Pe.
Vieira
AMOR MENINO
Tudo cura o tempo,
tudo faz esquecer, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de
mármore, quanto mais a corações de cera! São as afeições como as vidas, que não
há mais certo sinal de haverem de durar pouco, que terem durado mais
continuadas, tanto menos unidas.
Por isso, os antigos
sabiamente pintaram o amor menino, por que não há amor tão robusto que chegue a
ser velho. De todos os instrumentos com que o armou a natureza, o desarma o
tempo. Afrouxa-lhe o arco, com que já não atira; embota-lhe as setas, com que
já não fere; abre-lhe os olhos, com que vê quem não via; e faz-lhe crescer as
asas, com que voa e foge. A razão natural de toda essa diferença é pequena.
O tempo tira a
novidade das coisas, descobre-lhe os defeitos, enfastia-lhe o gosto, e basta
que sejam usados para não serem os mesmos. Gasta-se o ferro com o uso, quanto
mais o amor. O mesmo amor é causa de não amar e o ter amado muito, de amar a
menos.
Bom ladrão
“Suponho finalmente
que os ladrões de que falo não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza e
vileza de sua fortuna condenou a este gênero de vida, porque a mesma sua
miséria, ou escusa, ou alivia o seu pecado (...). O ladrão que furta para
comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu
trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera (...). Não
são só ladrões (...) os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar,
para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este
título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o
governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha,
já com força, roubam e despojam os povos. - Os outros ladrões roubam um homem:
estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem
temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e
enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu
que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões,
e começou a bradar: - Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. -
Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se
nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas! Quantas vezes se viu Roma ir a
enforcar um ladrão, por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em
triunfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado uma província (...)”
Esse é para Refletir
Estava o nosso padre
António Vieira em Roma havia cinco anos, já pregador famoso na língua italiana
como era na portuguesa, quando, em 1674, no palácio da ex-rainha Cristina da
Suécia, de quem Vieira era confessor, e com a assistência de muitos cardeais e
monsenhores, se propôs a debate o seguinte problema: qual dos dois filósofos
fora o mais sábio, se Demócrito, que sempre ria; ou se Heraclito, que sempre
chorava. Foram chamados a debater tão candente problema os dois campeões vivos
da oratória sacra: o nosso jesuíta, que fez questão de conceder ao opositor a
parte que quisesse defender; o outro, da mesma Companhia, era Jerónimo Cataneo,
que tomou partido por Demócrito, não sabemos se rindo do cavalheiroso gesto do
confrade. Também nos não chegou directa notícia de quem na ocasião recolheu
mais sufrágios de vencedor, por mais ter convencido. Sabe-se que o Geral dos
jesuítas, João Paulo Oliva, enviava no dia 13 de Março de 1675 uma carta a
Vieira em que, a propósito do panegírico de Santo Estanislau, pregado pelo
nosso no dia anterior, dizia isto do que nos importa agora: « Este Panegírico
de V. Reverência não cede a outro algum dos seus discursos, exceptuando o das
Lágrimas, em que V. Reverência venceu não só todos seus companheiros, mas
também a si mesmo, impossibilitando-se de sair à luz com outro parto igual.»
Não há encarecimento
lisonjeador. Não precisava dele um orador capaz de demonstrar, no mesmo
parágrafo, que Demócrito “não ria”; que “ria sempre, logo nunca ria”…
Recolhamos algumas lágrimas do discurso prodigioso:
« Que é este mundo
senão um mapa universal de misérias, de trabalhos, de perigos, de desgraças, de
mortes? E à vista de um teatro imenso, tão trágico, tão funesto, tão
lamentável, aonde cada reino, cada cidade e cada casa continuamente mudam a
cena, aonde cada sol que nasce é um cometa, cada dia que passa um estrago, cada
hora e cada instante mil infortúnios, que homem haverá (se acaso é homem) que
não chore? Se não chora, mostra que não é racional; e se ri, mostra que também
podem rir as feras. (…)
« Como pois se ria
ou podia rir-se Demócrito do mesmo mundo e das mesmas cousas que via e chorava
Heraclito? A mim, senhores, me parece que Demócrito não ria, mas que Demócrito
e Heraclito ambos choravam, cada um ao seu modo.
« Que Demócrito não
risse, eu o provo. Demócrito ria sempre; logo, nunca ria. A sequência parece
difícil, mas é evidente. O riso, como dizem todos os filósofos, nasce da
novidade e da admiração; e cessando a novidade e a admiração, cessa também o
riso; e como Demócrito se ria dos ordinários desconcertos do mundo, e o que é
ordinário e se vê sempre não pode causar admiração nem novidade, segue-se que
nunca ria, pois não havia matéria que motivasse o riso.