O
Último voo do Flamingo
Primeiras
palavras
O autor Mia Couto realmente nos presenteia com essa obra e a
UFBA também, quando dá a todos os estudantes e não somente àqueles que farão
segunda fase, a oportunidade de degustar as palavras desse escritor moçambicano.
O que considerar? Ele é homem. Admita vc pensou que era uma
mulher....bricadeirinha....
Primeiro o próprio Mia Couto admite suas influencias do
Guimaraes Rosa então verás uma linguagem inovadora. Quando foi a UFBA para as
comemorações do centenário de Jorge percebemos são laço com a construção
jorgeamediana. Então não fica difícil entender certas questões em sua obra como
a mulher como fortes e sensuais haja vista Ermelinda, a prostituta Ana
Deusqueira e Temporina[1]. O próprio fato - morte de Soldados por
explosões deixando apenas o pênis e o
chapéu são motes bem próximas das narrativas do Jorge Amado. E, não é possível
desconsiderar a influencia de Manoel de Barros e sua escrita simples com imagens
inimagináveis “máquina que fotografa vozes” para dizer gravador. Fiquem atentos.
Mia Couto tem também uma escrita assumidamente engajada com denuncias dos desmandos em seu país. Vamos
então mergulhar na obra desse autor?
O convite é analisarmos à margem do próprio texto literário.
Como poderíamos resumir um autor construtor de um texto que é uma história
contada com as formas da poesia? O próprio jeito como escreve é importante.
Perca, ou melhor, ganhe seu tempo visitando essa obra que será significativa
para sua conquista.
Vamos a
Tizangara um lugar onde nada necessita de entendimento e, as pessoas dizem
muito para falar pouco. Como assim? Deixe de perguntas. Apenas aceite um
universo fantástico.
Boa
Leitura.
Mara Rute
Lima
Trechos
comentados:
1. Fui eu que transcrevi,
em português visível, as falas que daqui se seguem[2]. Hoje são vozes que não
escuto senão no sangue, como se a sua lembrança me surgisse não da memória, mas
do fundo do corpo. É o preço de ter presenciado tais sucedências. Na altura dos
acontecimentos, eu era tradutor ao serviço da administração de Tizangara. Assisti
a tudo o que aqui se divulga, ouvi confissões, li depoimentos. Coloquei tudo nopapel
por mando de minha consciência.... Mas o que se passou só pode ser contado por
palavras que ainda não nasceram. Agora, vos conto tudo por ordem de minha única
vontade. É que preciso livrar-me destas lembranças [3]como assassino se livra do
corpo da vítima.
2. Estávamos nos primeiros
anos do pós-guerra[4]
e tudo parecia correr bem, contrariando as gerais expectativas de que as
violências não iriam nunca parar.
3. Eles, coitados, acreditavam ser donos de
fronteiras, capazes de fabricar concórdias[5]. Tudo começou com eles,
os capacetes azuis. Explodiram. Sim, é o que aconteceu a esses soldados.
Simplesmente começaram a explodir. Hoje, um. Amanhã, mais outro. Até somarem,
todos descontados, a quantia de cinco falecidos.
4. Agora, pergunto:
explodiram na inteira realidade? Diz-se, em falta de verbo.
Porque de um explodido
sempre resta alguma sobra de substância. No caso, nem resto, nem fatia. Em
feito e desfeito, nunca restou nada de seu original formato. Os soldados da paz
morreram? Foram mortos? Deixo-vos na procura da resposta, ao longo destas páginas[6].
(Assinado: O tradutor de Tizangara)
Capítulo 1 - UM SEXO AVULTADO E AVULSO
“
O mundo não é o que existe, mas o que acontece”. Dito de
Tizangara
1. Nu e cru, eis o fato: apareceu um pênis decepado, em
plena Estrada Nacional, à entrada da vila de Tizangara. Era um sexo avulso e
avultado. Os habitantes relampejaram-se[7]
em face do achado. Vieram todos, de todo lado. Uma roda de gente se engordou em
redor da coisa.
2. Certo é o ditado:
se a agulha cai no poço muitos espreitam, mas poucos descem a buscá-la[8].
3. Na nossa vila, acontecimento era coisa que nunca sucedia[9].
Em Tizangara só os fatos são sobrenaturais. E contra fatos tudo são argumentos.
Por isso, tudo acorreu, ninguém arredou. E foi o inteiro dia, uma roda curiosa,
cozinhando rumores.
4. - Agora é que vem aí chuva de
molhar vento[10].
- Sim, é melhor voltarmos às vidas.
- Se emborem, pá!
5. Sobrei para ali, sozinho, com um estranho pressentimento[11].
Em minha alma, um espinho me magoava. ...
Aquilo não era ainda o sucedimento, mas os preparativos de sua chegada.
Quando o silêncio clareia é que se escutam os escuros presságios. Foi nesse momento
que me surpreendeu a voz, esbaforida:
- Está ser chamado!
- Chamado, eu?
Eu conhecia mais que bem o mensageiro: era Chupanga, o
adjunto do administrador. Homem mucoso, subserviente - um engraxa-botas. Como
todo o agradista: submisso com os grandes, arrogante com os pequenos. O fulano
me fingia desconhecer, ocupado em suas superiores aparências. Ainda tentei um
aperto de mão, mas logo ele foi atalhando o tempo. O burro, na companhia do
leão, já não cumprimenta o cavalo[12].
- Não é você que fala afluentemente as outras
línguas?[13]
6. - Está ser chamado por Sua
Excelência.
Sua Excelência era o administrador. Ordem daquelas não se
duvida. Ouvimos, calamos e fazemos de conta que, calados, obedecemos. Nem vale
a pena invocar ousadia[14].
7. Eu sabia, como todos na vila: o administrador Jonas tinha
desviado o gerador do hospital para seus mais privados serviços. Dona
Ermelinda, sua esposa, tinha vazado os equipamentos públicos das enfermarias:
geleiras, fogão, camas. Até saíra num jornal da capital que aquilo era abuso de
poder. Jonas ria-se: ele não abusava; os outros é que não detinham poderes
nenhuns.
8. Com razão e motivo: uma delegação oficial devia estar
prestes a chegar. Vinha investigar o caso do sexo decepado. Haviam de vir os do
governo de dentro, mais os do governo de fora. Até das Nações Unidas viriam.
Vinham investigar o caso do sexo decepado. E os outros casos
que envolviam os capacetes azuis desaparecidos. Nunca a vila de Tizangara tinha
recebido tais altas individualidades. A voz do administrador Estêvão Jonas
tremia quando apontou para
mim e disse:
- Pois você fica, de imediato, nomeado tradutor
oficial.
- Tradutor? Mas para que língua?
- Isso não interessa nada. Qualquer governo prezável
tem seus tradutores. Você é o meu tradutor particular. Está compreender?
Não entendia, mas aprendera que, em Tizangara, nada
necessita de entendimento[15].
9. A administratriz de novo se interpôs, deixando invisível
o esposo[16]. Falava
ajeitando o turbante e sacudindo as longas túnicas. Ermelinda clamava que eram
vestes típicas de África. Mas nós éramos africanos, de carne e alma, e jamais
havíamos visto
tais indumentárias[17].
No momento, ela reiterava:
- O que eu quero, em tanto que Ermelinda, é que eles
fiquem a saber que nós, em Tizangara, temos tradução simultânea.
2 - A MISSÃO DE INQUÉRITO
“O
que não pode florir no momento certo acaba explodindo[1]
depois”.
Outro
dito de Tizangara
1.
A vila se formigava em roda vivente. Constava que, da capital, não tardaria a chegar
a importantíssima delegação com soldados nacionais e os das Nações Unidas.
2.
De entre a multidão figurava um bem visível cartaz com enormíssimas letras: “Boas vindas aos camaradas soviéticos! Viva o
internacionalismo proletário!”. O administrador
deu ordem instantânea de se mandar retirar o dístico. E que ninguém entoasse
vivas a ninguém. O povo andava bastante confuso com o tempo e a atualidade[2].
3. A
ordem para evacuar dali o caprino veio tarde de mais: as sirenes já invadiam a praça.
Num segundo, as velozes viaturas encheram a praça de poeira e ruído. De súbito,
a travagem aflita. E escutou-se um baque surdo, o fragor de um carro embatendo
num corpo. Era o cabrito. O bicho voou que nem uma garça felpuda e se estatelou
num passeio próximo. Não morreu instantâneo. Antes, ficou por ali, manchado e desmanchado,
amplificando seus berros pelo mundo... O homem pegou no
desirmanado
corpo e entregou-o ao administrador.
- Excelência, isto é seu.
Estêvão
Jonas, em fúria, atirou o chifre para o chão. Puxou-me pelo braço, num esticão,
e segredou a ordem árida:
- Vá ali e mate-me de vez esse filho da puta desse
cabrito[3].
4. O povo se conglomerava, espantado de
presenciar tal desfile de eminências. Tudo aquilo chamado por um sexo
masculino, ainda para mais jazendo em paz? ... Uns se admiravam de me ver ali,
entre os notáveis. Passara eu a partilhar da panela dos graúdos, a beneficiar
do fogão deles? Outros me acenavam com improvisado respeito, não fosse eu um
mandador de chuva.
5. Dona Ermelinda, ao lado de seu
esposo, lhe bichanava:
- Reparou nas sirenes? Não será que
lhes pode pedir para eles as deixarem
aqui?[4]
6. - Com o devido respeito,
Excelências: e se chamássemos Ana Deusqueira?!
- Mas, essa Ana, quem é? - inquiriu o
ministro.
Vozes se cruzaram: como se podia não
conhecer a Deusqueira? Ora, ela era a prostituta da vila, a mais competente
conhecedora dos machos locais.
- Prostitutas? Vocês já têm cá disso?
E o administrador, empoleirado na vaidade,
murmurou:
- É a descentralização, senhor
ministro, é a promoção da iniciativa local! – e repetia, enfunado: - A nossa
Ana! .... essa Ana era uma mulher às mil imperfeições, artista de invariedades,
mulher bastante descapotável.
Quem, senão ela, podia dar um parecer
abalizado sobre a identidade do órgão? Ou não era ela perita em medicina
ilegal?
- Está compreender, Excelência? Chamamos
a Ana Deusqueira para ela identificar o todo pela parte[5].
7. Já o mensageiro partia, fulminante,
quando estacou e arrepiou caminho. E perguntou ao administrador, em voz
pública:
- Desculpe, Excelência, mas onde poderei encontrar a
cuja convocada?
Estêvao Jonas pigarreou, atrapalhaço. Ora, ele, por que raio
ele tinha que saber do paradeiro dessa uma criatura? E chamando o adjunto mais
perto lhe bichanou:
- Seu burro! Vá aquele sítio que você já sabe.
8. Já Ana Deusqueira se anunciava, com menos sirene que a delegação,
mas com maiores espampanâncias. A mulher exibia demasiado corpo em insuficientes
vestes. Os tacões altos se afundavam na areia como os olhos se espetavam nas
suas curvaturas. O povo, em volta, olhava como se ela fosse irreal. Até recentemente
não existira uma prostituta na vila. Nem palavra havia na língua local para nomear
tal criatura.
Afinal, não fora convocada para os usuais préstimos. Ana
recebeu a surpresa, sempre em pose. Depois, amoleceu os charmes e agravou a
voz. Ao fim ao cabo, vinha envergada a despropósito.
- Txarra! Estava pensar era uma chamada de serviço. E
com taxa de urgência.
9. - Como está a nossa Primeira
Senhora?
Dona Ermelinda tinha os olhos que cuspiam. Seu esposo a
afastou, precavendo desmandos.
- Volte para casa, mulher.
- É melhor ela ficar - corrigiu a prostituta -,
e irmos juntas lá ver os restos do acidente. Quem sabe ela pode ajudar a
identificar a coisa?
O confronto ficou-se por ali[6].
Porque os estrangeiros fardados rodearam a prostituta, fungando da intensidade
dos seus aromas. A delegação se interessava: seria zelo, simples curiosidade? E
pediram-lhe documentos comprovativos da sua rodagem: curriculum vitae,
participação em projetos de desenvolvimento sustentável, trabalho em ligação
com a comunidade.
- Duvidam? sou puta legítima. Não uma desmeretriz,
dessas. Até já dormi com...
- Adiante, adiante -
apressou o ministro, que logo iniciou uma dissertação sobre vagos assuntos como
as previsões da chuva, o estado miserável das estradas e outras nenhumarias.
Ana Deusqueira a tudo respondia, em verbo e gesto, olhos
postos no italiano[7].
10. Depois, a prostituta deu costas à delegação e aproximou-se
do polêmico achado, no chão da estrada. Mirou o órgão desfigurado, tombado como
um verme flácido.
Joelhou-se
e, com um pauzinho, revirou o hífen carnal. Em volta de Ana Deusqueira se formou
um círculo, olhos de ansiosa expectativa. Impôs-se silêncio. Até que o chefe da
polícia local inquiriu:
... - Essa coisa, como o senhor polícia chama, essa
coisa não pertence a nenhum
dos homens daqui. - Está certa? - Com a máxima e
absoluta certeza.
Cumprida
a examinação, Ana Deusqueira sacudiu as mãos e abanicou a cabeleira desfrisada
como se fosse uma rainha. O ministro chamou à parte o delegado das Nações
Unidas. Conferenciaram-se:
- Desculpe lhe dizer, mas eu acho que é mais um
desses casos...
- Quais casos? -
perguntou o estrangeiro.
- Desses das explosões.
- Não me diga uma coisa dessas!
- Digo-lhe que é mais um explodido.
- Não me venha com essa merda dos explodidos. Cinco!
Eu tenho que dar relatório aos meus chefes em Nova Iorque, não quero estórias
nem lendas.
- Mas o meu governo...
- O seu governo está a receber muito. Agora são vocês
a dar qualquer coisa em troca. E nós queremos uma explicação plausível!
....
- Mas os depoimentos são todos
unânimes: os soldados explodem!
- Explodem? Como é que explodem sem minas, sem
granadas, sem explosivos? Não me venha com conversa. Quero tudo gravado, aqui.
Entregou
um gravador e uma caixa de cassetes. Sobrou um silêncio grave.
11.
Confirmou, então, que Massimo Risi ficara na vila, juntamente com uma porção
dos chefes. Ana Deusqueira se aproximou dele e disse:
- Morreram milhares de moçambicanos, nunca vos vimos
cá. Agora,
desaparecem cinco estrangeiros e já é o fim do mundo?
O
italiano permaneceu mudo. Ana Deusqueira se encostou nele, dengosamente, e
prometeu que ajudaria a esclarecer o mistério.
3 - UMA MULHER ESCAMOSA
Saudade
de um tempo? Tenho saudade é de não haver tempo.
Dito de Tizangara
1. Os visitantes se arrumaram na vila: o ministro se
estabeleceu na casa do responsável local. Havia uma outra residência para o representante
das Nações Unidas. Mas o italiano preferiu ficar na pensão local. Queria manter
as independências, fora dos esquemas montados pelas autoridades locais. ... Massimo Risi recusou que eu lhe levasse as
bagagens e lá foi tropeçando pelos
buracos, com maltas de crianças lhe perseguindo e mendigando
doces.
2. Os
europeus, quando caminham, parecem pedir licença ao mundo. Pisam o chão com
delicadeza mas, estranhamente, produzem muito barulho[8].
3. Chegamos, enfim, à
pensão. Na fachada havia ainda vestígios dos tiros. Buraco de tiro é como
ferrugem: nunca envelhece. Aquelas ocavidades pareciam recém-recentes, até
faziam estremecer, tal a impressão que a guerra ainda estivesse viva. Em cima da
porta, sobrevivia a placa “Pensão Martelo Jonas”. Antes, o nome do
estabelecimento era Martelo Proletário. Mudam-se os tempos, desnudam-se as
vontades[9].
4. Massimo entrou a medo para uma sala escura. Mil olhos
esbugolhavam o branco entrando na pensão. Frente a um balcão coberto de jornais
antigos, o italiano perguntou:
- Pode-me informar quantas estrelas tem este
estabelecimento?
- Estrelas?
O recepcionista achou que o homem não entendia do bom
português e sorriu condescendente:
- Meu senhor: aqui, a esta hora, não temos nenhumas
estrelas[10].
O estrangeiro olhou para trás pedindo meu socorro. ...
O italiano olhou o teto com ar de pássaro à procura de
orifício na gaiola. ...
A convite do recepcionista lá fomos pelo obscuro corredor. O
homem ia explicando as insuficiências com o mesmo entusiasmo que outro
hoteleiro, em qualquer lugar do mundo, anunciaria os luxos e confortos do seu
hotel. E o italiano parecia se arrepender de alguma vez ter querido saber: só
havia eletricidade uma hora por dia.
- Também não há água nas torneiras.
- Não há água?
- Não se preocupa, meu caro senhor: manhã cedo,
havemos de trazer uma lata de água.
- E vem de onde, essa água?
- A água não vem de nenhum lugar: é um miúdo que
traz.
O homem debruçou-se sobre ela e foi tirando objetos
diversos:
- Esta revista é para matar as moscas. Esta sola
velha é para as baratas. Esta bengala...
- Deixe estar, eu resolvo.
4. De repente, o
italiano tropeçou num vulto. Era uma velha, talvez a mais idosa pessoa que ele
jamais vira. Ajudou-a a erguer-se, conduziu-a até à porta do quarto ao lado. ...
O italiano esfregou os olhos como se buscasse acertar visão. É que o pano
deixava entrever um corpo surpreendentemente liso, de moça polpuda e
convidativa. Era como se aquele rosto encarquilhado não pertencesse àquela
substância dela[11].
5. - O seu amigo branco que tenha cuidado com essa
velha.
- Porquê? -
perguntou Massimo.
- Ela é uma dessas que anda, mas não leva a sombra
com ela.
- Que é que ele está falando? voltou a inquirir o italiano.
- Você lhe explique, com devido tempo[12].
6. Ele me olhou, como
se fosse por primeira vez:
- Você quem é?
- Sou seu tradutor.
- Eu posso falar e entender. Problema não é a língua.
O que eu não entendo é este mundo daqui.
Um peso invisível lhe fez descair a cabeça. Parecia
derrotado, sem esperança.
- O senhor vai conseguir.
- Acha que vou saber quem fez explodir os soldados?
7. - Que se passa?
- O senhor não sabe o que significa a chegada de meu
velho.
4 - APRESENTAÇÃO DO FALADOR DA ESTÓRIA[13]
Deus
me deu tarefa de morrer.
Nunca
cumpri.
Agora,
porém, já aprendi a obediência.
Palavras de Dona Hortênsia
1. Há aqueles que nascem com defeito. Eu nasci por defeito.
Explico: no meu parto não me extraíram todo, por inteiro. Parte de mim ficou
lá, grudada nas entranhas de minha mãe. Tanto isso aconteceu que ela não me
alcançava ver: olhava e não me
enxergava. Essa parte de mim que estava nela me roubava de
sua visão. Ela não se conformava:
- Sou cega de si, mas hei-de encontrar modos de lhe
ver!
A vida é assim: peixe vivo, mas que só vive no correr da
água. Quem quer prender esse peixe tem que o matar[14].
Só assim o possui em mão. ...
2. Eu
lhe pedia explicação do nosso destino, ancorados em pobreza.
- Veja você, meu filho, já apanhou mania dos brancos!
... Você quer entender o mundo que é coisa que nunca se entende.
3. Enquanto falava, seus dedos datilogravavam meu rosto,
linha por linha. Minha mãe me lia por dedos tortos[17].
4. Depois de mim seu ventre se fechou. Eu não era apenas um
filho - era o castigo de ela não mais poder ser mãe. E aquele destino em outras
punições se multiplicou: meu pai, em lugar de lhe reservar mais carinho, passou
a lhe infligir penas, deitando-lhe as culpas pelos males do universo. E se
sentiu aliviado: se ela perdera fertilidade, ele tinha direito de não ter
deveres[18].
... E passou a dormir fora, gastando sua idade em leitos de outras. Minha mãe chorava
enquanto dormia na solidão do leito desconjugal[19].
Eu a tirava dali, daquelas águas, e a enxugava sempre com o
mesmo pano. Outra toalha não podia ser: aquele era o pano que havia recebido
seu único parto. Aquele pano me embrulhara em minha estreia de ser. Seria, quem
sabe, a sua última cobertura.
5. Apesar da noturna tristeza de minha mãe, eu vivia com o
sossego de peixe em água parada. Naquele tempo, não havia antigamentes[20].
Tudo para mim era recente, em via de nascer.
6. - A vida, meu filho, é uma desilusionista[21].
Em fins de tarde, os flamingos cruzavam o céu. Minha mãe
ficava calada, contemplando o voo. Enquanto não se extinguissem os longos
pássaros ela não pronunciava palavra. Nem eu me podia mexer. Tudo, nesse
momento, era sagrado. Já no desfalecer da luz minha mãe entoava, quase em
surdina, uma canção que ela tirara de seu invento. Para ela, os flamingos eram
eles que empurravam o sol para que o dia chegasse ao outro lado do mundo.
- Este canto é para eles voltarem, amanhã mais outra
vez![22]
7. Passou-se o tempo
e eu saí da terra nossa, encorajado pelo padre Muhando. Na cidade, eu tinha
acesso à carteirinha das aulas. a escola foi para mim como um barco: me dava acesso
a outros mundos. Contudo, aquele ensinamento não me totalizava. Ao contrário,
mais eu aprendia, mais eu sufocava[23].
Ainda me demorei por anos, ganhando saberes precisos e preciosos.
Na viagem de regresso não seria já eu que voltava. Seria um
quem não sei, sem minha infância. Culpa de nada. Só isto: sou árvore nascida em
margem. Mais lá, no adiante, sou canoa, a fugir pela corrente; mais próximo sou
madeira incapaz de escapar
do fogo[24].
8. - Afinal, você é parecido com
ele...
- Com meu pai?
Ela voltou a sorrir, fosse quase em suspiro, enquanto
repetia:
- Com ele.[25]..
Me apertou as mãos, em espasmo. ... A morte é uma brevíssima
varanda. Dali se espreita o tempo como a águia se debruça no
penhasco - em volta todo o espaço se pode converter em
esplêndida voação.
- Mãe? Quem é ele?
Ela falecera nesse instante em que iniciava a contemplação
de mim. Seria verdade que me chegara ver? Nem isso já contava para nenhuma
importância. O que era preciso era avisar meu pai desse desacontecimento[26].
9. Nossa gente não vive sem tratar os do lado de lá,
passados a poente fino. Habitamos assim: a vida a oriente, a morte a ocidente.
A morte, a morte mais sua inexplicável utilidade[27]!
Minha mãe partira na curva da chuva, saindo a habitar a estrela de nenhumas
pontas. A partir de então, a vida já não lhe comparecia: ela apanhara o
último desencontrão.... Ainda lembrei suas palavras amadurecendo
uma esperança para mim quando eu de tudo descria:
- Não vê os rios que nunca enchem o mar? A vida de
cada um também é assim: está sempre toda por viver.
10. E agora, por não-consequência, eu partia para encontrar
meu pai. Onde ele pairava? Se mantinha ali nos arredores do nosso distrito, incapaz
do longe, inapto para o perto?
Em toda sua vida, ele só andara pelos interiores. Era um
sabedor de matos, ignorante de oceano.
...Depois dos conflitos que tivera com a administração, meu
velho não guardava boa ideia do trabalho. Antes, ele acreditara no poder de o
trabalho criar futuro. Perdera essa crença[28].
Em ano recente, até decidiu envergar pijama para toda a vida. Apenas de noite,
quando o pijama devia cumprir seus congênitos serviços, ele se libertava do vestuário.
Despia-se para dormir.
... Mas não era
apenas o caso do pijama: o velho se aumentava de manias que contrariavam a
gente universal. Como, noutro exemplo: só no domingo ele calçava. Nos restantes
dias, os da semana, seus pés terreavam, satisfeitos por acariciarem o infinito
do chão... ele andava descalço para não gastar seu único par
de sapatos[29]. Trazia-os
pendurados pelas mãos, mas sem nunca os envergar enquanto marchasse. Calçava-os
apenas depois, quando já estava parado em pose de senhor.
11. - Está ver aquele caminhozito?...
Quando chegar o fim do mundo você toma este carreirinho. Está a ouvir?
Conselho que nunca quereria cumprir. Mas que não podia
depositar dúvida. Que ele sabia que era certo e certeiro o final da humanidade[30].
12. Meus saberes de
cidade serviam para quê? Aqueles caminhos tinham serviços que não eram os
mesmos das ruas urbanas: pareciam feitos apenas para passarem sonhos e poentes.
13. Finalmente o
descobri. Meu pai, o que lhe tinha sido feito? Estava magrito, esgazelado,
parecia que até a alma lhe era uma coisa externa. Desde minha última visita ele
se inquilinara num escuro, no oco de um velho farol. Tinha se tornado
faroleiro.
- Agora, meu filho, eu já não falo nenhuma língua,
falo só sotaques. Entende?
14. - Pai, a guerra já acabou.
- Você acredita nisso?
5 - A EXPLICAÇÃO DE TEMPORINA
Uns
sabem e não acreditam. Esses não chegam nunca a ver.
Outros
não sabem e acreditam. Esses não veem mais que um cego.
Provérbio de Tizangara
1. O italiano se havia reclinado como um ponteiro. Parecia
ter gostado do relato das minhas infâncias. Quando terminei ele se deixou em
silêncio. Por um tempo permaneceu assim, dissolvido naquela pausa. Só depois
falou:
- Esta sua estória... tudo isso é verdadeiro?
Era tempo de regressarmos à pensão[31].
2. O italiano, cansado, nem se sentiu adormecer. Nessa
noite, um estranho sonho tomou conta dele: a velha do corredor entrava no quarto,
se despia revelando as mais apetitosas carnes que ele jamais presenciara. No
sonho, o italiano fez amor com ela.
Massimo Risi nunca tinha experimentado tão gostosas
carícias. ... Se era pesadelo, ele muito se divertia[32].
Despertou suado e sujo, o peito ainda resfolegando. Olhou em volta e reparou que
alguém mexera nas suas roupas. Alguém estivera no quarto. Levantou-se e viu o balde
com água. Suspirou, aliviado. Tinha sido, certamente, o rapaz da pensão.
8. Massimo lavou-se com a ajuda de um copo. Barbeou-se com o
resto da água do banho.
Ficou olhando o balde como se reparasse, pela primeira vez,
o quanto pode valer um pouco de água[33].
9. Era a velha
Temporina.
- Estou grávida de você...Esta noite fiquei grávida
consigo.
Era o hospedeiro que entrou, cerimonioso. Depois de
sucessivos “dá licenças” ele se fez ao assunto:
- Senhor Massimo, eu ouvi tudo... Você se atente,
caro amigo. Essa mulher ela é uma enfeitiçada. Quem sabe agora você não explode
como os outros?
- Mas eu não fiz nada.
- Agora essa moça vai querer lhe acompanhar lá para sua
terra. Ela mais o vosso filho mulato.
Percebeu-se algum desprezo no modo como disse “mulato”.
10. O padre Muhando[34]
já falara contra esse preconceito. O pensamento do sacerdote ia direito no
assunto: mulatos, não somos todos nós? Mas o povo, em Tizangara, não se queria
reconhecer amulatado. Porque o ser negro - ter aquela raça - nos tinha sido
passado como nossa única e última riqueza[35].
11. E o
hospedeiro já se retirava quando notou qualquer coisa no chão. Se debruçou
a inspecionar e a sua voz se aflautou:
- Você matou-lhe!
O italiano se ergueu aflito. Outra morte? E o recepcionista,
juntando as mãos no rosto, gritava olhando o chão:
- Hortênsia!
Que se passava, agora? Olhou para mim pedindo socorro[36]
e eu aproximei-me do hospedeiro para esclarecimento. O homem apontava no chão
uma louva-a-deus morta. Também a mim me veio um arrepio. De repente, aquele
cadáver estava para além de um inseto. ...
Uma louva-a-deus não era um simples
inseto. Era um antepassado visitando os
viventes.
12. - Temporina, explique quem você
é. E você, italiano, escute bem.
- Tenho duas idades. Mas sou miúda. Nem vinte não
tenho... Tenho cara de velha porque recebi castigo dos espíritos...Castigaram-me
porque se passaram os tempos sem que nenhum homem provasse da minha carne.
Era verdade: ela não aceitara nenhum namoro enquanto moça.
Quando deu conta, tinha-se passado o prazo da sua adolescência. Mais que o
permitido. E assim desceu sobre ela a punição divina. Numa só noite seu rosto
se preencheu de ruga, se perfez nela todo o redesenhar do tempo. Contudo, no restante
corpo, ela guardava sua juventude.
13. Hortênsia era a última neta dos fundadores da vila.
- Venha! Vamos a casa de minha falecida tia.
Ajudei Temporina a convencer o estrangeiro. A casa de
Hortênsia era importante para a missão. Tinham usado o grande casarão para
alojar os soldados das Nações Unidas. Foi o administrador que decidiu contra
vontade de todos. A casa era um lugar de espíritos. Não importava o que os
soldados fizessem. Importava, sim, o que o lugar ia fazer aos inautorizados
visitantes.
14. À entrada, Temporina, gritou:
- Dá licença, Tia Hortênsia?
Silêncio. O italiano me pegou pelo ombro. Hortênsia não
estava falecida? Pedia-se autorização a um morto? Pedi que respeitasse o silêncio.
A um imperceptível sinal, Temporina recebeu resposta da antiga dona. Podíamos
entrar. ...Contei-lhe então quem fora a antiga dona. Hortênsia. Não era em vão
que tinha nome de flor. Não que fosse bonita. Todavia, ficava na varanda o dia
inteiro, fingindo olhar o tempo. .. Tia Hortênsia vivia com seus dois sobrinhos.
Temporina era a mais velha. O outro, era um rapaz de comprovadas inabilidades...
O moço não era um fulano, nem um indivíduo. Assim, nem nome nenhum lhe foi posto[37].
Valia a pena desperdiçar um nome humano num ser de que se duvidavam as propriedades?
Hortênsia nada fazia senão expor-se na varanda. Ali se encenava o dia inteiro.
- Mas, tia, por que se varandeia tanto, de manhã até
à noite?
- Só quero ser contemplável.
Falava tudo por enfeite.
Quando, enfim, a doença disputou seu corpo, Hortênsia chamou
os dois sobrinhos e comunicou a Temporina:
...
- Quer saber por que fiquei sempre na varanda?
- E porquê, Tia Hortênsia?
- Para ver se Deus me escolhia e me levava. Nunca me
levou. Eu sou muito negra, deve ser por causa disso que, mesmo eu ficando
frente à igreja, ele nunca me escolheu.
Hortênsia se obscureceu naquela noite. Morreu de mão dada
com a sobrinha. Dizem que foi essa contiguidade que fez passar a maldição da
solidão de Hortênsia para Temporina.
15. - Entende agora por que viemos
aqui? Para você ver que em Tizangara não há
dois mundos.
Ele que visse, por si, os vivos e os mortos partilharem da
mesma casa. Como Hortênsia e seu sobrinho. E pensasse nisso quando procurasse
os seus mortos.
- É porque aqui temos três vilas com seus respectivos
nomes - Tizangara-terra, Tizangara-céu, Tizangara-água. Eu conheço as três. E
só eu amo todas elas.
16. De longe, ainda vi como Temporina se sentava no colo do
italiano e como seus corpos se enleavam. De súbito, o rosto dela se colocou em
luz e eu me espantei: em flagrante de amor Temporina juvenescia. Toda ela era
sem ruga, sem cicatriz do tempo. E recuei meus olhos, recolhi meu enleio. O italiano
havia de descer e eu retomaria meus serviços. Agora, por certo, ele não carecia
de tradutor.
17. Temporina falava
para ele:
- Andei olhando você. Desculpa, Massimo, mas você não
sabe andar.
- Como não sei andar?
- Não sabe pisar. Não sabe andar neste chão. Venha
aqui: lhe vou ensinar a caminhar.
Ele riu, acreditando ser brincadeira. Porém, ela, grave,
advertiu:
- Falo sério: saber pisar neste chão é assunto de
vida ou morte[38].
Venha, que eu lhe ensino.
18. - É uma carta de Sua Excelência - depois, se aproximou mais para me segredar:
- Ele disse para você ler primeiro. É só traduzir
para o estrangeiro um resumo da
carta.
Não procedi segundo aquelas instruções. Esperei que o
mensageiro se afastasse e me sentei na sombra. Li alto para Massimo Risi o
inteiro conteúdo da carta[39].
6 - PRIMEIRO
ESCRITO DO ADMINISTRADOR
Não
sou mau lembrador.
Minha
única dificuldade é ter que escrever
por
escrito.
Confissão
do administrador.
1. Sua Excelência
O Chefe Provincial
Escrevo, Excelência, quase por via oral[40]. As
coisas que vou narrar, passadas aqui na localidade, são de mais admirosas que
nem cabem num relatório... Começou-se tudo na madrugada antepassada. Minha
esposa, Dona Ermelinda, veio à janela e perguntou que barulho era aquele. ... - Não ouve, Jonas? Parece um barco a apitar...Ermelinda afastou os pesados cortinados, herança
dos coloniais[41].
Desculpe, a franqueza não é fraqueza: o marxismo seja louvado, mas há muita coisa
escondida nestes silêncios africanos.
2. Tínhamos orientações superiores: não podíamos
mostrar a Nação a mendigar, o País com as costelas todas de fora. Na véspera de
cada visita, nós todos, administradores, recebíamos a urgência: era preciso esconder
os habitantes, varrer toda aquela pobreza. Porém, com os donativos da
comunidade internacional, as coisas tinham mudado. Agora, a situação era muito
contrária. Era preciso mostrar a população com a sua fome, com suas doenças
contaminosas. Lembro bem as suas palavras, Excelência: a nossa miséria está
render bem. Para viver num país de pedintes, é preciso arregaçar as feridas,
colocar à mostra os ossos salientes dos meninos[42].
3. Eu me
irrito com as bazófias dela. Se é tão esperta por que razão não é ela a administradora?
Ou administratriz? Sempre eu lhe faço lembrar meu heroísmo na luta armada. Em
pleno mato, sem nada para comer, tudo em sacrifício pela libertação do povo.
Certa vez, até comi Colgate.
- Pois devia ter comido mais pasta de dente! É que ainda tem
muito mau hálito.
Veja os modos dela responder, taco no taco[43].
4. Todavia, eu sofro de uma estranheza. É que quando
toco em mulher minhas mãos aquecem até ficarem como carvão aceso. Houve vezes
até que pegaram fogo e eu fui obrigado a parar o ato. Viu uma coisa destas?
Deve ser um feitiço que Ermelinda me
encomendou.
Quem sabe um dia, de tão quente, também eu expludo no meio da noite?
7 - UNS PÓS NA
BEBIDA (FALA DE DEUSQUEIRA)
-
Tenho saudades de minha casa, lá na Itália.
-
Também eu gostava de ter um lugarzinho meu, onde pudesse chegar e me
aconchegar.
-
Não tem, Ana?
-
Não tenho? Não temos, todas nós, as mulheres.
-
Como não?
-
Vocês, homens, vêm para casa. Nós somos a casa.
Extrato
de um diálogo entre o italiano e Deusqueira
1. - Já falei com Ana Deusqueira.
Gravei tudo, conforme se combinou.
Olhei em volta e me admirei: o ministro estava só. Nem
administrador nem Chupanga figuravam na sala. Sentamos enquanto o governante
pressionou o botão do gravador e a voz da prostituta se espalhou pelo quarto. O
italiano não escondeu um
arrepio. A voz de Deusqueira era carnal, incendiadora como
bebida de afugentar razão.
2. Começo assim, explico esse meu
serviço. Para dizer uma coisa, o seguinte: o
senhor, num próximo tempo, vai
deixar de ser ministro. Transitará para ex-ministro. Mas eu não transitarei nunca.
Uma puta nunca é “ex”. Há ex-enfermeira, há exministro... só não existe ex-prostituta. a
putice é condenação eterna, uma mancha que
não se lava nunca mais.
3. Deixe-me explicar, não me interrompa. O senhor é
ministro, eu sou uma simples mulher de virar lençol.
Espalham aí que dou donativo de corpo, faço de graça
com os que não podem pagar. ... Vale a pena responder a essas mentiras? É
inútil como limpar a ferrugem do prego. Eu é que sei a minha vida. Quem conhece
a sujidade do muro é o caracol que trepa na parede[44]....Este
mundo tem mais dentes que bocas. É mais fácil morder que beijar, acredite, doutor[45].
4. Senta aqui, Excelência. Senta que é colchão limpo,
lençol lavadinho. Isso, isso mesmo. Onde estava nem lhe via como deve ser. O
senhor tem olhos de jejum. Me desculpe, o que eu mais vejo é pelos olhos. Vida
miudinha, grandezas e infinitos: tudo
está escrito no olhar. Quer apoiar nesta almofada?
Não quer?[46]
Está certo, o senhor fica na comodidade do seu desejo.
5. Pronto. Agora, vou ao assunto. Quer saber toda a
verdade do acontecido? Os soldados estrangeiros explodem, sim senhor. Não é que
pisam em mina, não. Somos nós, mulheres, os engenhos explosivos. Não faça essa
cara. Nós temos poderes, o senhor sabe. Ou já esqueceu as forças da terra? Pergunta
por aí, todos sabem. O povo não fala, mas estão sempre nascendo falagens. O
capim, não parece, mas dá flor[47].
6. - Está ver como são as pessoas daqui? Falam muito
para dizerem pouco[48].
Essa gaja
ainda não disse nada.
7. O soldado zambiano chegou, exibindo a farda.
Entrou no bar, arrotando presença. Batia os calcanhares, mandando vir as bebidas.
Não gostamos, sabe, esses ares de dono. Só fingimos simpatias, mais nada. Nessa
bebida, eu vi, alguém juntou uns pós tratados, feitiços desses, nossos. Não sei
quem, nem sei o quê. Obra dos homens, ciumeiras deles que não querem ver
mexidas as mulheres da terra[49].
8. E eu,
Excelência, eu até me sinto orgulhada nesses ciúmes deles. É que nunca eu fui
de ninguém. Nunca. Haver homens que me disputam me faz sentir pertencida, faz
conta que sou mulher de um só, exclusivo. Porém, foi assim. Isto que lhe conto
não tem ouvido nem boca[50]. Eu
vi os pós, caindo como areia na cerveja do desgraçado. Vi tudo por inteiro.
Quando esse zambiano me pegou na mão eu já sabia o destino dele. Lhe acompanhei
sem pena...
9. Uma
enorme explosão deflagrou: o mundo parecia
desconjuntar-se. Janelas esvoaçaram
inteiras e o italiano foi projetado de encontro à parede. Também
eu fui arremassado no meio do chão... Na pensão nos informaram: não longe dali,
tinha ocorrido mais um desses estranhos rebentamentos. A escassa distância um outro
soldado das Nações Unidas havia desaparecido, desfeito em mistério.
- Desta vez, dizem, foi um paquistanês.
...a nova vítima era um paquistanês, responsável pela guarda
da residência oficial do administrador Estêvão Jonas. Desta feita, a explosão
dera-se em plenas entranhas do Poder.
Chegado ao quarto, na solidão de tudo, comecei a ler as
datilografias de Estêvão Jonas. O que me deu estranheza foi o tom de carta, de
feitio humano. Li foi nas extralinhas.
[1] Vocês sabem que eu sou fã de Milton Santos e, portanto
não escondo como gosto do conceito dele de explosões. Aqui é manifestação do povo. No tempo presente em
reações como a que vemos no Oriente Médio.
[2] O autor deixa claro o problema de identidade política
que seu país Moçambique, atravessava
[3] É mais uma das histórias hilárias do livro para
mostrar de modo cômico a chegada da comitiva das Nações Unidas e os desmandos de Jonas Estevão. Coitado do
cabrito. Veja o desenvolvimento do local, cabrito no meio da rua....
[4] Sinha Vitória queria uma cama de varas, D. Ermelinda
sirenes.
[5] Eles tinham um problema. Como identificar um morto sem
um corpo. É aí que Ana entra. Supostamente ela conhecia todos os pênis da cidade.
[6] D. Ermelinda em outros momentos da história fica do
lado de Ana numa sugestão de se conhecerem de antes. E se conhecem.
[7] Ela foi quem encomendou o feitiço que protegia o
italiano de explodir se se deitasse com uma das mulheres da terra.
[8] É interessante ficar atento a esse jeito de caminhar.
Seria uma interessante questão de prova. Veja que quando Temporina ensina
Massimo a andar de outro jeito mais delicadamente, sobrevivendo ao chão
africano, salva sua vida porque ele pisa num terreno cheio de minas.
[9] Perceba a forma
sutil de referência ao tempo que Moçambique vivia.
[10] Acho essa cena bem interessante. Note logo o choque
cultural de Massimo vai sofrer.
[11] A primeira vez eu ele vê Temporina com quem se
envolverá mais tarde na narrativa. Ele tem um rosto assim por causa de uma
maldição de família e se livrará dela com a ajuda de Massimo.
[12] Uma prova que não era a língua, mas certa questões de
Tizangara que Massimo precisa entender e, esse era o papel do tradutor.
[13] Esse capítulo é a apresentação de sua história do
tradutor.
[14] Como já sinalizamos antes o autor faz uso de frases,
imagens para explicar certas coisas. Aqui ele quis dizer que a vida não pode
ser presa. Quem tenta mata-a.
[15] Ela não dizia nada, mas não deixava de ser conselho
viu gente.
[16] Percebe que é facilmente compreensível se vc observar
a imagem anterior.
[17] Veja que imagem fantástica!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
[18] Veja como eram culturalmente os valores da família e o
valor dado ao papel da mulher de procriadora.
[19] Percebe a imagem?
[20] Porque ele era muito jovem e não tinha passado.
[21] Observe os valores sobre a vida da mãe. Não se pode
prender. Ele desilude as pessoas....
[22] Lembre-se que essa imagem é importante porque se liga
ao título do livro e ao final da história. No fim ele canta essa canção de sua mãe.
[23] Perceba que a concepção do saber escolar não é
diferente da concepção que Fabiano do Vidas Secas tem.
[24] Ele afirma que sofreu, com o tempo, mudanças.
[25] Como já foi dito no início do capítulo. A mãe não
podia vê-lo só conseguiu aqui. No leito de morte.
[26] Viu como ele brinca com a linguagem, como faz
Guimarães Rosa?
[27] Veja como ele aqui define o jeito de ser ( ethos) do
seu povo. Que dá um extremo valor à vida além e mias: esse além convive entre
eles.
[28] Também Fabiano de Vidas Secas não acreditava no trabalho.
[29] Fabiano também vivia quase todo o tempo descalço.
Inclusive a imagem dos pés de Fabiano rachados como a terra e seus olhos da cor
do céu e seu cabelo vermelho como sua habitação é uma interessante questão.
[30] O pai tinha razão afinal o mundo se acaba mesmo no fim
da narrativa.
[31] Perceba que o capítulo anterior que o tradutor contou
fugindo do curso da história oficial aparece
aqui como se ele estivesse contando para Massimo.
[32] Não era pesadelo. Ele se deitou mesmo com Temporina.
[33] Veja o valor da água tanto em Tizangara quanto em
Vidas Secas.
[34] É só citado. Essa personagem será apresentada depois.
[35] Esse orgulho também aparece em Cadernos Negros.
[36] Ele precisa desse tipo de tradução.
[37] Perceba os valores culturais do lugar. E, antes que me
pergunte. Não se compara aos filhos da Fabiano. O motivo para os meninos serem
chamados de mais novo e mais velho é que para eles serão os próximos Fabianos.
Aqui o conceito não é o mesmo.
[38] Porque não saber pisar poderia fazê-lo morrer em uma
mina.
[39] Veja que ele não segue as ordens de Jonas Estevão.
[40] Escrevo quase como falo.
[41] Ela sempre quer copiar as formas culturais dos
brancos.
[42] Numa reflexão sobre um assunto que já tratamos ( A
fome) esse trecho é bem interessante uma vez que ele revela que dar comida como
faz a ONU e a maioria dos países capitalistas para resolver a questão da
miséria na África não é a melhor opção.
[43] Já tínhamos em outros momentos do livro sinalizado a forma de agir
de Ermelinda.
[44] Perceba que como quase todas as vozes do texto ela
fala também por imagem. Falando em vozes perceba que a voz do texto não é
apenas do narrador/ tradutor. O artificio de ouvir uma gravação dá, nesse
momento, a voz a Ana Desqueira.
[45] Visão negativa da vivência. Isso lembra um poema de
Augusto dos Anjos: “ Escarra nessa boca que te beija”
[46] Perceba que não temos a voz do ministro respondendo as
questões. O que entendemos é por inferência/ suposição.
[47] Adorei essa frase!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
[48] Excelente definição
[49] Justificativa de Ana para a explosão dos soldados.
Lembre-se eu ela é a primeira a ser
ouvida. E que a explosão dos da terra não é por essa razão, mas por minas.
[50] Ninguém contou. Ela viu
[1] Se uma das três estiver na prova vc vai me dar o que
de presente?
[2] Observe já a linguagem. “Português visível”
[3] Anuncia o motivo da escrita. Livrar sua memória.
[4] Veja a referência histórica do livro
[5] Não é diferente do Iraque ou qualquer país em que o
processo de paz é construído pelos estrangeiros.
[6] A história gira em torno dessas explosões. A ONU envia
uma comitiva para Tizangara e depois deixa um representante para fazer um
relatório. Massimo – O italiano. A maior parte do romance gira em torno do
depoimento das personagens contando suas versões: feitiço é o que imagina ter sido segundo Ana Deusqueira. Feito
por encomenda para quando os soldados transassem com as mulheres do lugar pelos
homens da terra. A questão é que não só os soldados explodiam, mas as outras
explosões – reais e denuncia do livro do problema das minas da pós guerra que
matava os habitantes locais, delas o mundo não se importava. Novidade? Nenhuma.
Não se esqueça de que enquanto o massacre em Ruanda acontecia nós assistíamos
por três dias o luto a Ayrton Senna.
[7] Veja como o autor é bem original em sua linguagem. Ao
longo do livro vamos colocar algumas considerações sobre esse termos considerando
que a UFBA sempre faz algumas questões tendo em face a substituição de termos
por termos correlatos.
Os habitantes correram
rápido para lá para ver o achado. Nesse caso o tal Pênis.
[8] Muitos olhavam o Pênis, mas até então ninguém ia lá
para apanhá-lo. Também pudera né Mia Couto?
[9] Lugar pequeno. Quase nada acontece. Esse nem precisava
explicar....
[10] Termo para dizer que a coisa ia ficar feia porque a
essa altura dos acontecimentos se descobriu a boina e que se tratava de um soldado da ONU.
[11] O narrador admite ser movido por forças sentimentais.
[12] O livro interior é recheado desses ditos. Fique atento
a eles.
[13] Ele vai ser contrato pelo governo para ser Tradutor.
[14] Já dá indícios do modo de governar de Jonas Estevão.
[15] Esse elemento é importante uma vez que a tradução que
de fato foi feita não foi linguística,
mas cultural. Ele mostrou ao italiano, e por extensão a todos nós esse país e
seu jeito.
[16] Importante ressaltar o poder dessa figura feminina e
sua força dentro da própria administração de Tizangara.
[17] Crítica a cultura plástica. Não muito diferente de nós
que quando recebemos Obama dançamos capoeira. Pelo amor de Deus, nada contra a
acapoeira, mas é isso que vivemos fazendo. Andamos de tapa sexo sambando e em
rodas de capoeira?
Um comentário:
Professora....
Que bom que a senhora realizou essa postagem, estava ancioso por ela.
Bom queria pedir para que vossa, pudesse visitar "nosso site", pois estamos desenvolvendo uma ótima atividade sobre "Ultimo voo do Flamingo".
deixarei o link:
http://ultimovoodoflamingo.webnode.com/
http://cadernosnegros.webnode.com.br/
Obs: Somos alunos do segundo ano (CPM), e estamos nos preparando para o vestibular 2012, ficaria muito agradecido se pudesse realizar esta visita e comentar em nosso site, nos ajudaria muito.
Grato
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