terça-feira, 12 de março de 2019
Ética do Melhoramento - Michael Sandel - Fichamento de texto
Quando a ciência avança mais depressa do que a compreensão moral, como
é o caso de hoje, homens e mulheres lutam nas sociedades liberais para alcançar
uma condição ética. Para isso, buscam primeiro a linguagem baseada nos
conceitos de autonomia, justiça e direitos humanos. Essa parte de nosso
vocabulário moral, no entanto, não nos equipou para abordar temas mais difíceis
colocados pelas práticas de clonagem, crianças projetadas e engenharia
genética. É por isso que a revolução genômica induziu a uma espécie de vertigem
moral. Para compreender a ética do melhoramento, precisamos enfrentar questões
que há muito se ausentaram do campo de visão do mundo moderno — relativas ao
estatuto moral da natureza e à atitude adequada dos seres humanos em relação ao
mundo “dado”. Uma vez que elas tocam na teologia, os filósofos e teóricos
políticos modernos tendem a evitá-las. Entretanto os novos poderes da nossa
biotecnologia as tornam inevitáveis.
Com base na leitura dos recortes abaixo feitos do Livro Ética do
Melhoramento escreva um artigo de opinião em que seu ponto de vista sobre a
questão seja genuinamente esclarecido.
A ética do
melhoramento
Alguns anos atrás, um casal de
lésbicas decidiu ter um filho, de preferência surdo. As duas parceiras eram
surdas, e com orgulho. Tal como outros membros da comunidade do orgulho dos
surdos, Sharon Duchesneau e Candy McCullough consideravam a surdez um traço de
identidade cultural, e não uma deficiência a ser curada. “Ser surdo é um modo
de vida”, declarou Duchesneau. “Nós nos sentimos pessoas inteiras na qualidade
de surdas e queremos compartilhar os aspectos maravilhosos da nossa comunidade
— o sentimento de pertencimento e de ligação — com as crianças. Sentimos
verdadeiramente que, como surdas, levamos uma vida plena.”
Na esperança de conceber um
filho surdo, elas procuraram um doador de esperma cuja família tivesse um
histórico de cinco gerações de surdez. E conseguiram. Seu filho Gauvin nasceu
surdo.
As novas mães ficaram surpresas
quando sua história, que apareceu nas páginas do Washington Post, desencadeou
amplas críticas. A maior parte do ultraje alheio se centrava na acusação de que
elas haviam deliberadamente infligido uma deficiência a seu filho. Duchesneau e
McCullough negaram que a surdez fosse uma deficiência e argumentaram que
desejavam apenas ter um filho igual a elas. “Não fizemos nada diferente do que
muitos casais heterossexuais fazem quando têm filhos, é o que achamos”, afirmou
Duchesneau.
Será errado ter um filho surdo
de propósito? Se sim, o que torna isso errado — a surdez ou o propósito?
Suponhamos, a título de argumentação, que a surdez não seja uma deficiência, e
sim um traço distinto de identidade. Ainda assim, haveria algo de errado na
ideia de os pais escolherem o tipo de filho que desejam ter? Ou será que isso
já é o que os pais fazem o tempo inteiro, ao escolherem seu parceiro e, nos
dias de hoje, ao se valerem das modernas técnicas de reprodução humana?
Não muito tempo após a
controvérsia acerca da criança surda, um anúncio foi publicado no Harvard Crimson
e em outros jornais universitários da Ivy League.
Um casal infértil estava à
procura de uma doadora de óvulos — mas não de qualquer doadora. Ela precisava
ter 1,80 metro de altura, ser atlética, não ter maiores problemas médicos no
histórico familiar e ter tirado 1.400 pontos ou mais nas provas do SAT. Em
troca do óvulo de tal doadora, o anúncio oferecia US$ 50 mil.
Talvez os pais que tenham
oferecido essa soma vultosa por tal
óvulo de qualidade superior simplesmente desejassem ter um filho semelhante
a eles. Ou talvez estivessem apenas tentando se sair bem na barganha, buscando
ter um filho mais alto ou mais inteligente do que eles. Seja qual for o caso, a
oferta extraordinária não incitou o protesto público que fora desencadeado
pelas mães que desejavam ter um filho surdo. Ninguém argumentou que altura,
inteligência e porte atlético fossem deficiências das quais se deveriam poupar
as crianças. E, contudo, algo nesse anúncio traz um mal-estar moral
persistente. Ainda que nenhum prejuízo esteja envolvido, não existe algo de
inquietante no fato de encomendar uma criança com traços genéticos específicos?
Há quem defenda que a tentativa
de conceber uma criança surda, ou uma criança que se sairá bem nos estudos, é
semelhante à procriação natural em um aspecto crucial: não importa o que os
pais façam para aumentar suas chances de obter o resultado desejado, ele não é
garantido. As duas tentativas estão sujeitas aos caprichos da loteria genética.
Essa defesa levanta uma questão intrigante. Por que a existência de um elemento
de imprevisibilidade parece fazer uma diferença moral? E se a biotecnologia
pudesse remover o aspecto da incerteza e nos permitisse projetar os traços
genéticos que desejamos em nossos filhos?
Enquanto ponderamos sobre a
questão, deixemos de lado as crianças por um momento para pensar nos animais de
estimação. Cerca de um ano depois do furor em torno da criança deliberadamente
surda, uma texana chamada Julie (ela se negou
a fornecer o sobrenome) lamentava a morte de seu amado gatinho Nicky.
“Ele era tão lindo”, disse Julie. “Era excepcionalmente inteligente. Conhecia
11 comandos.” Então leu a respeito de
uma empresa da Califórnia que oferecia um serviço de clonagem de gatos, a
Genetic Savings & Clone. Em 2001 a empresa fora bem-sucedida na criação do
primeiro gato clonado (chamado CC, sigla de Carbon Copy — em inglês, Cópia de
Carbono). Julie enviou-lhes uma amostra genética de Nicky e a taxa solicitada
de US$ 50 mil. Alguns meses depois, para sua grande alegria, ela recebeu Little
Nicky, um gato geneticamente idêntico. “Ele é idêntico”, declarou Julie. “Ainda
não fui capaz de notar a diferença.”4
De lá para cá, o site da
empresa anunciou uma redução nos custos de clonagem de gatos, que agora pode ser feita por meros
US$ 32 mil. Se o preço ainda assim parece salgado, vem com uma garantia de
reembolso: “Caso você ache que seu gatinho não se parece o bastante com o
doador genético, nós devolveremos seu dinheiro integralmente, sem fazer
perguntas.” Enquanto isso, os cientistas da empresa continuam tentando
desenvolver uma nova linha de produtos: cães clonados. Uma vez que cães são
mais difíceis de clonar do que gatos, a empresa planeja cobrar US$ 100 mil ou
mais pelo serviço.
Muitas pessoas consideram que
existe algo esquisito na clonagem de cães e gatos. Alguns reclamam que, com
milhares de vira-latas precisando de lares, é inescrupuloso gastar uma pequena
fortuna para criar um animal de estimação personalizado. Outros se preocupam
com o número de animais perdidos durante as tentativas de criar um clone
bem-sucedido. Mas suponhamos que esses problemas pudessem ser resolvidos. Será que a clonagem de cães e gatos ainda
assim nos faria relutar? E que dizer da clonagem de seres humanos?
ARTICULAÇÃO DO NOSSO
MAL-ESTAR
As descobertas da genética nos
apresentam a um só tempo uma promessa e um dilema. A promessa é que em breve
seremos capazes de tratar e prevenir uma série de doenças debilitantes. O
dilema é que nosso recém-descoberto conhecimento genético também pode permitir
a manipulação de nossa própria natureza — para melhorar nossos músculos, nossa
memória e nosso humor; para escolher o sexo, a altura e outras características
genéticas de nossos filhos; para melhorar nossas capacidades física e
cognitiva; para nos tornar “melhores do que a encomenda”.
A maioria das pessoas considera inquietantes
ao menos algumas das formas de manipulação genética. Entretanto, não é fácil
articular nosso mal-estar. Os termos
familiares dos discursos moral e político tornam difícil
afirmar o que há de errado na reengenharia da nossa natureza.
Consideremos uma vez mais a
questão da clonagem. O nascimento de Dolly, a ovelha clonada, em 1997, trouxe
consigo uma torrente de preocupações acerca da perspectiva de clonar seres
humanos. Existem bons motivos médicos para se preocupar. A maioria dos
cientistas concorda que a clonagem é um procedimento arriscado, com
grandes chances de
produzir crias com
anormalidades e defeitos
congênitos sérios. (Dolly morreu prematuramente.) Mas suponhamos que a
tecnologia de clonagem melhore a ponto de os riscos não serem maiores do que os
de uma gravidez comum. A clonagem humana ainda assim seria algo censurável? O
que há exatamente de errado em gerar um filho que seja um gêmeo idêntico do pai
ou da mãe, de um irmão mais velho que morreu tragicamente ou, até mesmo, de um
cientista, um atleta ou uma celebridade admirados?
Alguns afirmam que a clonagem é
errada porque viola o direito da criança à autonomia. Ao escolher de antemão as
características genéticas do filho, os pais o confinariam a uma vida à sombra
de alguém que já existiu e, assim, privariam a criança do direito a um futuro
aberto. A objeção da autonomia vale não só contra a clonagem, mas também contra
qualquer forma de bioengenharia que permita a escolha de características
genéticas. De acordo com essa objeção, o problema da engenharia genética é que
as “crianças projetadas” não são inteiramente livres; até mesmo os
melhoramentos genéticos desejáveis (digamos, talento musical ou aptidão para os
esportes) conduziriam a criança a essa
ou àquela escolha de vida, ferindo sua autonomia e violando seu direito à
escolha própria de um projeto de vida.
À primeira vista, o argumento
da autonomia parece captar o que existe de inquietante na clonagem humana e em
outras formas de manipulação genética. Contudo, ele não é persuasivo, por duas
razões. Primeiro porque implica erroneamente que, na ausência de um progenitor
projetista, as crianças sejam livres para escolher suas características
físicas. Ninguém, entretanto, escolhe a própria herança genética. A alternativa
a uma criança clonada ou geneticamente melhorada não é uma criança cujo futuro
está isento de restrições e do escopo de talentos específicos, mas sim uma
criança que está à mercê da loteria genética.
Em segundo lugar, ainda que a
preocupação com a autonomia explique parte de nossas preocupações em relação a
crianças feitas sob encomenda, ela não explica a inquietação moral em relação a
pessoas que buscam melhoramentos genéticos para si próprias. Nem todas as
intervenções genéticas são transmitidas gerações afora. A terapia genética em
células não reprodutivas (ou somáticas), tais como as fibras musculares ou os
neurônios, age no sentido de reparar ou substituir genes defeituosos. O dilema
moral surge quando as pessoas utilizam tais terapias não para curar uma doença,
e sim para ir além da saúde, para melhorar suas capacidades físicas ou
cognitivas, para erguer-se acima da norma geral.
Esse dilema moral nada
tem a ver com ferir
a autonomia. Apenas as intervenções genéticas no nível da linha
germinal, que se concentram em óvulos, espermatozoides ou embriões, afetam as
gerações subsequentes. Um atleta que modifica geneticamente seus músculos não
transmite a sua prole o aumento de velocidade e força conquistado; ele não pode
ser acusado de impingir aos filhos talentos que possam direcioná-los a uma
carreira nos esportes. Ainda assim, existe algo de inquietante na perspectiva
da existência de atletas geneticamente modificados.
Tal como a cirurgia plástica, o
melhoramento genético emprega meios da medicina para fins não medicinais — fins
que não estão relacionados à cura ou à prevenção de doenças, ao tratamento de
ferimentos ou à recuperação da saúde. No entanto, ao contrário da cirurgia
plástica, o melhoramento genético não é puramente cosmético. Vai além do nível
superficial. Até mesmo os melhoramentos somáticos, que não atingiriam nossos
filhos e netos, suscitam questões morais difíceis. Se nos sentimos
ambivalentes em relação à cirurgia
plástica e às injeções de Botox para corrigir pescoços flácidos e rugas na
testa, nossa perturbação é ainda maior diante do uso da manipulação genética
para obter corpos mais fortes, memórias mais aguçadas, maior inteligência e
melhor humor. A questão é se temos ou não razão em nos sentir perturbados — e,
em caso afirmativo, em que termos?
Quando a ciência avança mais
depressa do que a compreensão moral, como é o caso de hoje, homens e mulheres
lutam para articular seu mal-estar. Nas sociedades liberais, buscam primeiro a
linguagem baseada nos conceitos de autonomia, justiça e direitos humanos. Essa
parte de nosso vocabulário moral, no entanto, não nos equipou para abordar
temas mais difíceis colocados pelas práticas de clonagem, crianças projetadas e
engenharia genética. É por isso que a revolução genômica induziu a uma espécie
de vertigem moral. Para compreender a ética do melhoramento, precisamos
enfrentar questões que há muito se ausentaram do campo de visão do mundo
moderno — relativas ao estatuto moral da natureza e à atitude adequada dos
seres humanos em relação ao mundo “dado”. Uma vez que elas tocam na teologia,
os filósofos e teóricos políticos modernos tendem a evitá-las. Entretanto os
novos poderes da nossa biotecnologia as tornam inevitáveis. Engenharia genética
Para entender como isso se dá,
consideremos quatro exemplos da bioengenharia que já estão delineados no
horizonte: melhoramento muscular, da memória e da altura e seleção de sexo. Em
cada um desses casos, o que começou como a tentativa de tratar uma doença ou
prevenir um distúrbio genético hoje acena como um instrumento de melhoria e uma
escolha de consumo.
Músculos
Todos deveriam receber de
braços abertos uma terapia genética capaz de aliviar a distrofia muscular e
conter a perda muscular debilitante que surgem com a idade. Mas e se essa mesma
terapia fosse utilizada para produzir atletas geneticamente alterados?
Pesquisadores desenvolveram um gene sintético que, quando injetado nas fibras
musculares de ratos, provoca o crescimento muscular e evita que os músculos se
deteriorem com a idade. O êxito traz bons prognósticos para o uso do gene em
seres humanos. O dr. H. Lee Sweeney, responsável pela pesquisa, espera que sua
descoberta seja capaz de sanar a imobilidade que aflige os idosos. Os ratos
curados do dr. Sweeney, entretanto, já atraíram a atenção de atletas que estão
em busca de vantagem competitiva. Isso porque o gene não apenas promove a
reparação dos músculos lesionados, mas também fortalece os músculos saudáveis.
Embora a terapia não esteja ainda aprovada para uso em seres humanos, a
perspectiva de halterofilistas, batedores de beisebol, jogadores de futebol
americano e corredores geneticamente melhorados é fácil de imaginar. O uso
generalizado de esteroides e outras drogas de melhoramento de desempenho no
esporte profissional sugere que muitos atletas ficariam ansiosos para se lançar
à terapia de melhoramento genético. O Comitê Olímpico Internacional (COI) já
está preocupado com o fato de que, ao contrário de drogas e medicamentos, não é
possível detectar a presença de genes alterados em testes de urina ou de
sangue.
A perspectiva de atletas
geneticamente alterados ilustra bastante bem os dilemas que existem em torno do
melhoramento genético. O COI e outras ligas profissionais do esporte deveriam
banir os atletas geneticamente melhorados? Em caso afirmativo, em que termos?
Os dois motivos mais óbvios para banir o uso de drogas nos esportes são a
segurança e a igualdade: os esteroides apresentam efeitos colaterais danosos, e
permitir que alguns atletas melhorem seu desempenho arriscando-se a prejudicar
seriamente a saúde colocaria seus adversários em um pé de injusta desigualdade.
Mas suponhamos, a título de argumentação, que a terapia genética de
melhoramento muscular fosse segura, ou pelo menos não mais arriscada do que um
programa de musculação rigoroso. Será que ainda assim haveria razão para banir
o seu uso nos esportes? Sim, existe algo de inquietante em relação ao espectro
de atletas geneticamente modificados
levantando SUVs, marcando home runs de 200 metros ou correndo 2
quilômetros em três minutos, mas o que exatamente nos inquieta ao imaginarmos
tais situações? Será apenas porque consideramos tais
espetáculos super-humanos bizarros
demais para serem contemplados, ou será que nosso mal-estar
aponta para algo de relevância ética?
A distinção entre curar e
melhorar parece ser de cunho moral, mas não é óbvio em que consiste essa
diferença. Pense nisto: se não há problema que um atleta machucado repare uma
lesão muscular com a ajuda da terapia genética, por que é errado que esse mesmo
atleta estenda a terapia de modo a não apenas curar o músculo, mas
também voltar para o páreo melhor ainda do que antes? Podemos argumentar
que um atleta geneticamente modificado teria uma vantagem injusta em relação a
seus adversários não melhorados, porém o argumento contra o melhoramento
apoiado na questão da justiça tem em si uma falha fatal. Sempre houve atletas
geneticamente superiores e, contudo, não julgamos que a desigualdade natural da
herança genética de uns em relação a outros prejudique a justiça nas
competições esportivas. Do ponto de vista da justiça e da igualdade
competitiva, as diferenças genéticas provocadas pelo melhoramento não são
piores do que as naturais. Além do mais, supondo que seu uso seja seguro, as
terapias de melhoramento genético
poderiam estar disponíveis para todos. Se o melhoramento genético nos esportes
é moralmente censurável, então deve sê-lo por motivos que vão além da justiça e da igualdade.
Memória
O melhoramento genético é tão
possível para o cérebro quanto para os músculos. Em meados da década de 1990,
cientistas conseguiram manipular um gene das drosófilas ligado à memória e
criaram moscas com memória fotográfica. Mais recentemente, pesquisadores
produziram ratos inteligentes ao inserir em seus embriões cópias extras de um
gene relacionado à memória. Os ratos modificados aprendem mais depressa e se
lembram das coisas por mais tempo do que os ratos normais. Por exemplo,
conseguem reconhecer melhor objetos que já viram antes e se lembrar de que
determinado som leva a um choque elétrico. O gene que os cientistas refinaram
nos embriões de ratos também está presente nos seres humanos e se torna menos
ativo com a idade. As cópias extras inseridas nos ratos foram programadas para
permanecer ativas mesmo na velhice, e tal melhoria foi transmitida a suas
crias.
É claro que o funcionamento da
memória humana é mais complicado do que apenas recordar associações simples.
Mas empresas de biotecnologia com
nomes como Memory Pharmaceuticals
estão ensandecidas atrás de medicamentos para melhorar a memória, os chamados
“melhoradores cognitivos”, para uso em seres humanos. Um dos alvos óbvios para
tais drogas são as pessoas que sofrem de distúrbios sérios da memória, como
Alzheimer e demência. Mas as empresas já estão de olho em uma fatia do mercado
bem maior: os 76 milhões de baby boomers*** acima dos 50 anos que estão
começando a enfrentar a perda natural de memória que surge com a idade.
Um uso dessa natureza ficaria
no meio-termo entre remédio e melhoramento. Ao contrário de uma terapia para
Alzheimer, não curaria nenhuma doença, mas, uma vez que restaurasse as
capacidades que a pessoa um dia já teve, teria certo aspecto medicinal. Por
outro lado, também poderia ser usado para fins absolutamente não medicinais:
por exemplo, por um advogado lutando para memorizar fatos para um julgamento ou
por um executivo ansioso por aprender mandarim na véspera da sua viagem para
Xangai.
Pode-se argumentar, contra o
projeto de melhoramento genético da memória, que existem coisas que é melhor
esquecer. Para as empresas
farmacêuticas, entretanto, o desejo de esquecer não representa nenhum
empecilho, e sim mais um segmento de mercado. Quem deseja apagar o impacto de
lembranças traumáticas ou dolorosas poderá em breve tomar um medicamento capaz
de evitar que os acontecimentos horrendos irrompam de modo vívido na memória.
Vítimas de violência sexual, soldados expostos à carnificina da guerra ou
membros de equipes de salvamento e resgate obrigados a enfrentar o desfecho de
um ataque terrorista poderiam tomar uma droga supressora da memória para nublar
um trauma que, de outro modo, talvez os atormentasse por toda a vida. Se o uso
de tais drogas tornar-se amplamente aceito, pode ser que um dia elas venham a ser
administradas rotineiramente nos pronto-socorros e hospitais militares.
Alguns dos que se preocupam com
a ética do melhoramento cognitivo apontam para o perigo de criar duas classes
de seres humanos — aqueles com acesso às tecnologias de melhoramento genético e
aqueles que precisam se virar com uma memória inalterada que se deteriora com a
idade. E se os melhoramentos puderem ser transmitidos de geração em geração, as
duas classes poderiam um dia tornar-se subespécies humanas: os melhorados e os
naturais. A preocupação com o acesso, entretanto, implora que analisemos a
questão do estatuto moral do melhoramento por si mesmo. Se essa situação parece
perturbadora é porque os benefícios da bioengenharia seriam negados aos pobres
não melhorados ou porque os ricos melhorados estariam de certo modo
desumanizados? A mesma problemática apresentada em relação aos músculos vale
também para a memória: a questão
fundamental não é como assegurar o acesso igualitário ao melhoramento, e sim se
devemos aspirar a ele. Será que deveríamos dedicar nossa proficiência
tecnológica para curar as doenças e ajudar as pessoas a recuperarem a saúde ou
será que também deveríamos nos melhorar reconstruindo nossos corpos e nossas
mentes?
Altura
Os pediatras já estão se
defrontando com a ética do melhoramento ao serem interpelados por pais que
desejam aumentar a altura dos filhos. A partir dos anos 1980, a terapia com
hormônio do crescimento humano foi aprovada para crianças portadoras de uma
deficiência hormonal que as torna bem mais baixas do que a média.
O mesmo tratamento, porém, também é capaz de
aumentar a altura de crianças saudáveis. Alguns pais de crianças saudáveis que
estão insatisfeitos com a estatura dos filhos (em geral meninos) pedem pelo
tratamento hormonal dizendo que não importa se uma criança é baixa por causa de
uma deficiência hormonal ou porque seus pais são baixos. Seja qual for a causa
da baixa estatura, as consequências sociais que ela acarreta são idênticas nos
dois casos.
Diante desse argumento, alguns
médicos começaram a prescrever tratamentos hormonais para crianças cuja baixa
estatura não tinha nenhuma relação com problemas de saúde. Em 1996, tal uso off
label***** respondia por 40% das prescrições de hormônio do crescimento
humano.13 Embora não seja ilegal prescrever medicamentos para fins não
aprovados pela Food and Drug Administration (FDA), as empresas farmacêuticas
são proibidas de promover esse tipo de uso. Buscando expandir seu mercado, uma
dessas empresas, a Eli Lilly, recentemente convenceu a FDA a aprovar o uso do
hormônio de crescimento humano para crianças saudáveis cuja projeção de altura
quando adultas se situasse no percentil mais baixo — menos de 1,60 metro no
caso dos meninos e menos de 1,48 metro no caso das meninas. Essa pequena
concessão levanta uma grande questão relativa à ética do melhoramento: se os
tratamentos hormonais não precisam mais se limitar às crianças com deficiências
hormonais, por que deveriam então estar disponíveis somente para crianças muito
baixas? Por que não deveriam estar disponíveis a todas as crianças mais baixas
do que a média? E que dizer de uma criança
de altura normal que desejasse ser mais alta para entrar no time de
basquete?
Os críticos
chamam o uso
eletivo do hormônio
do crescimento humano
de “endocrinologia cosmética”.
Os tratamentos são caros e os seguros de saúde
dificilmente os cobririam. Devem-se
aplicar injeções até seis vezes por semana durante de dois a cinco anos, a um
custo anual de aproximadamente US$ 20 mil — e tudo isso para um ganho potencial
de altura de 5 a 7,5 centímetros.
Há quem se oponha ao uso do
melhoramento para conquistar altura com o argumento de que é coletivamente
prejudicial, pois enquanto alguns se tornam mais altos, outros necessariamente
se tornam mais baixos em relação à média. Mas nem todas as crianças podem ter
altura mediana, exceto as de Lake Wobegon*****. À medida que os não melhorados
começarem a se sentir mais baixos, poderão eles também buscar tratamento, o que
levará a uma corrida hormonal sem sentido que só agravará ainda mais a situação
atual, especialmente de quem não puder pagar para superar a baixa estatura.
Contudo, a objeção da corrida
sem sentido não é decisiva em si. Tal como o argumento da justiça contra a bioengenharia
utilizada para melhorar os músculos e a memória, ela não analisa as atitudes e
disposições que incitam o impulso pelo melhoramento. Se o que nos incomoda
fosse apenas a injustiça de acrescentar a baixa estatura ao rol de problemas
dos pobres, poderíamos remediar o problema oferecendo terapias de melhoramento
genético subsidiadas pelo governo. Quanto ao problema da ação coletiva, a
criação de um imposto sobre aqueles que pagassem para ser mais altos poderia
compensar financeiramente todos os observadores inocentes que se vissem
prejudicados pela relativa depreciação da sua altura. A verdadeira questão é se
desejamos viver em uma sociedade em que os pais se sentem compelidos a gastar
uma fortuna somente para aumentar em alguns centímetros a altura de seus filhos
perfeitamente saudáveis.
Seleção do sexo
Talvez o mais sedutor dos usos
da bioengenharia para fins não medicinais
seja a seleção do sexo. Há séculos os pais tentam escolher o sexo dos
filhos. Aristóteles aconselhava que os
homens que desejavam um menino amarrassem o testículo esquerdo antes da relação
sexual. O Talmude ensina que os homens que se contêm e permitem que as mulheres
cheguem primeiramente ao orgasmo serão abençoados com um garoto. Outros métodos
recomendados envolviam combinar o momento da relação sexual com a época da
concepção ou as fases da lua. Hoje a bioengenharia encontra êxito onde os
remédios populares falharam.
No caso dos casais que usam a
fertilização in vitro (FIV), é possível escolher o sexo da criança antes da implantação
do óvulo fertilizado no útero. O procedimento, conhecido como diagnóstico
genético pré-implantacional (PGD, sigla em inglês para preimplantation genetic
diagnosis), funciona da seguinte maneira: diversos óvulos são fertilizados em
uma placa de Petri. Quando atingem o estágio de oito células (ou seja, depois
de aproximadamente três dias), os embriões são testados para determinação do
sexo. Os do sexo desejado são implantados; os outros são descartados. Embora
poucos casais estejam dispostos a encarar as dificuldades e o custo elevado da
FIV apenas para escolher o sexo do filho, os testes embrionários são um meio
altamente confiável para a seleção do sexo. E, à medida que aumenta nosso
conhecimento sobre genética, pode vir a ser possível utilizar o PGD para
descartar outras características genéticas indesejadas, tais como obesidade,
baixa estatura ou
cor de pele.
O filme de
ficção científica Gattaca —
Experiência genética, de 1997, retrata um futuro no qual os pais rotineiramente
testam embriões para determinar sexo, altura, imunidade e até mesmo QI. Existe
algo de perturbador no quadro exibido em Gattaca, mas não é fácil
identificar qual é exatamente o problema
de testar embriões para escolher o sexo de nossos filhos.
A tecnologia de ponta usada
para a seleção do sexo nos coloca essa questão por si só, sem associada ao
status moral dos embriões. O Genetics & IVF Institute, uma clínica de
infertilidade com fins lucrativos localizada em Fairfax, Virgínia, oferece hoje
uma técnica de seleção de espermatozoides que permite que os clientes escolham
o sexo dos filhos antes mesmo da concepção. O espermatozoide com cromossomo X
(que produz meninas) carrega mais DNA do que o espermatozoide com cromossomo Y
(que produz meninos); com o uso de um aparelho chamado citômetro de fluxo, é
possível diferenciá- los. A técnica, que foi patenteada sob o nome de
MicroSort, apresenta altos índices de precisão: 91% na identificação de meninas
e 76% na de meninos. O Genetics & IVF Institute licenciou essa tecnologia
no Departamento [Ministério] de Agricultura dos Estados Unidos, que a
desenvolveu para a reprodução de gado bovino.
Se considerarmos censurável a
seleção de sexo por meio da testagem de espermatozoides, então deve ser por
motivos que vão além do debate em relação ao estatuto moral do embrião. Um
desses motivos é que a seleção do sexo é um instrumento de discriminação
sexual, tipicamente contra meninas, como ilustram as assustadoras desproporções
entre os sexos na Índia e na China. Há quem especule que as sociedades nas
quais existem mais homens do que mulheres serão menos estáveis, mais violentas
e mais propensas ao crime e às guerras do que aquelas nas quais as proporções
entre os sexos são normais.
Todas essas preocupações são legítimas, mas a
empresa de testagem de espermatozoides mencionada criou uma forma inteligente
para lidar com elas. O MicroSort só está disponível para casais que desejam
escolher o sexo dos filhos com o intuito de balancear a família. Os que têm
mais filhos do que filhas podem escolher uma menina e vice-versa. Os
clientes não podem utilizar a técnica para
colecionar crianças do mesmo sexo, tampouco para escolher o sexo do
primeiro filho. Até agora, a maioria dos clientes da MicroSort escolheu
meninas.
O caso do MicroSort nos ajuda a
isolar a questão moral suscitada pelas tecnologias de melhoramento genético.
Deixemos de lado os debates comuns em torno da segurança, do descarte de
embriões e da discriminação sexual e imaginemos que as tecnologias de testagem
de espermatozoides fossem empregadas em uma sociedade que não favorecesse os
homens e que o resultado final fosse um equilíbrio maior na proporção entre os sexos. Será que nessas condições a
seleção do sexo continuaria a ser repreensível? E se fosse possível escolher
não apenas o sexo, mas também a altura,
a cor dos olhos e a cor da pele? Além de
orientação sexual, QI, habilidades musicais e aptidão para os esportes? Imagine
ainda que o melhoramento genético de músculos, memória e altura fosse
aperfeiçoado a ponto de ser seguro e colocado à disposição de todos: nesse
caso, deixaria de ser repreensível?
Não necessariamente. Em todos
esses casos, persiste algo de moralmente inquietante. O problema não reside
somente nos meios, mas também nos fins almejados. É comum dizer que o
melhoramento genético, a clonagem e a engenharia genética ameaçam a dignidade
humana. Isso é verdade. O desafio, porém, é identificar como essas práticas
reduzem a nossa humanidade — ou seja, quais aspectos da liberdade humana ou do
florescimento humano se veem ameaçados.
Atletas biônicos
Se o esforço fosse o ideal
esportivo mais elevado de todos, então o pecado do melhoramento seria o fato de
ele fornecer um jeito de escapar do treino e do trabalho árduo. Mas esforço não
é tudo. Ninguém acredita que um jogador de basquete medíocre que dá tudo de si
e treina com afinco ainda maior do que Michael Jordan mereça mais aclamação ou
um contrato melhor. O verdadeiro problema dos atletas geneticamente modificados
é que eles corrompem a competição esportiva enquanto atividade humana que honra o cultivo e a exibição de
talentos naturais.
MELHORAMENTO DO
DESEMPENHO: HIGH TECH E LOWTECH
O limite entre cultivar
talentos naturais e corrompê-los com artifícios nem sempre é claro. No início,
os corredores corriam descalços. Pode ser que aquele que calçou o primeiro par
de tênis de corrida tenha sido acusado de corromper a competição. Tal acusação
teria sido injusta; desde que todos tenham acesso a esse tipo de calçado, ele
destaca, e não obscurece, a excelência que a corrida foi inventada para exibir.
Não se pode dizer o mesmo sobre todos os artifícios que os atletas empregam
para melhorar seu desempenho. Quando foi descoberto que Rosie Ruiz vencera a
Maratona de Boston porque saíra de fininho e percorrera parte do trajeto de
metrô, seu prêmio foi revogado. Os casos difíceis se situam em algum ponto
entre os tênis de corrida e o metrô.
As inovações em equipamentos
são uma espécie de melhoramento e assim estão constantemente sendo colocadas em
dúvida: aperfeiçoam ou obscurecem as habilidades essenciais para a competição?
Entretanto, parece que as questões mais difíceis são levantadas pelo
melhoramento corporal. Os defensores do melhoramento argumentam que as drogas e as intervenções
genéticas não são diferentes de outros modos
que os atletas empregam para modificar o corpo, tais como dietas
especiais, complexos vitamínicos, barras energéticas, suplementos, programas de
treinamento rigorosos e até mesmo
cirurgias. Tiger Woods enxergava tão mal que nem sequer conseguia ler o “E”
grande do painel de exame oftalmológico. Em 1999 ele se submeteu a uma cirurgia
a laser com o método Lasik e venceu seus cinco torneios seguintes.
O caráter reparador da cirurgia
ocular faz com que ela seja de fácil aceitação. Mas e se Woods tivesse visão
normal e desejasse melhorá-la? Ou, digamos, como parece ser o caso, que a
cirurgia a laser tenha lhe dado uma visão melhor do que a de um jogador de
golfe comum: será que isso faria dela um melhoramento ilegítimo?
A resposta depende de definir
se o melhoramento da visão dos golfistas aperfeiçoa ou distorce os talentos e
as habilidades que o golfe, na sua máxima expressão, foi criado para pôr à
prova. Os defensores do melhoramento têm razão neste ponto: no caso dos golfistas, a legitimidade do melhoramento
da visão não está relacionada aos meios que eles empregam para consegui-la —
sejam eles cirurgias, lentes de contato, exercícios oculares ou quantidades
copiosas de suco de cenoura. O melhoramento é perturbador porque distorce e
sobrepuja os talentos naturais, e isso não se restringe às drogas e
modificações genéticas: podemos levantar objeções semelhantes contra alguns
tipos de melhoramento que aceitamos comumente, como treinos e dieta.
Filhos projetados,
pais projetistas
MOLDAR E CONTEMPLAR
A medicina, tal como os
esportes, é uma prática dotada de propósito, de um telos que a norteia e a
restringe. É claro que o que se considera saúde ou funcionamento humano normal
é algo aberto à discussão; não é apenas uma questão biológica. Há controvérsias,
por exemplo, quanto a se a surdez é uma deficiência a ser curada ou uma forma
de comunidade e identidade a cultivar. Contudo, mesmo essa discussão surge a
partir do ponto pacífico de que o objetivo da medicina é promover a saúde e
curar as doenças.
Algumas pessoas argumentam que
na obrigação de um pai de curar um filho doente está implícita a de melhorar um
filho saudável, de maximizar seu potencial para que ele alcance o sucesso na
vida. Contudo isso somente é verdadeiro se aceitarmos a ideia utilitária de que
a saúde não é um bem humano distintivo, e sim apenas um meio de maximizar nossa
felicidade e nosso bem-estar. O bioeticista Julian Savulescu argumenta, por
exemplo, que “a saúde não tem valor intrínseco”, apenas “valor instrumental”, é
um “recurso” que nos permite fazer o que desejamos. Esse tipo de pensamento em
relação à saúde rejeita a distinção entre cura e melhoramento. De acordo com
Savulescu, os pais não apenas têm o dever de promover a saúde dos filhos como também
a “obrigação moral de modificá-los geneticamente”. Os pais deveriam
utilizar a tecnologia para manipular a “memória, o temperamento, a paciência, a
empatia, o senso de humor, o otimismo” e outras características dos filhos, a
fim de lhes dar “a melhor oportunidade de ter uma vida melhor”.
Mas é um erro pensar na saúde
em termos exclusivamente instrumentais, como um meio de maximizar alguma outra
coisa. A boa saúde, assim como o bom caráter, é um elemento constitutivo do
florescimento humano. Embora seja melhor ter mais saúde do que ter menos, pelo
menos dentro de certos limites, a saúde não é o tipo de recurso que pode ser
maximizado. Ninguém deseja ser um virtuose na saúde (exceto talvez os
hipocondríacos).
Hoje, no entanto, os pais
exageradamente ambiciosos tendem a perder a medida na transformação do amor, ao
promover e exigir todo tipo de conquista dos filhos em busca da perfeição.
Admiramos os pais que buscam o
melhor para seus filhos, que não poupam esforços para ajudá-los a conquistar a
felicidade e o sucesso. Qual é, então, a diferença entre oferecer essa ajuda
por meio da educação e da disciplina e fornecê-la por meio do melhoramento
genético? Alguns pais conseguem vantagens para os filhos ao matriculá-los em
escolas caras, contratar professores particulares, mandá-los a acampamentos de
tênis, aulas de piano, de balé, de natação, de preparação para os exames de
admissão à universidade e assim por diante. Se isso é admissível, e até mesmo
admirável, então por que não é igualmente admirável que os pais se valham de
quaisquer tecnologias genéticas à disposição (desde que sejam seguras) para
melhorar a inteligência, a habilidade musical ou a competência esportiva dos
seus filhos?
Os defensores do melhoramento
argumentam que, em princípio, não existe diferença entre melhorar as crianças
por meio da educação ou por meio da bioengenharia. Os críticos do melhoramento
insistem em que tentar melhorar as crianças por meio da manipulação de sua
carga genética é algo que remonta à eugenia, aquele movimento desacreditado do
século passado que visava a melhorar a raça humana por meio de políticas
(inclusive esterilização forçada e outras medidas hediondas) voltadas para o
aprimoramento genético. Essas analogias rivais ajudam a esclarecer o estatuto
moral do melhoramento genético. Será o afã de melhorar os filhos por meio
da engenharia genética mais parecido com
a educação e a disciplina (algo presumivelmente bom) ou mais parecido com a
eugenia (algo presumivelmente ruim)?
...............
Embora as prescrições de
ritalina para crianças e adolescentes tenham disparado nos últimos anos, nem
todos os seus usuários sofrem de transtorno de atenção ou hiperatividade. Os
alunos, tanto do ensino médio quanto de nível universitário, descobriram que os
psicoestimulantes melhoram também a concentração das pessoas saudáveis; alguns
compram ou pegam emprestado a ritalina dos colegas para melhorar seu desempenho no exame de admissão
à universidade ou em provas na universidade. Uma das descobertas mais
desconcertantes a respeito do uso da ritalina é o aumento das prescrições
médicas para crianças em idade pré-escolar. Embora o medicamento não esteja
aprovado para uso em crianças menores de 6 anos, os índices de prescrição para
crianças de 2 a 4 anos praticamente triplicaram de 1991 a 1995.
Uma vez
que a ritalina
funciona tanto para
propósitos medicinais quanto
para propósitos não medicinais — ou seja, tanto para tratar TDAH quanto
para melhorar o desempenho de jovens saudáveis em busca de uma vantagem
competitiva —, ela propõe os mesmos dilemas morais suscitados por outras
técnicas de melhoramento.
Seja lá como forem resolvidos esses dilemas, o debate sobre a ritalina
revela a distância cultural que percorremos desde o debate em torno das drogas
(como maconha e LSD) uma geração atrás. Ao contrário das drogas dos anos 1960 e
1970, a ritalina e o Adderall não são para se distrair, mas para se concentrar;
não para observar o mundo e absorvê-lo,
mas para moldar o mundo e se encaixar. Costumávamos chamar o uso de
drogas não medicinais de “recreacional”. Esse termo já não se aplica. Os
esteroides e estimulantes que figuram no debate em torno do melhoramento não
são uma fonte de recreação, mas uma tentativa de adequação, uma forma de
resposta à demanda competitiva da sociedade para melhorar nosso desempenho e
aperfeiçoar nossa natureza. Essa demanda pelo desempenho e pela perfeição anima
o impulso de injuriar o que nos é dado. É a fonte mais profunda do problema
moral do melhoramento.
Há quem veja uma linha distinta
entre o melhoramento genético e as outras maneiras que as pessoas utilizam para
melhorar a si mesmas e aos seus filhos. A manipulação genética parece de certa
forma pior — mais invasiva, mais sinistra — do que outras maneiras de melhorar
o desempenho e buscar o sucesso. Mas, do ponto de vista moral, a diferença é
menos significativa do que parece.
3 A nova e a velha eugenias
A eugenia foi um movimento
dotado de uma grande ambição: aprimorar geneticamente a raça humana. O termo,
que significa “bem-nascido”, foi cunhado em 1883 por sir Francis Galton, primo
de Charles Darwin, que aplicou métodos estatísticos ao estudo da hereditariedade.
Convencido de que a hereditariedade dominava o talento e o caráter, ele achava
possível “produzir uma raça altamente talentosa de seres humanos por meio de
casamentos criteriosos durante diversas gerações consecutivas”. Ele conclamava
que a eugenia fosse “introduzida na consciência nacional, como uma nova
religião”, encorajando os talentosos a escolherem seus parceiros com objetivos
eugênicos em mente. “O que a natureza faz às cegas, devagar e de modo
grosseiro, os homens podem fazer de modo providente, rápido e gentil (…). O
aprimoramento de nossa raça me parece ser um dos mais elevados objetivos que
podemos buscar racionalmente.”
A VELHA EUGENIA
Na Alemanha,
a legislação eugênica
americana encontrou em
Adolf Hitler um admirador. Em Mein
Kampf (Minha luta) ele fez uma profissão de fé na eugenia:
A exigência de que os
deficientes sejam impedidos de propagar uma prole de deficientes como eles é
uma exigência da mais clara razão e, se sistematicamente executada, representa
o mais humano dos atos da humanidade. Poupará milhões de desafortunados de sofrimento desmerecido e
consequentemente levará a uma melhoria da saúde como um todo.
Quando conquistou o poder, em
1933, Hitler promulgou uma ampla lei de esterilização que arrancou elogios dos
eugenistas americanos. O Eugenical News, uma publicação de Cold Spring Harbor,
editou uma tradução literal da lei e observou com orgulho suas semelhanças com
o modelo de lei de esterilização proposto pelo movimento de eugenia americano.
A eugenia de Hitler terminou
indo além da esterilização e passou ao assassinato em massa e ao genocídio. No
fim da Segunda Guerra Mundial, as notícias sobre as atrocidades cometidas pelos
nazistas contribuíram para o recuo do movimento eugenista norte-americano. As
esterilizações involuntárias caíram nas décadas de 1940 e 1950, muito embora
até os anos 1970 alguns estados continuassem a fazê-las. Em 2002 e 2003,
depois que reportagens
investigativas trouxeram as
crueldades eugenistas do passado à atenção do grande público, os
governadores dos estados de Oregon, Virgínia, Califórnia, Carolina do Norte e
Carolina do Sul fizeram pedidos de desculpas formais para as vítimas da
esterilização compulsória.
A sombra da eugenia paira sobre
todos os debates da atualidade acerca da engenharia e do melhoramento
genéticos. Os críticos da engenharia genética argumentam que a clonagem humana,
o melhoramento genético e a busca por crianças feitas sob encomenda não passam
de eugenia “privatizada” ou “de livre mercado”. Já os defensores retrucam que
as escolhas genéticas feitas livremente não são eugenia, pelo menos não no
sentido pejorativo do termo. Retirar o aspecto da coerção, argumentam, é
retirar aquilo que torna a eugenia repugnante.
Aprender a lição da eugenia é
outra maneira de se confrontar com a ética do melhoramento. Os nazistas deram
um rosto feio à eugenia, mas o que exatamente havia de errado com ela? Seria a eugenia censurável
somente quando coercitiva? Ou haverá algo de errado mesmo com as formas não
coercitivas de controlar a carga genética da geração seguinte?
DE NOSSOS DONS
a consciência de que nenhum de nós é
completamente responsável pelo próprio sucesso — impede a sociedade
meritocrática de deslizar para a crença arrogante de que o sucesso é o
coroamento da virtude, de que os ricos são ricos porque são mais merecedores do
que os pobres.
Se a engenharia genética nos
permitisse sobrepujar os resultados da loteria genética e substituir o acaso
pela escolha, o caráter de dádiva das potências e das conquistas humanas desapareceria — e com ele,
talvez, nossa capacidade de nos ver como pessoas que compartilham um destino comum. Seria
ainda mais provável do que é hoje que os bem-sucedidos se vissem como pessoas
self-made e autossuficientes e, por conseguinte, completamente responsáveis
pelo próprio sucesso. Os que estão nas camadas mais baixas da sociedade seriam
vistos não como em desvantagem, e por isso dignos de alguma forma de
compensação, mas simplesmente como desqualificados e, portanto, dignos de
consertos eugênicos. A meritocracia, menos moderada pelo acaso, ficaria mais
inflexível e menos tolerante. À medida que o perfeito conhecimento genético
extinguisse o simulacro de
solidariedade que existe
nos mercados de
seguros, o perfeito
controle genético corroeria a verdadeira solidariedade que surge quando
homens e mulheres refletem sobre a contingência de seus talentos e de sua
sorte.
OBJEÇÕES
É provável que meu argumento
contra o melhoramento levante pelo menos duas objeções: algumas pessoas poderão
dizer que é religioso demais; outras, que não é convincente em termos
consequencialistas. A primeira objeção afirma que falar em dádiva pressupõe um
doador. Se isso é verdade, então meu argumento contra a engenharia e o
melhoramento genéticos seria inescapavelmente religioso. Eu afirmo, pelo
contrário, que a valorização da dádiva da vida pode surgir tanto de
fontes religiosas quanto seculares. Embora
alguns creiam que Deus seja a fonte da dádiva da vida, e que a reverência à
vida é uma forma de gratidão a Deus, não é preciso acreditar nisso para
valorizar a vida como dádiva e reverenciá-la. Falamos comumente do dom de um
atleta, ou de um músico, sem formar qualquer suposição quanto a se esse dom vem
ou não de Deus. O que queremos dizer com isso é apenas que o talento em questão
não é responsabilidade inteiramente do atleta ou do músico; é um dote que vai
além do seu controle, não importa se ele deve agradecer à natureza, à sorte ou
a Deus.
De modo semelhante, as pessoas
costumam falar na santidade da vida, ou mesmo da natureza, sem necessariamente
abraçar a versão metafísica pesada dessa ideia. Por exemplo, há quem partilhe
com os antigos a noção de que a natureza é sagrada no sentido de ser encantada,
dotada de um significado inerente, ou animada por um propósito divino; outras
pessoas, na tradição judaico-cristã, acham que a santidade da natureza é
derivada da criação divina do universo; já outras ainda acreditam que a
natureza é sagrada simplesmente no sentido de não ser um simples objeto a nossa
disposição, aberto a qualquer uso que queiramos fazer. Todas essas diversas
compreensões do sagrado insistem que valorizemos a natureza e os seres vivos
como algo além de meros instrumentos; fazer o contrário mostra certa
falta de reverência, de respeito. Mas esse mandato moral não precisa se apoiar
em um único quadro religioso ou
metafísico.
Pode-se retrucar que as noções
não teológicas de santidade e dádiva são incapazes de se sustentar por si
mesmas e devem sempre se apoiar em suposições metafísicas emprestadas que elas
mesmas deixam de validar. Essa é uma questão profunda e difícil que não posso tentar resolver aqui.6
É digno de nota, contudo, que pensadores liberais de Locke a Kant e Habermas
aceitem a ideia de que a liberdade depende de uma origem ou de um ponto de
vista que foge do nosso controle.
Para Locke, nossa vida e nossa
liberdade, por serem direitos inalienáveis, não são nossas para delas abrirmos
mão (por meio do suicídio ou vendendo-nos como escravos). Para Kant, embora
sejamos os autores da lei moral, não temos a liberdade de nos explorar ou nos
tratar como objetos, do mesmo modo como não podemos fazer isso com os outros. E
para Habermas, conforme vimos, nossa liberdade de seres morais iguais depende
de termos uma origem que esteja além da manipulação ou do controle humanos.
Podemos compreender tais noções de direitos inalienáveis e invioláveis sem
necessariamente abraçar os conceitos religiosos da santidade da vida humana. De
maneira semelhante, podemos compreender a noção de dádiva, e sentir seu peso
moral, independentemente de atribuirmos a origem dessa dádiva a Deus.
A segunda objeção considera
minha argumentação contra o melhoramento limitadamente consequencialista e
segue nas seguintes linhas: apontar os possíveis efeitos da bioengenharia sobre
a humildade, a responsabilidade e a solidariedade pode ser convincente para quem
valoriza essas virtudes. Mas quem está mais interessado em obter uma vantagem
competitiva para seus filhos ou para si mesmo talvez resolva que os benefícios
advindos do melhoramento genético superam seus efeitos supostamente adversos
sobre as instituições sociais e os sentimentos morais. Além disso, mesmo
supondo que o desejo de domínio seja algo mau, um indivíduo que o persiga pode
conquistar um bem moral compensatório — a cura do câncer, por exemplo. Então
por que assumir que o lado “ruim” do domínio necessariamente supera o bem que
ele pode trazer?7
A essa objeção respondo que não
tenciono apoiar meu argumento contra o melhoramento em considerações
consequencialistas, pelo menos não no sentido comum do termo. Não desejo provar
que a engenharia genética é repreensível simplesmente porque seus custos
sociais provavelmente superariam os possíveis benefícios. Nem afirmo que as pessoas que lançam mão da
bioengenharia para projetar a si mesmas ou a seus filhos estejam necessariamente
motivadas pelo desejo de dominar e que isso é um pecado do qual nada de bom
pode advir. Não: o que estou sugerindo é que no debate sobre o melhoramento os
riscos morais não estão totalmente apreendidos nas categorias familiares de
autonomia e direitos, por um lado, nem no cálculo dos custos e benefícios,
por outro. O que me preocupa não é o melhoramento como vício
individual, mas sim COMO HÁBITO MENTAL E MODO DE VIDA.
Os maiores riscos são de dois
tipos. Um deles envolve o destino dos bens humanos encarnados em importantes
práticas sociais — os preceitos de amor incondicional e abertura ao imprevisto,
no caso da experiência parental; a celebração dos talentos e dos dons naturais
nas artes e nos esportes; a humildade diante do privilégio próprio e a
disposição de partilhar os frutos da sua boa fortuna por meio de mecanismos de
solidariedade social. O outro diz respeito a nossa orientação em relação ao
mundo que habitamos e ao tipo de liberdade ao qual aspiramos.
É tentador pensar que projetar
nossos filhos e nós mesmos para o sucesso por meio da bioengenharia é um
exercício de liberdade numa sociedade competitiva. Porém modificar nossa
natureza para nos encaixar no mundo, e não o contrário, é, na verdade, a forma
mais profunda de enfraquecimento da autonomia. Em vez de empregar nossos novos
conhecimentos genéticos para endireitar “a madeira torta da humanidade”,9
deveríamos fazer o possível para criar arranjos políticos e sociais mais
tolerantes com as dádivas e limitações dos seres humanos imperfeitos.
O PROJETO DO DOMÍNIO
No fim dos anos 1960, Robert L.
Sinsheimer, um biólogo molecular do California Institute of Technology,
vislumbrou o rumo que as coisas tomariam. Em um artigo intitulado “The Prospect
of Designed Genetic Change” (A perspectiva das modificações genéticas projetadas),
ele argumentou que a liberdade de escolha justificaria a nova genética e a
apartaria da antiga eugenia caída em descrédito.
Para implementar a antiga
eugenia de Galton e seus sucessores, teria sido necessário um programa social
de grande envergadura e com duração de muitas gerações. Um programa assim não
poderia ser levado a cabo sem o
consentimento e a cooperação da maioria da população e estaria continuamente
submetido ao controle social. Em comparação, a nova eugenia poderia, pelo menos
em princípio, ser implementada numa base individual, em uma única geração, sem
se sujeitar a qualquer restrição preexistente.
Segundo a nova eugenia seria
voluntária, não coercitiva, e também mais humana. Em vez de segregar e eliminar
os desqualificados, ela os melhoraria. “A velha eugenia teria exigido não só
que se fizesse uma seleção contínua, a fim de fazer os qualificados procriarem,
como também que se apartassem os desqualificados. A nova eugenia permitiria, em
princípio, a conversão de todos os desqualificados para o mais alto nível
genético.”
A peã de Sinsheimer à
engenharia genética retrata a autoimagem prometeica e irrefletida de nossa era.
Ele falou esperançosamente em resgatar “os perdedores da loteria cromossômica
que com tanta firmeza direciona nossos destinos humanos” e incluiu não apenas
os nascidos com defeitos genéticos, mas também os “50 milhões de americanos
‘normais’ com QI abaixo de 90”. Contudo, ele também viu que algo maior do que
melhorar o “lance de dados descuidado e arcaico da natureza” estava em jogo.
Nas novas tecnologias de intervenção genética estava implícita uma posição nova
e mais exaltada para os seres humanos no universo. “À medida que aumentarmos a
liberdade do homem, diminuiremos suas restrições e o número de coisas que
devemos aceitar como dadas.” Copérnico e Darwin “distituíram o homem de sua
glória cintilante no ponto focal do universo”, mas a nova biologia recuperaria
esse papel crucial do ser humano. No espelho de nosso novo conhecimento
genético, nós nos veríamos como algo além de um simples elo na corrente da
evolução: “Podemos ser os agentes da transição para um novo salto evolutivo.
Esse é um acontecimento cósmico.”
Existe algo de sedutor, e até
mesmo inebriante, em vislumbrar a liberdade humana livre dos grilhões daquilo
que nos é dado. Talvez a sedução dessa perspectiva até tenha colaborado para
dar início à era genética. É comum assumir que os poderes de melhoramento que
hoje temos surgiram como subprodutos da
evolução da biomedicina — que a
revolução genética apareceu, por assim dizer, para curar as doenças, mas
perdurou para nos tentar com a perspectiva de melhorar nosso desempenho,
projetar nossos filhos e aperfeiçoar nossa natureza. Mas isso pode ser a
história contada de trás para a frente. Também é possível ver a engenharia
genética como a expressão máxima de nossa decisão de subjugar o mundo, como
mestres de nossa própria natureza. Essa visão de liberdade, entretanto, é
falha. Ela ameaça banir a valorização da vida como dádiva e nos deixar sem nada
para defender ou contemplar além da nossa própria vontade.
EPÍLOGO
ÉTICA EMBRIONÁRIA: O DEBATE
SOBRE AS CÉLULAS-TRONCO
Ao me opor ao melhoramento
genético, argumentei contra o triunfo unilateral do domínio sobre a reverência
e insisti que voltássemos a valorizar a vida como uma dádiva. Entretanto,
também argumentei que existe uma diferença entre curar e melhorar. A medicina
intervém na natureza, mas, por estar limitada pelo objetivo de restaurar o
funcionamento humano normal, não representa um ato de hybris desenfreada nem um
apelo de dominação. A necessidade de curar vem do fato de que o mundo não é
perfeito e completo, mas necessita constantemente da intervenção e reparação
humanas. Nem tudo que nos é dado é bom. A varíola e a malária não são dádivas e
seria bom erradicá-las.
O mesmo vale para o diabetes, o
mal de Parkinson, a esclerose lateral amiotrófica e as lesões medulares. Uma
das novas e mais promissoras fontes de esperança para os
afligidos por essas doenças é a pesquisa com células-tronco. Em breve,
os cientistas poderão extrair células-tronco de embriões em estágios iniciais
de desenvolvimento e, a partir delas, estudar e curar doenças degenerativas. Os
críticos de tal prática dizem que a extração de células-tronco destrói os
embriões. Argumentam que a vida é uma dádiva e que, portanto, qualquer pesquisa
que destrói a vida humana incipiente deve ser rejeitada. Neste epílogo, ofereço
uma defesa da pesquisa com células-tronco embrionárias e tento demonstrar como
a ética de valorizar o que nos é dado não a condena.
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