal pôde reconhecer daí a pouco. Vaz Nunes
pediu-lhe o favor de entrar; ele obedeceu, cumprimentou-o, estendeu-lhe a mão,
e sentou-se na cadeira ao pé da mesa. Não trazia o acanho natural a um pedinte;
ao contrário, parecia que não vinha ali senão para dar ao tabelião alguma coisa
preciosíssima e rara. E, não obstante, Vaz Nunes estremeceu e esperou.
- Não se lembra de mim?
- Não me lembro...
- Estivemos juntos uma noite, há alguns
meses, na Tijuca... Não se lembra? Em casa do Teodorico, aquela grande ceia de
Natal; por sinal que lhe fiz uma saúde... Veja se se lembra do Custódio.
- Ah!
Custódio endireitou o busto, que até então
inclinara um pouco. Era um homem de quarenta anos. Vestia pobremente, mas escovado, apertado, correto. Usava unhas longas,
curadas com esmero, e tinha as mãos muito bem talhadas, macias, ao contrário da
pele do rosto, que era agreste. Notícias mínimas, e aliás necessárias ao
complemento de um certo ar duplo que distinguia este homem, um ar de pedinte e
general. Na rua, andando, sem almoço e sem vintém, parecia levar após si um
exército. A causa não era outra mais do
que o contraste entre a natureza e a situação, entre a alma e a vida. Esse
Custódio nascera com a vocação da riqueza, sem a vocação do trabalho[7].
Tinha o instinto das elegâncias, o amor do supérfluo, da boa chira, das belas
damas, dos tapetes finos, dos móveis raros, um voluptuoso, e, até certa ponto,
um artista, capaz de reger a vila Torloni ou a galeria Hamilton. Mas não tinha
dinheiro; nem dinheiro, nem aptidão ou pachorra de o ganhar; por outro lado,
precisava viver. Il faut bien que je vive[8],
dizia um pretendente ao ministro Talleyrand. Je n'en vois pas la nécessité[9],
redargüiu friamente o ministro. Ninguém dava essa resposta ao Custódio; davam-lhe dinheiro[10],
um dez, outro cinco, outro vinte mil-réis, e de tais espórtulas é que ele
principalmente tirava o albergue e a comida.
Digo que principalmente vivia delas, porque
o Custódio não recusava meter-se em alguns negócios, com a condição de os
escolher, e escolhia sempre os que não prestavam para nada. Tinha o faro das
catástrofes. Entre vinte empresas, adivinhava logo a insensata, e metia ombros
a ela, com resolução. O caiporismo, que
o perseguia, fazia com que as dezenove prosperassem, e a vigésima lhe
estourasse nas mãos. Não importa; aparelhava-se para outra[11].
Agora, por exemplo, leu um anúncio de
alguém que pedia um sócio, com cinco contos de réis, para entrar em certo
negócio, que prometia dar, nos primeiros seis meses, oitenta a cem contos de
lucro. Custódio foi ter com o anunciante. Era uma grande idéia, uma fábrica de
agulhas, indústria nova, de imenso futuro. E os planos, os desenhos da fábrica,
os relatórios de Birmingham, os mapas de importação, as respostas dos
alfaiates, dos donos de armarinho, etc., todos os documentos de um longo
inquérito passavam diante dos olhos de Custódio, estrelados de algarismos, que ele não entendia, e que por isso mesmo
lhe pareciam dogmáticos. Vinte e quatro horas; não pedia mais de vinte e
quatro horas para trazer os cinco contos. E saiu dali, cortejado, animado pelo
anunciante, que, ainda à porta, o afogou numa torrente de saldos. Mas os cinco
contos, menos dóceis ou menos vagabundos que os cinco mil-réis, sacudiam
incredulamente a cabeça, e deixavam-se estar nas arcas, tolhidos de medo e de
sono. Nada. Oito ou dez amigos, a quem falou, disseram-lhe que nem dispunham
agora da soma pedida, nem acreditavam na fábrica. Tinha perdido as esperanças, quando aconteceu subir a rua do Rosário e
ler no portal de um cartório o nome de Vaz Nunes. Estremeceu de alegria;
recordou a Tijuca, as maneiras do tabelião, as frases com que ele lhe respondeu
ao brinde, e disse consigo que este era o salvador da situação.[12]
- Venho pedir-lhe uma escritura...
Vaz Nunes, armado para outro começo, não
respondeu: espiou para cima dos óculos e esperou.
- Uma escritura de gratidão, explicou o
Custódio; venho pedir-lhe um grande favor, um favor indispensável, e conto que
o meu amigo...
- Se
estiver nas minhas mãos...[13]
- O negócio é excelente, note-se bem; um
negócio magnífico. Nem eu me metia a incomodar os outros sem certeza do
resultado. A coisa está pronta; foram já encomendas para a Inglaterra; e é
provável que dentro de dois meses esteja tudo montado, é uma indústria nova.
Somos três sócios, a minha parte são cinco contos. Venho pedir-lhe esta
quantia, a seis meses, - ou a três, com juro módico...
- Cinco contos?
- Sim, senhor.
- Mas, Sr. Custódio, não disponho de tão
grande quantia. Os negócios andam mal; e ainda que andassem muito bem, não
poderia dispor de tanto. Quem é que pode esperar cinco contos de um modesto
tabelião de notas?
- Ora, se o senhor quisesse...
- Quero, decerto; digo-lhe que se se
tratasse de uma quantia pequena, acomodada aos meus recursos, não teria dúvida
em adiantá-la. Mas cinco contos! Creia que é impossível.
A alma do Custódio caiu de bruços. Subira
pela escada de Jacó até o céu; mas em vez de descer como os anjos no sonho
bíblico, rolou abaixo e caiu de bruços. Era a última esperança; e justamente
por ter sido inesperada, é que ele supôs que fosse certa, pois, como todos os
corações que se entregam ao regime do eventual, o do Custódio era
supersticioso. O pobre-diabo sentiu enterrarem-se-lhe no corpo os milhões de
agulhas que a fábrica teria de produzir no primeiro semestre. Calado, com os
olhos no chão, esperou que o tabelião continuasse, que se compadecesse, que lhe
desse alguma aberta; mas o tabelião, que lia isso mesmo na alma do Custódio,
estava também calado, girando entre os dedos a boceta de rapé, respirando
grosso, com um certo chiado nasal e implicante. Custódio ensaiou todas as
atitudes; ora pedinte, ora general. O tabelião não se mexia. Custódio
ergueu-se.
- Bem, disse ele, com uma pontazinha de
despeito, há de perdoar o incômodo. . .
- Não há que perdoar; eu é que lhe peço
desculpa de não poder servi-lo, como desejava. Repito: se fosse alguma quantia menos avultada, não teria dúvida;
mas...[14]
Estendeu a mão ao Custódio, que com a
esquerda pegara maquinalmente no chapéu. O olhar empanado do Custódio exprimia
a absorção da alma dele, apenas convalescida da queda que lhe tirara as últimas
energias. Nenhuma escada misteriosa, nenhum céu; tudo voara a um piparote do
tabelião. Adeus, agulhas! A realidade veio tomá-lo outra vez com as suas unhas
de bronze. Tinha de voltar ao precário, ao adventício, às velhas contas, com os
grandes zeros arregalados e os cifrões retorcidos à laia de orelhas, que
continuariam a fitá-lo e a ouvi-lo, a ouvi-lo e a fitá-lo, alongando para ele
os algarismos implacáveis de fome. Que queda! e que abismo! Desenganado, olhou
para o tabelião com um gesto de despedida; mas, uma idéia súbita clareou-lhe a
noite do cérebro. Se a quantia fosse
menor, Vaz Nunes poderia servi-lo, e com prazer; por que não seria uma quantia
menor? Já agora abria mão da empresa; mas não podia fazer o mesmo a uns
aluguéis atrasados, a dois ou três credores, etc., e uma soma razoável, quinhentos
mil-réis, por exemplo, uma vez que o tabelião tinha a boa vontade de
emprestar-lhos, vinham a ponto. A alma do Custódio empertigou-se; vivia do
presente, nada queria saber do passado, nem saudades, nem temores, nem
remorsos. O presente era tudo. O presente eram os quinhentos mil-réis, que ele
ia ver surdir da algibeira do tabelião, como um alvará de liberdade.
- Pois bem, disse ele, veja o que me pode
dar, e eu irei ter com outros amigos... Quanto?
- Não posso dizer nada a este respeito,
porque realmente só uma coisa muito modesta.
- Quinhentos mil-réis?
- Não; não posso.
- Nem quinhentos mil-réis?
- Nem isso, replicou firme o tabelião. De
que se admira? Não lhe nego que tenho algumas propriedades; mas, meu amigo, não
ando com elas no bolso; e tenho certas obrigações particulares... Diga-me, não
está empregado?
- Não, senhor.
-
Olhe; dou-lhe coisa melhor do que quinhentos mil-réis; falarei ao ministro da
justiça, tenho relações com ele, e... [15]
Custódio interrompeu-o, batendo uma palmada
no joelho. Se foi um movimento natural, ou uma diversão astuciosa para não
conversar do emprego, é o que totalmente ignoro; nem parece que seja essencial
ao caso. O essencial é que ele teimou na súplica. Não podia dar quinhentos
mil-réis? Aceitava duzentos; bastavam-lhe duzentos, não para a empresa, pois
adotava o conselho dos amigos: ia recusá-la. Os duzentos mil-réis, visto que o
tabelião estava disposto a ajudá-lo, eram para uma necessidade urgente, -
"tapar um buraco". E então relatou tudo, respondeu à franqueza com
franqueza: era a regra da sua vida. Confessou que, ao tratar da grande empresa,
tivera em mente acudir também a um credor pertinaz, um diabo, um judeu, que
rigorosamente ainda lhe devia, mas tivera a aleivosia de trocar de posição.
Eram duzentos e poucos mil-réis; e dez, parece; mas aceitava duzentos...
- Realmente, custa-me repetir-lhe o que
disse; mas, enfim, nem os duzentos mil-réis posso dar. Cem mesmo, se o senhor
os pedisse, estão acima das minhas forças nesta ocasião. Noutra pode ser, e não
tenho dúvida, mas agora...
- Não imagina os apuros em que estou!
- Nem cem, repito. Tenho tido muitas
dificuldades nestes últimos tempos. Sociedades, subscrições, maçonaria...
Custa-lhe crer, não é? Naturalmente: um proprietário. Mas, meu amigo, é muito
bom ter casas: o senhor é que não conta os estragos, os consertos, as
penas-d'água, as décimas, o seguro, os calotes, etc. São os buracos do pote,
por onde vai a maior parte da água...
- Tivesse eu um pote! suspirou Custódio.
- Não digo que não. O que digo é que não
basta ter casas para não ter cuidados, despesas, e até credores... Creia o
senhor que também eu tenho credores.
- Nem cem mil-réis!
- Nem cem mil-réis, pesa-me dizê-lo, mas é
verdade. Nem cem mil-réis. Que horas são?
Levantou-se, e veio ao meio da sala.
Custódio veio também, arrastado, desesperado. Não podia acabar de crer que o
tabelião não tivesse ao menos cem mil-réis. Quem é que não tem cem mil-réis
consigo? Cogitou uma cena patética, mas o cartório abria para a rua; seria
ridículo. Olhou para fora. Na loja fronteira, um sujeito apreçava uma
sobrecasaca, à porta, porque entardecia depressa, e o interior era escuro. O
caixeiro segurava a obra no ar; o freguês examinava o pano com a vista e com os
dedos, depois as costuras, o forro... Este incidente rasgou-lhe um horizonte
novo, embora modesto; era tempo de aposentar o paletó que trazia. Mas nem
cinqüenta mil-réis podia dar-lhe o tabelião. Custódio sorriu; - não de desdém,
não de raiva, mas de amargura e dúvida; era impossível que ele não tivesse
cinqüenta mil-réis. Vinte, ao menos? Nem vinte. Nem vinte! Não; falso tudo,
tudo mentira.
Custódio tirou o lenço, alisou o chapéu
devagarinho; depois guardou o lenço, concertou a gravata, com um ar misto de
esperança e despeito. Viera cerceando as asas à ambição, pluma a pluma; restava
ainda uma penugem curta e fina, que lhe metia umas veleidades de voar. Mas o
outro, nada. Vaz Nunes cotejava o relógio da parede com o do bolso, chegava
este ao ouvido, limpava o mostrador, calado, transpirando por todos os poros
impaciência e fastio. Estavam a pingar as cinco, enfim, e o tabelião, que as
esperava, desengatilhou a despedida. Era tarde; morava longe. Dizendo isto,
despiu o paletó de alpaca, e vestiu o de casimira, mudou de um para outro a
boceta de rapé, o lenço, a carteira... Oh! a carteira! Custódio viu esse
utensílio problemático, apalpou-o com os olhos; invejou a alpaca, invejou a
casimira, quis ser algibeira, quis ser o couro, a matéria mesma do precioso
receptáculo. Lá vai ela; mergulhou de todo no bolso do peito esquerdo; o
tabelião abotoou-se. Nem vinte mil-réis! Era impossível que não levasse ali
vinte mil-réis, pensava ele; não diria duzentos, mas vinte, dez que fossem. . .
- Pronto! disse-lhe Vaz Nunes, com o chapéu
na cabeça.
Era o fatal instante. Nenhuma palavra do
tabelião, um convite ao menos, para jantar; nada; findara tudo. Mas os momentos
supremos pedem energias supremas. Custódio sentiu toda a força deste
lugar-comum, e, súbito, como um tiro, perguntou ao tabelião se não lhe podia dar
ao menos dez mil-réis.
- Quer ver?
E o tabelião desabotoou o paletó, tirou a
carteira, abriu-a, e mostrou-lhe duas notas de cinco mil-réis.
- Não tenho mais, disse ele; o que posso
fazer é reparti-los com o senhor; dou-lhe uma de cinco, e fico com a outra;
serve-lhe?
Custódio
aceitou os cinco mil-réis, não triste, ou de má cara, mas risonho, palpitante,
como se viesse de conquistar a Ásia Menor. Era o jantar certo. Estendeu a mão
ao outro, agradeceu-lhe o obséquio, despediu-se até breve, - um até breve cheio
de afirmações implícitas. Depois saiu; o pedinte esvaiu-se à porta do cartório;
o general é que foi por ali abaixo, pisando rijo, encarando fraternalmente os
ingleses do comércio que subiam a rua para se transportarem aos arrabaldes.
Nunca o céu lhe pareceu tão azul, nem a tarde tão límpida; todos os homens
traziam na retina a alma da hospitalidade. Com
a mão esquerda no bolso das calças, ele apertava amorosamente os cinco
mil-réis, resíduo de uma grande ambição, que ainda há pouco saíra contra o sol,
num ímpeto de águia, e ora habita modestamente as asas de frango rasteiro[16].
A
sereníssma república
(Conferência do Cônego Vargas)
Meus senhores,
Antes
de comunicar-vos uma descoberta, que reputo de algum lustre para o nosso país,
deixai que vos agradeça a prontidão com que acudisses ao meu chamado. Sei que
um interesse superior vos trouxe aqui; mas não ignoro também, - e fora
ingratidão ignorá-lo, - que um pouco de simpatia pessoal se mistura à vossa
legítima curiosidade científica. Oxalá possa eu corresponder a ambas.
Minha descoberta não é recente; data do fim
do ano de 1876. Não a divulguei então, - e, a não ser o Globo, interessante
diário desta capital, não a divulgaria ainda agora, - por uma razão que achará
fácil entrada no vosso espírito. Esta obra de que venho falar-vos, carece de
retoques últimos, de verificações e experiências complementares. Mas o Globo
noticiou que um sábio inglês descobriu a linguagem fônica dos insetos, e cita o
estudo feito com as moscas. Escrevi logo para a Europa e aguardo as respostas
com ansiedade. Sendo certo, porém, que pela navegação aérea, invento do padre
Bartolomeu, é glorificado o nome estrangeiro, enquanto o do nosso patrício mal
se pode dizer lembrado dos seus naturais, determinei evitar a sorte do insigne
Voador, vindo a esta tribuna, proclamar alto e bom som, à face do universo, que muito antes daquele sábio, e fora das
ilhas britânicas, um modesto naturalista descobriu coisa idêntica, e fez com
ela obra superior.
Senhores, vou assombrar-vos, como teria
assombrado a Aristóteles, se lhe perguntasse: Credes que se possa dar um regime
social às aranhas? Aristóteles responderia negativamente, com vós todos, porque
é impossível crer que jamais se chegasse a organizar socialmente esse
articulado arisco, solitário, apenas disposto ao trabalho, e dificilmente ao
amor. Pois bem, esse impossível fi-lo
eu. [17]
Ouço um riso, no meio do sussurro de
curiosidade. Senhores, cumpre vencer os preconceitos. A aranha parece-vos inferior, justamente porque não a conheceis[18]. Amais
o cão, prezais o gato e a galinha, e não advertis que a aranha não pula nem
ladra como o cão, não mia como o gato, não cacareja como a galinha, não zune
nem morde como o mosquito, não nos leva o sangue e o sono como a pulga. Todos
esses bichos são o modelo acabado da vadiação e do parasitismo. A mesma
formiga, tão gabada por certas qualidades boas, dá no nosso açúcar e nas nossas
plantações, e funda a sua propriedade roubando a alheia. A aranha, senhores,
não nos aflige nem defrauda; apanha as moscas, nossas inimigas, fia, tece,
trabalha e morre. Que melhor exemplo de paciência, de ordem, de previsão, de
respeito e de humanidade? Quanto aos seus talentos, não há duas opiniões. Desde
Plínio até Darwin, os naturalistas do mundo inteiro formam um só coro de
admiração em torno desse bichinho, cuja maravilhosa teia a vassoura
inconsciente do vosso criado destrói em menos de um minuto. Eu repetiria agora
esses juízos, se me sobrasse tempo; a matéria, porém, excede o prazo, sou
constrangido a abreviá-la. Tenho-os aqui, não todos, mas quase todos; tenho,
entre eles, esta excelente monografia de Büchner, que com tanta subtileza
estudou a vida psíquica dos animais. Citando Darwin e Büchner, é claro que me
restrinjo à homenagem cabida a dois sábios de primeira ordem, sem de nenhum
modo absolver (e as minhas vestes o proclamam) as teorias gratuitas e errôneas
do materialismo.
Sim, senhores,
descobri uma espécie araneida que dispõe do uso da fala; coligi alguns,
depois muitos dos novos articulados, e organizei-os socialmente. O primeiro
exemplar dessa aranha maravilhosa apareceu-me no dia 15 de dezembro de 1876.
Era tão vasta, tão colorida, dorso rubro, com listras azuis, transversais, tão
rápida nos movimentos, e às vezes tão alegre, que de todo me cativou a atenção.
No dia seguinte vieram mais três, e as quatro tomaram posse de um recanto de
minha chácara. Estudei-as longamente; achei-as admiráveis. Nada, porém, se pode comparar ao pasmo que me causou a descoberta do
idioma araneida, uma língua, senhores, nada menos que uma língua rica e
variada, com a sua estrutura sintáxica, os seus verbos, conjugações,
declinações, casos latinos e formas onomatopaicas, uma língua que estou
gramaticando para uso das academias, como o fiz sumariamente para meu próprio
uso. E fi-lo, notai bem, vencendo dificuldades aspérrimas com uma paciência
extraordinária. Vinte vezes desanimei; mas o amor da ciência dava-me forças
para arremeter a um trabalho que, hoje declaro, não chegaria a ser feito duas
vezes na vida do mesmo homem[19].
Guardo para outro recinto a descrição
técnica do meu arácnide, e a análise da língua. O objeto desta conferência é,
como disse, ressalvar os direitos da ciência brasileira, por meio de um
protesto em tempo; e, isto feito, dizer-vos a parte em que reputo a minha obra
superior à do sábio de Inglaterra. Devo demonstrá-lo, e para este ponto chamo a
vossa atenção.
Dentro de um mês tinha comigo vinte
aranhas; no mês seguinte cinqüenta e cinco; em março de 1877 contava
quatrocentas e noventa. Duas forças serviram principalmente à empresa de as
congregar: - o emprego da língua delas, desde que pude discerni-la um pouco, e
o sentimento de terror que lhes infundi. A minha estatura, as vestes talares, o
uso do mesmo idioma, fizeram-lhes crer que era eu o deus das aranhas, e desde
então adoraram-me. E vede o benefício desta ilusão. Como as acompanhasse com
muita atenção e miudeza, lançando em um
livro as observações que fazia, cuidaram que o livro era o registro dos seus
pecados, e fortaleceram-se ainda mais na prática das virtudes. A flauta
também foi um grande auxiliar. Como sabeis, ou deveis saber, elas são doidas
por música.
Não bastava associá-las; era preciso,
dar-lhes um governo idôneo. Hesitei na escolha; muitos dos atuais pareciam-me
bons, alguns excelentes, mas todos tinham contra si o existirem. Explico-me.
Uma forma vigente de governo ficava exposta a comparações que poderiam
amesquinhá-la. Era-me preciso, ou achar uma forma nova, ou restaurar alguma
outra abandonada.
Naturalmente
adotei o segundo alvitre, e nada me pareceu mais acertado do que uma república,
à maneira de Veneza, o mesmo molde, e até o mesmo epíteto. Obsoleto, sem
nenhuma analogia, em suas feições gerais, com qualquer outro governo vivo,
cabia-lhe ainda a vantagem de um mecanismo complicado, - o que era meter à
prova as aptidões políticas da jovem sociedade.
Outro motivo determinou a minha escolha.
Entre os diferentes modos eleitorais da antiga Veneza, figurava o do saco e
bolas, iniciação dos filhos da nobreza no serviço do Estado. Metiam-se as bolas
com os nomes dos candidatos no saco, e extraía-se anualmente um certo número,
ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras públicas. Este sistema
fará rir aos doutores do sufrágio; a mim não. Ele exclui os desvarios da
paixão, os desazos da inépcia, o congresso da corrupção e da cobiça. Mas não foi só por isso que o aceitei[20];
tratando-se de um povo tão exímio na fiação de suas teias, o uso do saco
eleitoral era de fácil adaptação, quase uma planta indígena.
A proposta foi aceita. Sereníssima República pareceu-lhes um título magnífico, roçagante,
expansivo, próprio a engrandecer a obra popular.
Não direi, senhores, que a obra chegou à
perfeição, nem que lá chegue tão cedo. Os meus pupilos não são os solários de
Campanela[21]
ou os utopistas de Morus[22]; formam
um povo recente, que não pode trepar de um salto ao cume das nações seculares.
Nem o tempo é operário que ceda a outro a lima ou o alvião; ele fará mais e
melhor do que as teorias do papel, válidas no papel e mancas na prática. O que
posso afirmar-vos é que, não obstante as incertezas da idade, eles caminham,
dispondo de algumas virtudes, que presumo essenciais à duração de um Estado.
Uma delas, como já disse, é a perseverança, uma longa paciência de Penélope,
segundo vou mostrar-vos.
Com efeito, desde que compreenderam que no
ato eleitoral estava a base da vida pública, trataram de o exercer com a maior
atenção. O fabrico do saco foi uma obra nacional. Era um saco de cinco
polegadas de altura e três de largura, tecido com os melhores fios, obra sólida
e espessa. Para compô-lo foram aclamadas dez damas principais, que receberam o
título de mães da república, além de outros privilégios e foros. Uma
obra-prima, podeis crê-lo. O processo eleitoral é simples. As bolas recebem os
nomes dos candidatos, que provarem certas condições, e são escritas por um
oficial público, denominado "das inscrições". No dia da eleição, as
bolas são metidas no saco e tiradas pelo oficial das extrações, até perfazer o
número dos elegendos. Isto que era um simples processo inicial na antiga
Veneza, serve aqui ao provimento de todos os cargos.
A eleição fez-se a princípio com muita
regularidade; mas, logo depois, um dos legisladores declarou que ela fora viciada, por terem entrado no
saco duas bolas com o nome do mesmo candidato. A assembléia verificou a
exatidão da denúncia, e decretou que o saco, até ali de três polegadas de
largura, tivesse agora duas; limitando-se a capacidade do saco, restringia-se o
espaço à fraude, era o mesmo que suprimi-la. Aconteceu, porém, que na eleição
seguinte, um candidato deixou de ser inscrito na competente bola, não se sabe
se por descuido ou intenção do oficial público. Este declarou que não se
lembrava de ter visto o ilustre candidato, mas acrescentou nobremente que não
era impossível que ele lhe tivesse dado o nome; neste caso não houve exclusão,
mas distração. A assembléia, diante de um fenômeno psicológico inelutável, como
é a distração, não pôde castigar o oficial; mas, considerando que a estreiteza
do saco podia dar lugar a exclusões odiosas, revogou a lei anterior e restaurou
as três polegadas.
Nesse ínterim, senhores, faleceu o primeiro
magistrado, e três cidadãos apresentaram-se candidatos ao posto, mas só dois
importantes, Hazeroth e Magog, os próprios chefes do partido retilíneo e do partido
curvilíneo. Devo explicar-vos estas denominações. Como eles são principalmente
geômetras, é a geometria que os divide em política. Uns entendem que a aranha
deve fazer as teias com fios retos, é o partido retilíneo; - outros pensam, ao
contrário, que as teias devem ser trabalhadas com fios curvos, - é o partido
curvilíneo. Há ainda um terceiro partido, misto e central, com este postulado:
- as teias devem ser urdidas de fios retos e fios curvos; é o partido
reto-curvilíneo; e finalmente, uma quarta divisão política, o partido
anti-reto-curvilíneo, que fez tábua rasa de todos os princípios litigantes, e
propõe o uso de umas teias urdidas de ar, obra transparente e leve, em que não
há linhas de espécie alguma. Como a geometria apenas poderia dividi-los, sem
chegar a apaixoná-los, adotaram uma simbólica. Para uns, a linha reta exprime
os bons sentimentos, a justiça, a probidade, a inteireza, a constância, etc.,
ao passo que os sentimentos ruins ou inferiores, como a bajulação, a fraude, a
deslealdade, a perfídia, são perfeitamente curvos. Os adversários respondem que
não, que a linha curva é a da virtude e do saber, porque é a expressão da
modéstia e da humildade; ao contrário, a ignorância, a presunção, a toleima, a
parlapatice, são retas, duramente retas. O terceiro partido, menos anguloso,
menos exclusivista, desbastou a exageração de uns e outros, combinou os
contrastes, e proclamou a simultaneidade das linhas como a exata cópia do mundo
físico e moral. O quarto limita-se a negar tudo.
Nem Hazeroth nem Magog foram eleitos. As
suas bolas saíram do saco, é verdade, mas foram inutilizadas, a do primeiro por
faltar a primeira letra do nome, a do segundo por lhe faltar a última. O nome
restante e triunfante era o de um argentário ambicioso, político obscuro, que
subiu logo à poltrona ducal, com espanto geral da república. Mas os vencidos
não se contentaram de dormir sobre os louros do vencedor; requereram uma
devassa. A devassa mostrou que o oficial das inscrições intencionalmente
viciara a ortografia de seus nomes. O oficial confessou o defeito e a intenção;
mas explicou-os dizendo que se tratava de uma simples elipse; delito, se o era,
puramente literário. Não sendo possível perseguir ninguém por defeitos de
ortografia ou figuras de retórica, pareceu acertado rever a lei. Nesse mesmo
dia ficou decretado que o saco seria feito de um tecido de malhas, através das
quais as bolas pudessem ser lidas pelo público, e, ipso facto, pelos mesmos
candidatos, que assim teriam tempo de corrigir as inscrições.
Infelizmente,
senhores, o comentário da lei é a eterna malícia. A mesma porta aberta à
lealdade serviu à astúcia[23] de um certo Nabiga,
que se conchavou com o oficial das extrações, para haver um lugar na
assembléia. A vaga era uma, os candidatos três; o oficial extraiu as bolas com
os olhos no cúmplice, que só deixou de abanar negativamente a cabeça, quando a
bola pegada foi a sua. Não era preciso mais para condenar a idéia das malhas. A
assembléia, com exemplar paciência, restaurou o tecido espesso do regime
anterior; mas, para evitar outras elipses, decretou a validação das bolas cuja
inscrição estivesse incorreta, uma vez que cinco pessoas jurassem ser o nome
inscrito o próprio nome do candidato.
Este novo estatuto deu lugar a um caso novo
e imprevisto, como ides ver. Tratou-se de eleger um coletor de espórtulas,
funcionário encarregado de cobrar as rendas públicas, sob a forma de espórtulas
voluntárias. Eram candidatos, entre outros, um certo Caneca e um certo
Nebraska. A bola extraída foi a de Nebraska. Estava errada, é certo, por lhe
faltar a última letra; mas, cinco testemunhas juraram, nos termos da lei, que o
eleito era o próprio e único Nebraska da república. Tudo parecia findo, quando
o candidato Caneca requereu provar que a bola extraída não trazia o nome de Nebraska,
mas o dele. O juiz de paz deferiu ao peticionário. Veio então um grande
filólogo, - talvez o primeiro da república, além de bom metafísico, e não
vulgar matemático, - o qual provou a coisa nestes termos:
- Em primeiro lugar, disse ele, deveis notar
que não é fortuita a ausência da última letra do nome Nebraska. Por que motivo foi ele inscrito
incompletamente? Não se pode dizer que por fadiga ou amor da brevidade, pois só
falta a última letra, um simples a. Carência de espaço? Também não; vede: há
ainda espaço para duas ou três sílabas. Logo, a falta é intencional, e a
intenção não pode ser outra, senão chamar a atenção do leitor para a letra k,
última escrita, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, por um efeito mental,
que nenhuma lei destruiu, a letra reproduz-se no cérebro de dois modos, a forma
gráfica e a forma sônica: k e ca. O defeito, pois, no nome escrito,
chamando os olhos para a letra final, incrusta desde logo no cérebro, esta
primeira sílaba: Ca. Isto posto, o movimento natural do espírito é ler o nome
todo; volta-se ao princípio, à inicial ne, do nome Nebrask. - Cané. - Resta a
sílaba do meio, bras, cuja redução a esta outra sílaba ca, última do nome
Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. E, todavia, não a demonstrarei,
visto faltar-vos o preparo necessário ao entendimento da significação
espiritual ou filosófica da sílaba, suas origens e efeitos, fases,
modificações, conseqüências lógicas e sintáxicas, dedutivas ou indutivas,
simbólicas e outras. Mas, suposta a
demonstração, aí fica a última prova, evidente, clara, da minha afirmação
primeira pela anexação da sílaba ca às duas Cane, dando este nome Caneca. [24]
A lei emendou-se, senhores, ficando abolida
a faculdade da prova testemunhal e interpretativa dos textos, e introduzindo-se
uma inovação, o corte simultâneo de meia polegada na altura e outra meia na
largura do saco. Esta emenda não evitou um pequeno abuso na eleição dos
alcaides, e o saco foi restituído às dimensões primitivas, dando-se-lhe,
todavia, a forma triangular. Compreendeis que esta forma trazia consigo, uma
conseqüência: ficavam muitas bolas no fundo. Daí a mudança para a forma
cilíndrica; mais tarde deu-se-lhe o aspecto de uma ampulheta, cujo
inconveniente se reconheceu ser igual ao triângulo, e então adotou-se a forma
de um crescente, etc. Muitos abusos, descuidos e lacunas tendem a desaparecer,
e o restante terá igual destino, não inteiramente, decerto, pois a perfeição
não é deste mundo, mas na medida e nos termos do conselho de um dos mais
circunspectos cidadãos da minha república, Erasmus, cujo último discurso sinto
não poder dar-vos integralmente. Encarregado de notificar a última resolução
legislativa às dez damas incumbidas de urdir o saco eleitoral, Erasmus
contou-lhes a fábula de Penélope, que fazia e desfazia a famosa teia, à espera
do esposo Ulisses.
- Vós
sois a Penélope da nossa república, disse ele ao terminar; tendes a mesma
castidade, paciência e talentos. Refazei o saco, amigas minhas, refazei o saco,
até que Ulisses, cansado de dar às pernas, venha tomar entre nós o lugar que
lhe cabe. Ulisses é a Sapiência. [25]
O
espelho
Esboço de uma nova teoria da alma humana
Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma
noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos
trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa
Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se
misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas
agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma
atmosfera límpida e sossegada, estavam
os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo
amigavelmente os mais árduos problemas do universo.
Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram
quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem[26],
calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou
outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros,
entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não
sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e
defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem,
como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não
controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como
desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e
desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava
ele) refletiu um instante, e respondeu:
- Pensando bem, talvez o senhor tenha
razão.
Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu
que este casmurro[27] usou da
palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em
seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente
os quatro amigos.
Cada cabeça, cada sentença; não só o
acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela
multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco,
talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao
Jacobina alguma opinião, - uma conjetura, ao menos.
- Nem conjetura, nem opinião, redargüiu
ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não
discuto. Mas, se querem ouvir-me
calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara
demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma
só alma, há duas...[28]
- Duas?
- Nada menos de duas almas. Cada criatura
humana traz duas almas consigo: uma que
olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se
à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica.
Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um
espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há
casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma
pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de
botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma
é transmitir a vida, como a primeira; as
duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem
perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não
raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.
Shylock, por exemplo. A alma exterior aquele judeu eram os seus ducados;
perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal;
é um punhal que me enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos
ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...
- Não?
- Não, senhor; muda de natureza e de
estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o
Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell.
São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza
mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos,
foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de
irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade,
gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a
estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por
outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...
- Perdão; essa senhora quem é?
- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o
mesmo nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho
experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao
episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...
Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o
caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa
curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia,
fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até
há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos
estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis
aqui como ele começou a narração:
- Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e
acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento
que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente!
Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura.
Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como
na Escritura; e o motivo não foi outro
senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também
que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples
distinção.[29]
Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de
revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram
satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por
amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão
Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário,
desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui,
acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina,
apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava
antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes.
Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que
tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a
província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era
alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a
cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado
dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira.
Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos
escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor
lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo
da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho,
obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta
e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe,
que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não
sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente
muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns
delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de
madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...
- Espelho
grande? [30]
- Grande. E foi, como digo, uma enorme
fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não
houve forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que
era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes"
merecia muito mais. O certo é que todas
essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação,
que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio
eu?
- Não.
- O
alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas
equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte
mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o
sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a
cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me
falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que
entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado.
Custa-lhes acreditar, não?
- Custa-me até entender, respondeu um dos
ouvintes.
- Vai entender. Os fatos explicarão melhor
os sentimentos: os fatos são tudo. A
melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me
lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos.
Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do
alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se
eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor.
No fim de três semanas, era outro,
totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia
Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador
residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! adeus,
alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse
com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição,
disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que
fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti
uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um
cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se
reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava
a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais
débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de
certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica
interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de
alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito
bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita,
filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático.
Ah ! pérfidos! mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.
- Matá-lo?
- Antes assim fosse.
- Coisa pior?
- Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de
movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram.
Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto
e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo;
ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de
mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães
foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era
melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha
medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras
horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também
um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste
notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei
o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima
enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum[31];
finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no
outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou
sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que
houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação
muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em
toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram
mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa.
As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula
tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da
eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de
Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never!
confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era
justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never, for ever!- For
ever, never![32]
Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E
então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que
de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais
larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no
terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se?
- Sim, parece que tinha um pouco de medo.
- Oh! fora bom se eu pudesse ter medo!
Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter
medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável.
Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era
outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte,
mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o sono,
eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior.
Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me
elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e
prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso
fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a
consciência do meu ser novo e único -porque a alma interior perdia a ação
exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não
tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de
regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien venir?[33] Nada,
coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da
estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado,
estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava,
tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de
escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi
nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases
soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se
estar. Soeur Anne, soeur Anne... Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a
tinta e alvejar o papel.
- Mas não comia?
- Comia mal, frutas, farinha, conservas,
algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a
terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos
latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta
volumes. As vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o
efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo
silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno
tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...
- Na verdade, era de enlouquecer.
- Vão
ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só
vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um
impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela
casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a
contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o
espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro
parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e
inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis
físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os
mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha
sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que
andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo.
E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando
para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a
vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com
estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De
quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma
difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me.
Subitamente por uma
inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem
capazes de adivinhar qual foi a minha idéia...
- Diga.
- Estava a olhar para o vidro, com uma
persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e
inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento...
Não, não são capazes de adivinhar.
- Mas, diga, diga.
- Lembrou-me
vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava
defronte do espelho, levantei os olhos, e...não lhes digo nada; o vidro
reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno
diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma
ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida
no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os
olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não
conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é
Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do
sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro,
recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato,
era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho,
lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com
este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...
Quando os outros voltaram a si, o narrador
tinha descido as escadas.
Uma
visita de Alcibiades[34]
CARTA DO DESEMBARGADOR X... AO CHEFE DE
POLÍCIA DA CORTE
Corte, 20 de setembro de 1875.
Desculpe
V. Ex.ª o tremido da letra e o desgrenhado do estilo; entendê-los-á daqui a
pouco.
Hoje, à tardinha, acabado o jantar,
enquanto esperava a hora do Cassino, estirei-me no sofá e abri um tomo de
Plutarco. V. Ex.ª, que foi meu companheiro de estudos, há de lembrar-se que eu,
desde rapaz, padeci esta devoção do grego; devoção ou mania, que era o nome que
V. Ex.ª lhe dava, e tão intensa que me ia fazendo reprovar em outras
disciplinas. Abri o tomo, e sucedeu o
que sempre se dá comigo quando leio alguma cousa antiga: transporto-me ao tempo
e ao meio da ação ou da obra.
Depois de jantar é excelente. Dentro de
pouco acha-se a gente numa via romana, ao pé de um pórtico grego ou na loja de
um gramático. Desaparecem os tempos modernos, a insurreição da Herzegovina, a
guerra dos carlistas, a Rua do Ouvidor, o circo Chiarini. Quinze ou vinte
minutos de vida antiga, e de graça. Uma verdadeira digestão literária.
Foi o que se deu hoje. A página aberta
acertou de ser a vida de Alcibíades. Deixei-me ir ao sabor da loqüela ática; [35]daí a
nada entrava nos jogos olímpicos, admirava o mais guapo dos atenienses, guiando
magnificamente o carro, com a mesma firmeza e donaire com que sabia reger as
batalhas, os cidadãos e os próprios sentidos. Imagine V. Ex.ª se vivi! Mas, o
moleque entrou e acendeu o gás; não foi preciso mais para fazer voar toda a
arqueologia da minha imaginação. Atenas volveu à história, enquanto os olhos me
caíam das nuvens, isto é, nas calças de brim branco, no paletó de alpaca e nos
sapatos de cordovão. E então refleti comigo:
- Que impressão daria ao ilustre ateniense
o nosso vestuário moderno?
Sou
espiritista desde alguns meses. Convencido de que todos os sistemas são
puras niilidades, resolvi adotar o mais recreativo deles. Tempo virá em que
este não seja só recreativo, mas também útil à solução dos problemas
históricos; é mais sumário evocar o espírito dos mortos, do que gastar as forças
críticas, e gastá-las em pura perda, porque
não há raciocínio nem documento que nos explique melhor a intenção de um ato do
que o próprio autor do ato. E tal era o meu caso desta noite.
Conjeturar qual fosse a impressão de
Alcibíades era despender o tempo, sem outra vantagem, além do gosto de admirar
a minha própria habilidade. Determinei portanto, evocar o ateniense; pedi-lhe
que comparecesse em minha casa, logo, sem demora.
E aqui
começa o extraordinário da aventura. Não se demorou Alcibíades em acudir ao
chamado; dous minutos depois estava ali, na minha sala, perto da parede; mas
não era a sombra impalpável que eu cuidara ter evocado pelos métodos da nossa
escola; era o próprio Alcibíades, carne e osso, vero homem, grego autêntico,
trajado à antiga, cheio daquela gentileza e desgarre com que usava arengar às
grandes assembléias de Atenas, e também, um pouco, aos seus pataus. V. Ex.ª,
tão sabedor da história, não ignora que também houve pataus em Atenas; sim,
Atenas também os possuiu, e esse precedente é uma desculpa. Juro a V.Ex.ª que
não acreditei; por mais fiel que fosse o testemunho dos sentidos, não podia acabar de crer que tivesse ali,
em minha casa, não a sombra de Alcibíades, mas o próprio Alcibíades redivivo.
Nutri ainda a esperança de que tudo aquilo não fosse mais do que o efeito de
uma digestão mal rematada, um simples eflúvio do quilo, através da luneta de
Plutarco; e então esfreguei os olhos, fitei-os, e...
- Que me queres? perguntou ele.
Ao ouvir isto, arrepiaram-se-me as carnes.
O vulto falava e falava grego, o mais puro ático. Era ele, não havia duvidar que era ele mesmo, um morto de vinte
séculos, restituído à vida, tão cabalmente como se viesse de cortar agora mesmo
a famosa cauda do cão. Era claro que, sem o pensar, acabava eu de dar um
grande passo na carreira do espiritismo; mas, ai de mim! não o entendi logo, e
deixei-me ficar assombrado. Ele repetiu a pergunta, olhou em volta de si e
sentou-se numa poltrona. Como eu estivesse frio e trêmulo (ainda o estou agora)
ele que o percebeu, falou-me com muito carinho, e tratou de rir e gracejar para
o fim de devolver-me o sossego e a confiança. Hábil como outrora! Que mais
direi a V. Ex.ª? No fim de poucos minutos conversávamos os dous, em grego
antigo, ele repotreado e natural, eu pedindo a todos os santos do céu a
presença de um criado, de uma visita, de uma patrulha, ou, se tanto fosse
necessário, - de um incêndio.
Escusado é dizer a V. Ex.ª que abri mão da
idéia de o consultar acerca do vestuário moderno; pedira um espectro, não um homem
"de verdade", como dizem as crianças. Limitei-me a responder ao que
ele queria; pediu-me notícias de Atenas, dei-lhas; disse-lhe que ela era enfim
a cabeça de uma só Grécia, narrei-lhe a dominação muçulmana, a independência,
Botzaris, lord Byron. O grande homem tinha os olhos pendurados da minha boca;
e, mostrando-me admirado de que os mortos lhe não houvessem contado nada,
explicou-me que à porta do outro mundo afrouxavam muito os interesses deste.
Não vira Botzaris nem lord Byron, - em primeiro lugar, porque é tanta e
tantíssima a multidão de espíritos, que estes se fazem naturalmente
desencontrados; em segundo lugar, porque
eles lá congregam-se, não por nacionalidades ou outra ordem, senão por
categorias de índole, costume e profissão: assim é que ele, Alcibíades, anda no
grupo dos políticos elegantes e namorados, com o Duque de Buckingham, o
Garrett, o nosso Maciel Monteiro, etc.. Em seguida pediu-me notícias atuais;
relatei-lhe o que sabia, em resumo; falei-lhe do parlamento helênico e do
método alternativo com que Bulgaris e Comondouros, estadistas seus patrícios,
imitam Disraeli e Gladstone, revezando-se no poder, e, assim como estes, a
golpes de discurso. Ele, que foi um magnífico orador, interrompeu-me:
- Bravo, atenienses!
Se
entro nestas minúcias é para o fim de nada omitir do que possa dar a V. Ex.ª o
conhecimento exato do extraordinário caso que lhe vou narrando. Já disse que
Alcibíades escutava-me com avidez; acrescentarei que era esperto e arguto;
entendia as cousas sem largo dispêndio de palavras. Era também sarcástico; ao
menos assim me pareceu em um ou dois pontos da nossa conversação; mas no geral
dela, mostrava-se simples, atento, correto, sensível e digno. E gamenho, note
V. Ex.ª, tão gamenho como outrora; olhava de soslaio para o espelho, como fazem
as nossas e outras damas deste século, mirava os borzeguins, compunha o manto,
não saía de certas atitudes esculturais.
- Vá, continua, dizia-me ele, quando eu
parava de lhe dar notícias.
Mas eu
não podia mais. Entrado no inextricável, no maravilhoso, achava tudo possível,
não atinava por que razão, assim, como ele vinha ter comigo ao tempo, não iria
eu ter com ele à eternidade. Esta idéia gelou-me. Para um homem que acabou de
digerir o jantar e aguarda a hora do Cassino, a morte é o último dos sarcasmos.
Se pudesse fugir... Animei-me: disse-lhe
que ia a um baile.
- Um baile? Que cousa é um baile?
Expliquei-lho.
- Ah! ver dançar a pírrica!
- Não, emendei eu, a pírrica já lá vai.
Cada século, meu caro Alcibíades, muda de danças como muda de idéias. Nós já
não dançamos as mesmas cousas do século passado; provavelmente o século XX não
dançará as deste. A pírrica foi-se, com os homens de Plutarco e os numes de
Hesíodo.
- Com os numes?
Repeti-lhe que sim, que o paganismo
acabara, que as academias do século passado ainda lhe deram abrigo, mas sem
convicção, nem alma, que as mesmas bebedeiras arcádicas,
Evoé! padre Bassareu!
Evoé! etc.
honesto passatempo de alguns
desembargadores pacatos, essas mesmas estavam curadas, radicalmente curadas. De
longe em longe, acrescentei, um ou outro poeta, um ou outro prosador alude aos
restos da teogonia pagã, mas só o faz por gala ou brinco, ao passo que a
ciência reduziu todo o Olimpo, a uma simbólica. Morto, tudo morto.
- Morto Zeus?
- Morto.
- Dionisos, Afrodita?...
- Tudo morto.
O homem de Plutarco levantou-se, andou um
pouco, contendo a indignação, como se dissesse consigo, imitando o outro: - Ah!
se lá estou com os meus atenienses! - Zeus, Dionisos, Afrodita... murmurava de
quando em quando. Lembrou-me então que ele fora uma vez acusado de desacato aos
deuses e perguntei a mim mesmo donde vinha aquela indignação póstuma, e
naturalmente postiça. Esquecia-me, - um devoto do grego! - esquecia-me que ele
era também um refinado hipócrita, um ilustre dissimulado. E quase não tive
tempo de fazer esse reparo, porque Alcibíades, detendo-se repentinamente,
declarou-me que iria ao baile comigo.
- Ao baile? repeti atônito.
- Ao baile, vamos ao baile.
Fiquei aterrado, disse-lhe que não, que não
era possível, que não o admitiriam, com aquele trajo; pareceria doudo; salvo se
ele queria ir lá representar alguma comédia de Aristófanes, acrescentei rindo,
para disfarçar o medo. O que eu queria era deixá-lo, entregar-lhe a casa, e uma
vez na rua, não iria ao Cassino, iria ter com V. Ex.ª. Mas o diabo do homem não
se movia; escutava-me com os olhos no chão, pensativo, deliberante. Calei-me;
cheguei a cuidar que o pesadelo ia acabar, que o vulto ia desfazer-se, e que eu ficava ali com as minhas calças, os meus
sapatos e o meu século.
- Quero ir ao baile, repetiu ele. Já agora
não vou sem comparar as danças.
- Meu caro Alcibíades, não acho prudente um
tal desejo. Eu teria certamente a maior honra, um grande desvanecimento em
fazer entrar no Cassino, o mais gentil, o mais feiticeiro dos atenienses; mas
os outros homens de hoje, os rapazes, as moças, os velhos... é impossível.
- Por quê?
- Já disse; imaginarão que és um doudo ou
um comediante, porque essa roupa...
- Que tem? A roupa muda-se. Irei à maneira
do século. Não tens alguma roupa que me emprestes?
Ia a dizer que não; mas ocorreu-me logo que
o mais urgente era sair, e que uma vez na rua, sobravam-me recursos para
escapar-lhe, e então disse-lhe que sim.
- Pois
bem, tornou ele levantando-se, irei à maneira do século. Só peço que te vistas
primeiro, para eu aprender e imitar-te depois.
Levantei-me também, e pedi-lhe que me
acompanhasse. Não se moveu logo; estava assombrado. Vi que só então reparara
nas minhas calças brancas; olhava para elas com os olhos arregalados, a boca
aberta; enfim, perguntou por que motivo trazia aqueles canudos de pano.
Respondi que por maior comodidade; acrescentei que o nosso século, mais
recatado e útil do que artista, determinara trajar de um modo compatível com o
seu decoro e gravidade. Demais nem todos seriam Alcibíades. Creio que o
lisonjeei com isto; ele sorriu e deu de ombros.
- Enfim!
Seguimos para o meu quarto de vestir, e comecei
a mudar de roupa, às pressas. Alcibíades sentou-se molemente num divã, não sem
elogiá-lo, não sem elogiar o espelho, a palhinha, os quadros. - Eu vestia-me,
como digo, às pressas, ansioso por sair à rua, por meter-me no primeiro tílburi
que passasse...
- Canudos pretos! exclamou ele.
Eram as calças pretas que eu acabava de
vestir. Exclamou e riu, um risinho em que o espanto vinha mesclado de escárnio,
o que ofendeu grandemente o meu melindre de homem moderno. Porque, note V.
Ex.ª, ainda que o nosso tempo nos pareça digno de crítica, e até de execração,
não gostamos de que um antigo venha mofar dele às nossas barbas. Não respondi
ao ateniense; franzi um pouco o sobrolho e continuei a abotoar os suspensórios.
Ele perguntou-me então por que motivo usava uma cor tão feia...
- Feia, mas séria, disse-lhe. Olha,
entretanto, a graça do corte, vê como cai sobre o sapato, que é de verniz,
embora preto, e trabalhado com muita perfeição.
E vendo que ele abanava a cabeça:
- Meu
caro, disse-lhe, tu podes certamente exigir que o Júpiter Olímpico seja o
emblema eterno da majestade: é o domínio da arte ideal, desinteressada,
superior aos tempos que passam e aos homens que os acompanham. Mas a arte de
vestir é outra cousa. Isto que parece absurdo ou desgracioso é perfeitamente
racional e belo, - belo à nossa maneira, que não andamos a ouvir na rua os
rapsodos recitando os seus versos, nem os oradores os seus discursos, nem os
filósofos as suas filosofias. Tu mesmo, se te acostumares a ver-nos, acabarás
por gostar de nós, porque...
- Desgraçado! bradou ele atirando-se a mim.
Antes de entender a causa do grito e do
gesto, fiquei sem pinga de sangue. A causa era uma ilusão. Como eu passasse a
gravata à volta do pescoço e tratasse de dar o laço, Alcibíades supôs que ia enforcar-me,
segundo confessou depois. E, na verdade, estava pálido, trêmulo, em suores
frios. Agora quem se riu fui eu. Ri-me, e expliquei-lhe o uso da gravata e
notei que era branca, não preta, posto usássemos também gravatas pretas. Só
depois de tudo isso explicado é que ele consentiu em restituir-ma. Atei-a
enfim, depois vesti o colete.
- Por Afrodita! exclamou ele. És a cousa
mais singular que jamais vi na vida e na morte. Estás todo cor da noite - uma
noite com três estrelas apenas - continuou apontando para os botões do peito. O mundo deve andar imensamente melancólico,
se escolheu para uso uma cor tão morta e tão triste. Nós éramos mais alegres;
vivíamos...
Não pôde concluir a frase; eu acabava de
enfiar a casaca, e a consternação do ateniense foi indescritível. Caíram-lhe os
braços, ficou sufocado, não podia articular nada, tinha os olhos cravados em
mim, grandes, abertos. Creia V. Ex.ª que fiquei com medo, e tratei de apressar
ainda mais a saída.
- Estás completo? perguntou-me ele.
- Não: falta o chapéu.
- Oh!
venha alguma cousa que possa corrigir o resto! tornou Alcibíades com voz
suplicante. Venha, venha. Assim pois, toda a elegância que vos legamos está
reduzida a um par de canudos fechados e outro par de canudos abertos (e dizia
isto levantando-me as abas da casaca), e tudo dessa cor enfadonha e negativa?
Não, não posso crê-lo! Venha alguma cousa que corrija isso. O que é que, falta,
dizes tu?
- O chapéu.
- Põe o que te falta, meu caro, põe o que
te falta.
Obedeci; fui dali ao cabide, despendurei o
chapéu, e pu-lo na cabeça. Alcibíades olhou para mim, cambaleou e caiu. Corri
ao ilustre ateniense, para levantá-lo, mas (com dor o digo) era tarde; estava
morto, morto pela segunda vez. Rogo a V.
Ex.ª se digne de expedir suas respeitáveis ordens para que o cadáver seja
transportado ao necrotério, e se proceda ao corpo de delito, relevando-me de
não ir pessoalmente à casa de V. Ex.ª agora mesmo (dez da noite) em atenção ao
profundo abalo por que acabo de passar, o que aliás farei amanhã de manhã, antes
das oito. [36]
Verba
testamentária
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
"...ITEM, é minha última vontade que o caixão em que o meu corpo
houver de ser enterrado, seja fabricado
em casa de Joaquim Soares, à rua da Alfândega. Desejo que ele tenha conhecimento
desta disposição, que também será pública. Joaquim Soares não me conhece; mas é
digno da distinção, por ser dos nossos
melhores artistas, e um dos homens mais honrados da nossa terra..."
[37]
Cumpriu-se à risca esta verba testamentária.
Joaquim Soares fez o caixão em que foi metido o corpo do pobre Nicolau B. de
C.; fabricou-o ele mesmo, con amore; e, no fim, por um movimento cordial, pediu licença para não receber nenhuma
remuneração. Estava pago; o favor do defunto era em si mesmo um prêmio insigne.
Só desejava uma cousa: a cópia autêntica da verba.[38]
Deram-lha; ele mandou-a encaixilhar e pendurar de um prego, na loja. Os outros
fabricantes de caixões, passado o assombro, clamaram que o testamento era um
despropósito. Felizmente, - e esta é uma das vantagens do estado social, -
felizmente, todas as demais classes acharam que aquela mão, saindo do abismo
para abençoar a obra de um operário modesto, praticara uma ação rara e
magnânima. Era em 1855; a população
estava mais conchegada; não se falou de outra cousa. O nome do Nicolau
reboou por muitos dias na imprensa da corte, donde passou à das províncias. Mas a vida universal é tão variada, os
sucessos acumulam-se em tanta multidão, e com tal presteza, e, finalmente, a
memória dos homens é tão frágil, que um dia chegou em que a ação de Nicolau
mergulhou de todo no olvido.
Não
venho restaurá-la. Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o
destino, para escrever um novo caso, precisa apagar o caso escrito. Obra de
lápis e esponja.
Não, não venho restaurá-la. Há milhares de ações tão bonitas, ou ainda mais
bonitas do que a do Nicolau, e comidas do esquecimento. Venho dizer que a verba
testamentária não é um efeito sem causa; venho mostrar uma das maiores
curiosidades mórbidas deste século.
Sim,
leitor amado[39], vamos entrar em
plena patologia. Esse menino que aí vês, nos fins do século passado (em 1855,
quando morreu, tinha o Nicolau sessenta e oito anos), esse menino não é um produto são, não é um organismo perfeito. Ao contrário, desde os mais tenros anos,
manifestou por atos reiterados que há nele algum vício interior, alguma falha
orgânica. Não se pode explicar de outro modo a obstinação com que ele corre
a destruir os brinquedos dos outros meninos, não digo os que são iguais aos
dele, ou ainda inferiores, mas os que são melhores ou mais ricos. Menos ainda
se compreende que, nos casos em que o brinquedo é único, ou somente raro, o
jovem Nicolau console a vítima com dous ou três pontapés; nunca menos de um. Tudo isso é obscuro. Culpa do pai não pode
ser.[40]
O pai era um honrado negociante ou comissário (a maior parte das pessoas a que
aqui se dá o nome de comerciantes, dizia o marquês de Lavradio, nada mais são
que uns simples comissários), que viveu com certo luzimento, no último quartel
do século, homem ríspido, austero, que admoestava o filho, e, sendo necessário,
castigava-o. Mas nem admoestações, nem castigos, valiam nada. O impulso interior do Nicolau era mais
eficaz do que todos os bastões paternos; e, uma ou duas vezes por semana, o
pequeno reincidia no mesmo delito. Os desgostos da família eram profundos.
Deu-se mesmo um caso, que, por suas gravíssimas conseqüências, merece ser
contado.
O vice-rei, que era então o Conde de
Resende andava preocupado com a necessidade de construir um cais na Praia de D.
Manuel. Isto, que seria hoje um simples episódio municipal, era naquele tempo,
atentas as proporções escassas da cidade, uma empresa importante. Mas o
vice-rei não tinha recursos; o cofre público mal podia acudir às urgências
ordinárias. Homem de estado, e provavelmente filósofo, engendrou um expediente
não menos suave que profícuo: distribuir, a troco de donativos pecuniários,
postos de capitão, tenente e alferes. Divulgada a resolução, entendeu o pai do
Nicolau que era ocasião de figurar, sem
perigo, na galeria militar do século[41],
ao mesmo tempo que desmentia uma doutrina bramânica. Com efeito, está nas leis
de Manu, que dos braços de Brama nasceram os guerreiros, e do ventre os
agricultores e comerciantes; o pai do Nicolau adquirindo o despacho de capitão,
corrigia esse ponto da anatomia gentílica. Outro comerciante, que com ele
competia em tudo, embora familiares e amigos, apenas teve notícia do despacho,
foi também levar a sua pedra ao cais. Desgraçadamente, o despeito de ter ficado
atrás alguns dias, sugeriu-lhe um arbítrio de mau gosto e, no nosso caso,
funesto; foi assim que ele pediu ao
vice-rei outro posto de oficial do cais (tal era o nome dado aos agraciados por
aquele motivo) para um filho de sete anos. O vice-rei hesitou; mas o
pretendente, além de duplicar o donativo, meteu grandes empenhos, e o menino
saiu nomeado alferes. Tudo correu em segredo; o pai de Nicolau só teve
notícia do caso no domingo próximo, na igreja do Carmo, ao ver os dous, pai e
filho, vindo o menino com uma fardinha, que, por galanteria, lhe meteram no
corpo. Nicolau, que também ali estava, fez-se lívido; depois, num ímpeto,
atirou-se sobre o jovem alferes e rasgou-lhe a farda, antes que os pais
pudessem acudir. Um escândalo. O rebuliço do povo, a indignação dos devotos, as
queixas do agredido, interromperam por alguns instantes as cerimônias
eclesiásticas. Os pais trocaram algumas palavras acerbas, fora, no adro, e
ficaram brigados para todo o sempre.
- Este rapaz há de ser a nossa desgraça!
bradava o pai de Nicolau, em casa, depois do episódio.
Nicolau apanhou então muita pancada, curtiu
muita dor, chorou, soluçou; mas de emenda cousa nenhuma. Os brinquedos dos
outros meninos não ficaram menos expostos. O mesmo passou a acontecer às
roupas. Os meninos mais ricos do bairro não saíam fora senão com as mais
modestas vestimentas caseiras, único modo de escapar às unhas de Nicolau. Com o
andar do tempo, estendeu ele a aversão às próprias caras, quando eram bonitas,
ou tidas como tais. A rua em que ele residia, contava um sem-número de caras
quebradas, arranhadas, conspurcadas. As
cousas chegaram a tal ponto, que o pai resolveu trancá-lo em casa durante uns
três ou quatro meses. Foi um paliativo, e, como tal, excelente. Enquanto
durou a reclusão, Nicolau mostrou-se nada menos que angélico; fora daquele
sestro mórbido, era meigo, dócil, obediente, amigo da família, pontual nas
rezas. No fim dos quatro meses, o pai soltou-o; era tempo de o meter com um
professor de leitura e gramática.
- Deixe-o comigo, disse o professor;
deixe-o comigo, e com esta (apontava para a palmatória)... Com esta, é duvidoso
que ele tenha vontade de maltratar os companheiros.
Frívolo! três vezes frívolo professor! Sim,
não há dúvida, que ele conseguiu poupar os meninos bonitos e as roupas
vistosas, castigando as primeiras investidas do pobre Nicolau; mas em que é que
este sarou da moléstia? Ao contrário, obrigado a conter-se, a engolir o
impulso, padecia dobrado, fazia-se mais lívido, com reflexos de verde bronze;
em certos casos, era compelido a voltar os olhos ou fechá-los, para não
arrebentar, dizia ele. Por outro lado, se deixou de perseguir os mais graciosos
ou melhor adornados, não perdoou aos que se mostravam mais adiantados no
estudo; espancava-os, tirava-lhes os livros, e lançava-os fora, nas praias ou
no mangue. Rixas, sangue, ódios, tais eram os frutos da vida, para ele, além
das dores cruéis que padecia, e que a família teimava em não entender. Se
acrescentarmos que ele não pôde estudar nada seguidamente, mas a trancos, e
mal, como os vagabundos comem, nada fixo, nada metódico, teremos visto algumas
das dolorosas conseqüências do fato mórbido, oculto e desconhecido. O pai, que
sonhava para o filho a Universidade, vendo-se obrigado a estrangular mais essa
ilusão, esteve prestes a amaldiçoá-lo; foi a mãe que o salvou.
Saiu
um século, entrou outro, sem desaparecer a lesão do Nicolau. Morreu-lhe o pai em
1807 e a mãe em 1809; a irmã casou com um médico holandês, treze meses depois.
Nicolau passou a viver só. Tinha vinte e três anos; era um dos petimetres da
cidade, mas um singular petimetre, que não podia encarar nenhum outro, ou fosse
mais gentil de feições, ou portador de algum colete especial sem padecer uma
dor violenta, tão violenta, que o obrigava às vezes a trincar o beiço até
deitar sangue. Tinha ocasiões de cambalear; outras de escorrer-lhe pelo canto
da boca um fio quase imperceptível de espuma. E o resto não era menos cruel.
Nicolau ficava então ríspido; em casa achava tudo mau, tudo incômodo, tudo
nauseabundo; feria a cabeça aos escravos com os pratos, que iam partir-se
também, e perseguia os cães, a pontapés; não sossegava dez minutos, não comia,
ou comia mal. Enfim dormia; e ainda bem que dormia. O sono reparava tudo. Acordava lhano e meigo, alma de patriarca,
beijando os cães entre as orelhas, deixando-se lamber por eles, dando-lhes do
melhor que tinha, chamando aos escravos as cousas mais familiares e ternas. E
tudo, cães e escravos, esqueciam as pancadas da véspera, e acudiam às vozes
dele obedientes, namorados, como se este fosse o verdadeiro senhor, e não o
outro.
Um dia, estando ele em casa da irmã,
perguntou-lhe esta por que motivo não adotava uma carreira qualquer, alguma
cousa em que se ocupasse, e...
- Tens razão, vou ver, disse ele.
Interveio o cunhado e opinou por um emprego
na diplomacia. O cunhado principiava a desconfiar de alguma doença e supunha
que a mudança de clima bastava a restabelecê-lo. Nicolau arranjou uma carta de
apresentação, e foi ter com o ministro de estrangeiros. Achou-o rodeado de
alguns oficiais da secretaria, prestes a ir ao paço, levar a notícia da segunda
queda de Napoleão, notícia que chegara alguns minutos antes. A figura do
ministro, as circunstâncias do momento, as reverências dos oficiais, tudo isso
deu um tal rebate ao coração de Nicolau, que ele não pôde encarar o ministro.
Teimou, seis ou oito vezes, em levantar os olhos, e da única em que o
conseguiu, fizeram-se-lhe tão vesgos, que não via ninguém, ou só uma sombra, um
vulto, que lhe doía nas pupilas, ao mesmo tempo que a face ia ficando verde.
Nicolau recuou, estendeu a mão trêmula ao reposteiro, e fugiu.
- Não quero ser nada! disse ele à irmã,
chegando a casa; fico com vocês e os meus amigos.
Os amigos eram os rapazes mais antipáticos
da cidade, vulgares e ínfimos. Nicolau escolhera-os de propósito. Viver
segregado dos principais era para ele um grande sacrifício; mas, como teria de
padecer muito mais vivendo com eles, tragava a situação. Isto prova que ele tinha um certo conhecimento empírico do mal e do
paliativo. A verdade é que, com esses companheiros, desapareciam todas as
perturbações fisiológicas do Nicolau. Ele fitava-os sem lividez, sem olhos
vesgos, sem cambalear, sem nada. Além disso, não só eles lhe poupavam a natural
irritabilidade, como porfiavam em tornar-lhe a vida, senão deliciosa,
tranqüila; e para isso, diziam-lhe as maiores finezas do mundo, em atitudes
cativas, ou com uma certa familiaridade inferior. Nicolau amava em geral as naturezas subalternas, como os doentes amam a
droga que lhes restitui a saúde; acariciava-as paternalmente, dava-lhes o
louvor abundante e cordial, emprestava-lhes dinheiro, distribuía-lhes mimos,
abria-lhes a alma... Veio o grito do Ipiranga; Nicolau meteu-se na
política. Em 1823 vamos achá-lo na Constituinte. Não há que dizer ao modo por
que ele cumpriu os deveres do cargo. Íntegro, desinteressado, patriota, não
exercia de graça essas virtudes públicas, mas à custa de muita tempestade
moral. Pode-se dizer, metaforicamente, que a freqüência da câmara custava-lhe
sangue precioso. Não era só porque os debates lhe pareciam insuportáveis, mas
também porque lhe era difícil encarar certos homens, especialmente em certos
dias. Montezuma, por exemplo, parecia-lhe balofo, Vergueiro, maçudo, os
Andradas, execráveis. Cada discurso, não só dos principais oradores, mas dos
secundários, era para o Nicolau verdadeiro suplício. E, não obstante, firme,
pontual. Nunca a votação o achou ausente; nunca o nome dele soou sem eco pela
augusta sala. Qualquer que fosse o seu desespero, sabia conter-se e pôr a idéia
da pátria acima do alívio próprio. Talvez aplaudisse in petto o decreto da
dissolução. Não afirmo; mas há bons fundamentos para crer que o Nicolau, apesar
das mostras exteriores, gostou de ver dissolvida a assembléia. E se essa
conjetura é verdadeira, não menos o será esta outra: - que a deportação de
alguns dos chefes constituintes, declarados inimigos públicos, veio aguar-lhe
aquele prazer. Nicolau, que padecera com os discursos deles, não menos padeceu
com o exílio, posto lhes desse um certo relevo. Se ele também fosse exilado!
- Você podia casar, mano, disse-lhe a irmã.
- Não tenho noiva.
- Arranjo-lhe uma. Valeu?
Era um plano do marido. Na opinião deste, a moléstia do Nicolau
estava descoberta; era um verme do baço, que se nutria da dor do paciente, isto
é, de uma secreção especial, produzida pela vista de alguns fatos, situações ou
pessoas. A questão era matar o verme; mas, não conhecendo nenhuma substância
química própria a destruí-lo, restava o recurso de obstar à secreção, cuja ausência
daria igual resultado. Portanto, urgia casar o Nicolau, com alguma moça
bonita e prendada, separá-lo do povoado, metê-lo em alguma fazenda, para onde
levaria a melhor baixela, os melhores trastes, os mais reles amigos, etc.
- Todas as manhãs, continuou ele, receberá
o Nicolau um jornal que vou mandar imprimir com o único fim de lhe dizer as
cousas mais agradáveis do mundo, e dizê-las nominalmente, recordando os seus
modestos, mas profícuos trabalhos da Constituinte, e atribuindo-lhe muitas
aventuras namoradas, agudezas de espírito, rasgos de coragem. Já falei ao
almirante holandês para consentir que, de quando em quando, vá ter com Nicolau
algum dos nossos oficiais dizer-lhe que não podia voltar para a Haia sem a
honra de contemplar um cidadão tão eminente e simpático, em quem se reúnem
qualidades raras, e, de ordinário, dispersas. Você, se puder alcançar de alguma
modista, a Gudin, por exemplo, que ponha o nome de Nicolau em um chapéu ou
mantelete, ajudará muito a cura de seu mano. Cartas amorosas anônimas, enviadas
pelo correio, são um recurso eficaz... Mas comecemos pelo princípio, que é
casá-lo.
Nunca um plano foi mais conscienciosamente
executado. A noiva escolhida era a mais esbelta, ou uma das mais esbeltas da
capital. Casou-os o próprio bispo. Recolhido à fazenda, foram com ele somente
alguns de seus mais triviais amigos; fez-se o jornal, mandaram-se as cartas,
peitaram-se as visitas. Durante três meses tudo caminhou às mil maravilhas. Mas
a natureza, apostada em lograr o homem, mostrou ainda desta vez que ela possui
segredos inopináveis. Um dos meios de agradar ao Nicolau era elogiar a beleza,
a elegância e as virtudes da mulher; mas a moléstia caminhara, e o que parecia
remédio excelente foi simples agravação do mal. Nicolau, ao fim de certo tempo,
achava ociosos e excessivos tantos elogios à mulher, e bastava isto a
impacientá-lo, e a impaciência a produzir-lhe a fatal secreção. Parece mesmo
que chegou ao ponto de não poder encará-la muito tempo, e a encará-la mal;
vieram algumas rixas, que seriam o princípio de uma separação, se ela não
morresse daí a pouco. A dor do Nicolau foi profunda e verdadeira; mas a cura
interrompeu-se logo, porque ele desceu ao Rio de Janeiro, onde o vamos achar,
tempos depois, entre os revolucionários de 1831.
Conquanto pareça temerário dizer as causas
que levaram o Nicolau para o Campo da Aclamação, na noite de 6 para 7 de abril,
penso que não estará longe da verdade quem supuser que - foi o raciocínio de um
ateniense célebre e anônimo. Tanto os que diziam bem, como os que diziam mal do
imperador, tinham enchido as medidas ao Nicolau. Esse homem, que inspirava
entusiasmos e ódios, cujo nome era repetido onde quer que o Nicolau estivesse,
na rua, no teatro, nas casas alheias, tornou-se uma verdadeira perseguição mórbida,
daí o fervor com que ele meteu a mão no movimento de 1831. A abdicação foi um
alívio. Verdade é que a Regência o achou dentro de pouco tempo entre os seus
adversários; e há quem afirme que ele se filiou ao Partido Caramuru ou
Restaurador, posto não ficasse prova do ato. O que é certo é que a vida pública
do Nicolau cessou com a Maioridade.
A
doença apoderara-se definitivamente do organismo. Nicolau ia, a pouco e pouco,
recuando na solidão.
Não podia fazer certas visitas, freqüentar certas casas. O teatro mal chegava a
distraí-lo. Era tão melindroso o estado dos seus órgãos auditivos, que o ruído
dos aplausos causava-lhe dores atrozes. O entusiasmo da população fluminense
para com a famosa Candiani e a Meréa, mas a Candiani principalmente, cujo carro
puxaram alguns braços humanos, obséquio tanto mais insigne quanto que o não
fariam ao próprio Platão, esse entusiasmo foi uma das maiores mortificações do
Nicolau. Ele chegou ao ponto de não ir mais ao teatro, de achar a Candiani
insuportável, e preferir a Norma dos realejos à da prima-dona. Não era por
exageração de patriota que ele gostava de ouvir o João Caetano, nos primeiros
tempos; mas afinal deixou-o também, e quase que inteiramente os teatros.
" Está perdido! pensou o cunhado. Se
pudéssemos dar-lhe um baço novo..."
Como pensar em semelhante absurdo? Estava
naturalmente perdido. Já não bastavam os recreios domésticos. As tarefas
literárias a que se deu, versos de família, glosas a prêmio e odes políticas,
não duraram muito tempo, e pode ser até que lhe dobrassem o mal. De fato, um
dia, pareceu-lhe que essa ocupação era a cousa mais ridícula do mundo, e os
aplausos ao Gonçalves Dias, por exemplo, deram-lhe idéia de um povo trivial e
de mau gosto. Esse sentimento literário, fruto de uma lesão orgânica, reagiu
sobre a mesma lesão, ao ponto de produzir graves crises, que o tiveram algum
tempo na cama. O cunhado aproveitou o momento para desterrar-lhe da casa todos
os livros de certo porte.
Explica-se menos o desalinho com que daí a
meses começou a vestir-se. Educado com hábitos de elegância, era antigo freguês
de um dos principais alfaiates da Corte, o Plum, não passando um só dia em que
não fosse pentear-se ao Desmarais e Gérard, coiffeurs de la cour, à Rua do
Ouvidor. Parece que achou enfatuada esta denominação de cabeleireiros do paço,
e castigou-os indo pentear-se a um barbeiro ínfimo. Quanto ao motivo que o
levou a trocar de traje, repito que é inteiramente obscuro, e a não haver
sugestão da idade, é inexplicável.
A despedida do cozinheiro é outro enigma.
Nicolau, por insinuação do cunhado, que o queria distrair, dava dois jantares
por semana; e os convivas eram unânimes em achar que o cozinheiro dele primava
sobre todos os da capital. Realmente os pratos eram bons, alguns ótimos, mas o
elogio era um tanto enfático, excessivo, para o fim justamente de ser agradável
ao Nicolau, e assim aconteceu algum tempo. Como entender, porém, que um
domingo, acabado o jantar, que fora magnífico, despedisse ele um varão tão
insigne, causa indireta de alguns dos seus mais deleitosos momentos na terra?
Mistério impenetrável.
- Era um ladrão! foi a resposta que ele deu
ao cunhado.
Nem os esforços deste nem os da irmã e dos
amigos, nem os bens, nada melhorou o nosso triste Nicolau. A secreção do baço tornou-se perene, e o verme reproduziu-se aos
milhões, teoria que não sei se é verdadeira, mas enfim era a do cunhado. Os
últimos anos foram crudelíssimos. Quase se pode jurar que ele viveu então
continuamente verde, irritado, olhos vesgos, padecendo consigo ainda muito mais
do que fazia padecer aos outros. A menor ou maior cousa triturava-lhe os
nervos: um bom discurso, um artista hábil, uma sege, uma gravata, um soneto, um
dito, um sonho interessante, tudo dava de si uma crise. Quis ele deixar-se
morrer? Assim se poderia supor, ao ver a impassibilidade com que rejeitou os
remédios dos principais médicos da Corte; foi necessário recorrer à simulação,
e dá-los, enfim, como receitados por um ignorantão do tempo. Mas era tarde. A
morte levou-o ao cabo de duas semanas.
- Joaquim Soares? bradou atônito o cunhado,
ao saber da verba testamentária do defunto, ordenando que o caixão fosse
fabricado por aquele industrial. Mas os caixões desse sujeito não prestam para
nada, e...
-
Paciência! interrompeu a mulher; a vontade do mano há de cumprir-se. [42]
[1] Chamo a
atenção para dois elementos bem comuns a Machado de Assis e ao Realismo. A
construção da história com base na VERACIDADE e fundamentos científicos para as
coisas. Nesse caso a FILOSOFIA.
[2] Esse convite é
dirigido aos leitores – temos aqui um processo de digressão.
[3] Procure informações
sobre Sêneca e observe como a história sobre o rapaz pode ser usada para
questionar a teoria de Sêneca. Machado costumava colocar em xeque as verdades
da razão de seu tempo. Veja que ele faz a mesma coisa em a Teoria do Medalhão.
[4] Ironia não?
[5] Descrição dos
atributos da personagem principal.
[6] Características
típicas das personagens Machadianas.
[7] Observe que essa é
uma das
[8] É necessário que eu
viva.
[9] Não vejo a
necessidade disso.
[10] Portanto não
desenvolveu aptidões para o trabalho.
[11] Machado costuma
trabalhar o tem do azar para explicar algumas personagens mal sucedidas.
[12] Quais são os
elementos que o levam a crer que receberá o dinheiro?
[13] O fato dele não
emprestar era porque não estava “em suas mãos’ ou porque ele não quis?
[14] Isso seria uma
revelação do seu interesse em ajudar?
[15] Observe que
Custódio não estava interessado no trabalho.
[16] O que representava
os cinco mil réis?
[17] Observe na fala
dele a preocupação com a glória da ciência para si e para sua terra.
[18] Aqui ele apresenta
a superioridade da aranha frente a outros animais.
[19] Perceba o princípio
de “tudo em nome da ciência”
[20] Observe que ao
falar de cobiça e corrupção ele trata sutilmente de elementos presentes na
política do seu tempo.
[21] No século XVII, Campanella criou a Cidade do
Sol. Lá a ordem social e a hierarquia, inspiradas na
astrologia, deveria servir para harmonia e êxito na produção coletiva,
encaminhando a redução do esforço físico na organização da sobrevivência.
[22] De Optimo Reipublicae Statu deque Nova Insula Utopia (em português, Sobre o melhor estado de uma república e sobre a nova
ilha Utopia) ou simplesmente Utopia é um livro de 1516 escrito por Tomás
Moro (Thomas Morus 1480-1535). Escrito em latim, foi sua
principal obra literária e tornou-se sinônimo de projeto irrealizável;
fantasia; delírio; quimera; lugar que não existe, dando uso mais amplo do então
neologismo
"utopia".
[23] Machado propõe que
a grande reflexão desse conto é a
ausência de uma possibilidade eleitoral. Veja como o conto revela bem isso.
[24] Percebe o absurdo
do que está sendo dito?
[25] Qual o sentido da
conclusão do conto?
[26] Observe as
descrições desse personagem.
[27] Metido em si mesmo.
[28] Eis a
apresentação da teoria.Veja que a base
dele é a verdade provinda da experiência.
[29] Inveja por inveja.
[30] Observe as
referências ao espelho que dá título a história.
[31] Observe a
racionalidade.
[32] Nunca para sempre –
para sempre nunca!
[33] Irmã Ana, irmã Ana,
não vês nada vir?
[34] Note no final da
história o choque cultural provindo das diferenças de tempo. Esse é um tema a
se discutir nesse texto.
[35] Observe a preocupação com o português rebuscado. Ele escrevia uma carta para uma pessoa ilustre.
[36] Esse é o motivo da
escrita da tal carta.
[37] É comum na produção
de texto machadiana essa preocupação com
as questões relacionadas à morte.
Para ele os homens se distinguem não pelo nascimento, mas pela morte.
[38] Foi mesmo de graça?
[39] Não é comum Machado
tratar o leitor dessa maneira.
[40] No célebre
Memórias Póstumas, Machado no capítulo “
o menino é o pai do homem” culpa a educação
dada pelos pais a causa dos maus modos do menino.
[41] Não precisaria ir a
guerra.