Como se constrói uma identidade social ? Como um povo
se transforma em Brasil ? A pergunta, na sua discreta singeleza, permite
descobrir algo muito importante. É que no meio de uma multidão de experiências
dadas a todos os homens e sociedades, algumas necessárias à própria
sobrevivência, como comer, dormir, morrer, reproduzir-se etc. , outras
acidentais ou superficiais: históricas,
para ser mais preciso - o Brasil foi descoberto por portugueses e não por chineses, a geografia do Brasil tem
certas características como as montanhas na costa do Centro-Sul, sofremos
pressão de certas potências europeias e não de outras, falamos português e não francês,
a família real transferiu-se para o Brasil no início do século XIX etc. Cada
sociedade (e cada ser humano) apenas se
utiliza de um número limitado de "coisas" (e de experiências) para construir-se
como algo único, maravilhoso, divino e "legal" ...
Sei,
então, que sou brasileiro e não norte-americano, porque gosto de comer feijoada
e não hambúrguer; porque sou menos
receptivo a coisas de outros países, sobretudo costumes e ideias; porque tenho
um agudo sentido de ridículo para roupas, gestos e relações sociais; porque vivo
no Rio de Janeiro e não em Nova York; porque falo português e não inglês;
porque, ouvindo música popular, sei
distinguir imediatamente um frevo de um samba; porque futebol para mim é um
jogo que se pratica com os pés e não com as mãos; porque vou à praia para ver e
conversar com os amigos, ver as mulheres e tomar sol, jamais para praticar um
esporte; porque sei que no carnaval trago à tona minhas fantasias sociais e
sexuais; porque sei que não existe jamais um
"não" diante de situações formais e que todas admitem um
"jeitinho" pela relação pessoal e pela amizade; porque entendo que
ficar malandramente "em cima do muro"
é algo honesto, necessário e
prático no caso do meu sistema; porque acredito em santos católicos e também
nos orixás africanos; porque sei que existe destino e, no entanto, tenho fé no
estudo, na instrução e no futuro do
Brasil; porque sou leal a meus amigos e nada posso negar a minha família;
porque, finalmente, sei que tenho relações pessoais que não me deixam caminhar sozinho
neste mundo, como fazem os meus amigos americanos, que sempre se veem e existem
como indivíduos!
Pois
bem: somando esses traços, forma-se uma sequência que permite dizer quem sou,
em contraste com o que seria um americano, aqui definido pelas ausências ou
negativas que a mesma lista efetivamente
comporta. A construção de uma identidade social, então, como a construção de uma sociedade, é feita de
afirmativas e de negativas diante de certas questões.
Tome uma lista de tudo o que você considera
importante - leis, idéias relativas a família, casamento e sexualidade;
dinheiro; poder político; religião e moralidade; artes; comida e prazer em
geral - e com ela você poderá saber quem é quem. (DaMATTA, Roberto. 1986. O que
faz o brasil, Brasil ?)