terça-feira, 12 de março de 2019

Ética do Melhoramento - Michael Sandel - Fichamento de texto



                                                                          
Quando a ciência avança mais depressa do que a compreensão moral, como é o caso de hoje, homens e mulheres lutam nas sociedades liberais para alcançar uma condição ética. Para isso, buscam primeiro a linguagem baseada nos conceitos de autonomia, justiça e direitos humanos. Essa parte de nosso vocabulário moral, no entanto, não nos equipou para abordar temas mais difíceis colocados pelas práticas de clonagem, crianças projetadas e engenharia genética. É por isso que a revolução genômica induziu a uma espécie de vertigem moral. Para compreender a ética do melhoramento, precisamos enfrentar questões que há muito se ausentaram do campo de visão do mundo moderno — relativas ao estatuto moral da natureza e à atitude adequada dos seres humanos em relação ao mundo “dado”. Uma vez que elas tocam na teologia, os filósofos e teóricos políticos modernos tendem a evitá-las. Entretanto os novos poderes da nossa biotecnologia as tornam inevitáveis.
Com base na leitura dos recortes abaixo feitos do Livro Ética do Melhoramento escreva um artigo de opinião em que seu ponto de vista sobre a questão seja genuinamente esclarecido.

A ética do melhoramento

Alguns anos atrás, um casal de lésbicas decidiu ter um filho, de preferência surdo. As duas parceiras eram surdas, e com orgulho. Tal como outros membros da comunidade do orgulho dos surdos, Sharon Duchesneau e Candy McCullough consideravam a surdez um traço de identidade cultural, e não uma deficiência a ser curada. “Ser surdo é um modo de vida”, declarou Duchesneau. “Nós nos sentimos pessoas inteiras na qualidade de surdas e queremos compartilhar os aspectos maravilhosos da nossa comunidade — o sentimento de pertencimento e de ligação — com as crianças. Sentimos verdadeiramente que, como surdas, levamos uma vida plena.”
Na esperança de conceber um filho surdo, elas procuraram um doador de esperma cuja família tivesse um histórico de cinco gerações de surdez. E conseguiram. Seu filho Gauvin nasceu surdo.
As novas mães ficaram surpresas quando sua história, que apareceu nas páginas do Washington Post, desencadeou amplas críticas. A maior parte do ultraje alheio se centrava na acusação de que elas haviam deliberadamente infligido uma deficiência a seu filho. Duchesneau e McCullough negaram que a surdez fosse uma deficiência e argumentaram que desejavam apenas ter um filho igual a elas. “Não fizemos nada diferente do que muitos casais heterossexuais fazem quando têm filhos, é o que achamos”, afirmou Duchesneau.
Será errado ter um filho surdo de propósito? Se sim, o que torna isso errado — a surdez ou o propósito? Suponhamos, a título de argumentação, que a surdez não seja uma deficiência, e sim um traço distinto de identidade. Ainda assim, haveria algo de errado na ideia de os pais escolherem o tipo de filho que desejam ter? Ou será que isso já é o que os pais fazem o tempo inteiro, ao escolherem seu parceiro e, nos dias de hoje, ao se valerem das modernas técnicas de reprodução humana?
Não muito tempo após a controvérsia acerca da criança surda, um anúncio foi publicado no Harvard Crimson e em outros jornais universitários da Ivy League.  
Um casal infértil estava à procura de uma doadora de óvulos — mas não de qualquer doadora. Ela precisava ter 1,80 metro de altura, ser atlética, não ter maiores problemas médicos no histórico familiar e ter tirado 1.400 pontos ou mais nas provas do SAT. Em troca do óvulo de tal doadora, o anúncio oferecia US$ 50 mil.
Talvez os pais que tenham oferecido essa soma vultosa por tal  óvulo de qualidade superior simplesmente desejassem ter um filho semelhante a eles. Ou talvez estivessem apenas tentando se sair bem na barganha, buscando ter um filho mais alto ou mais inteligente do que eles. Seja qual for o caso, a oferta extraordinária não incitou o protesto público que fora desencadeado pelas mães que desejavam ter um filho surdo. Ninguém argumentou que altura, inteligência e porte atlético fossem deficiências das quais se deveriam poupar as crianças. E, contudo, algo nesse anúncio traz um mal-estar moral persistente. Ainda que nenhum prejuízo esteja envolvido, não existe algo de inquietante no fato de encomendar uma criança com traços genéticos específicos?
Há quem defenda que a tentativa de conceber uma criança surda, ou uma criança que se sairá bem nos estudos, é semelhante à procriação natural em um aspecto crucial: não importa o que os pais façam para aumentar suas chances de obter o resultado desejado, ele não é garantido. As duas tentativas estão sujeitas aos caprichos da loteria genética. Essa defesa levanta uma questão intrigante. Por que a existência de um elemento de imprevisibilidade parece fazer uma diferença moral? E se a biotecnologia pudesse remover o aspecto da incerteza e nos permitisse projetar os traços genéticos que desejamos em nossos filhos?
Enquanto ponderamos sobre a questão, deixemos de lado as crianças por um momento para pensar nos animais de estimação. Cerca de um ano depois do furor em torno da criança deliberadamente surda, uma texana chamada Julie (ela se negou  a fornecer o sobrenome) lamentava a morte de seu amado gatinho Nicky. “Ele era tão lindo”, disse Julie. “Era excepcionalmente inteligente. Conhecia 11 comandos.” Então  leu a respeito de uma empresa da Califórnia que oferecia um serviço de clonagem de gatos, a Genetic Savings & Clone. Em 2001 a empresa fora bem-sucedida na criação do primeiro gato clonado (chamado CC, sigla de Carbon Copy — em inglês, Cópia de Carbono). Julie enviou-lhes uma amostra genética de Nicky e a taxa solicitada de US$ 50 mil. Alguns meses depois, para sua grande alegria, ela recebeu Little Nicky, um gato geneticamente idêntico. “Ele é idêntico”, declarou Julie. “Ainda não fui capaz de notar a diferença.”4
De lá para cá, o site da empresa anunciou uma redução nos custos de clonagem   de gatos, que agora pode ser feita por meros US$ 32 mil. Se o preço ainda assim parece salgado, vem com uma garantia de reembolso: “Caso você ache que seu gatinho não se parece o bastante com o doador genético, nós devolveremos seu dinheiro integralmente, sem fazer perguntas.” Enquanto isso, os cientistas da empresa continuam tentando desenvolver uma nova linha de produtos: cães clonados. Uma vez que cães são mais difíceis de clonar do que gatos, a empresa planeja cobrar US$ 100 mil ou mais pelo serviço.
Muitas pessoas consideram que existe algo esquisito na clonagem de cães e gatos. Alguns reclamam que, com milhares de vira-latas precisando de lares, é inescrupuloso gastar uma pequena fortuna para criar um animal de estimação personalizado. Outros se preocupam com o número de animais perdidos durante as tentativas de criar um clone bem-sucedido. Mas suponhamos que esses problemas pudessem ser resolvidos.  Será que a clonagem de cães e gatos ainda assim nos faria relutar? E que dizer da clonagem de seres humanos?

ARTICULAÇÃO DO NOSSO MAL-ESTAR
As descobertas da genética nos apresentam a um só tempo uma promessa e um dilema. A promessa é que em breve seremos capazes de tratar e prevenir uma série de doenças debilitantes. O dilema é que nosso recém-descoberto conhecimento genético também pode permitir a manipulação de nossa própria natureza — para melhorar nossos músculos, nossa memória e nosso humor; para escolher o sexo, a altura e outras características genéticas de nossos filhos; para melhorar nossas capacidades física e cognitiva; para nos tornar “melhores do que a encomenda”.
 A maioria das pessoas considera inquietantes ao menos algumas das formas de manipulação genética. Entretanto, não é fácil articular nosso mal-estar. Os termos  familiares  dos  discursos moral e político tornam difícil afirmar o que há de errado na reengenharia da nossa natureza.
Consideremos uma vez mais a questão da clonagem. O nascimento de Dolly, a ovelha clonada, em 1997, trouxe consigo uma torrente de preocupações acerca da perspectiva de clonar seres humanos. Existem bons motivos médicos para se preocupar. A maioria dos cientistas concorda que a clonagem é um procedimento arriscado, com grandes  chances  de  produzir  crias  com  anormalidades  e  defeitos  congênitos sérios. (Dolly morreu prematuramente.) Mas suponhamos que a tecnologia de clonagem melhore a ponto de os riscos não serem maiores do que os de uma gravidez comum. A clonagem humana ainda assim seria algo censurável? O que há exatamente de errado em gerar um filho que seja um gêmeo idêntico do pai ou da mãe, de um irmão mais velho que morreu tragicamente ou, até mesmo, de um cientista, um atleta ou uma celebridade admirados?
Alguns afirmam que a clonagem é errada porque viola o direito da criança à autonomia. Ao escolher de antemão as características genéticas do filho, os pais o confinariam a uma vida à sombra de alguém que já existiu e, assim, privariam a criança do direito a um futuro aberto. A objeção da autonomia vale não só contra a clonagem, mas também contra qualquer forma de bioengenharia que permita a escolha de características genéticas. De acordo com essa objeção, o problema da engenharia genética é que as “crianças projetadas” não são inteiramente livres; até mesmo os melhoramentos genéticos desejáveis (digamos, talento musical ou aptidão para os esportes) conduziriam  a criança a essa ou àquela escolha de vida, ferindo sua autonomia e violando seu direito à escolha própria de um projeto de vida.
À primeira vista, o argumento da autonomia parece captar o que existe de inquietante na clonagem humana e em outras formas de manipulação genética. Contudo, ele não é persuasivo, por duas razões. Primeiro porque implica erroneamente que, na ausência de um progenitor projetista, as crianças sejam livres para escolher suas características físicas. Ninguém, entretanto, escolhe a própria herança genética. A alternativa a uma criança clonada ou geneticamente melhorada não é uma criança cujo futuro está isento de restrições e do escopo de talentos específicos, mas sim uma criança que está à mercê da loteria genética.
Em segundo lugar, ainda que a preocupação com a autonomia explique parte de nossas preocupações em relação a crianças feitas sob encomenda, ela não explica a inquietação moral em relação a pessoas que buscam melhoramentos genéticos para si próprias. Nem todas as intervenções genéticas são transmitidas gerações afora. A terapia genética em células não reprodutivas (ou somáticas), tais como as fibras musculares ou os neurônios, age no sentido de reparar ou substituir genes defeituosos. O dilema moral surge quando as pessoas utilizam tais terapias não para curar uma doença, e sim para ir além da saúde, para melhorar suas capacidades físicas ou cognitivas, para erguer-se acima da norma geral.
Esse dilema moral  nada  tem  a ver  com ferir  a autonomia.  Apenas  as intervenções genéticas no nível da linha germinal, que se concentram em óvulos, espermatozoides ou embriões, afetam as gerações subsequentes. Um atleta que modifica geneticamente seus músculos não transmite a sua prole o aumento de velocidade e força conquistado; ele não pode ser acusado de impingir aos filhos talentos que possam direcioná-los  a  uma carreira nos esportes. Ainda assim, existe algo de inquietante na perspectiva da existência de atletas geneticamente modificados.
Tal como a cirurgia plástica, o melhoramento genético emprega meios da medicina para fins não medicinais — fins que não estão relacionados à cura ou à prevenção de doenças, ao tratamento de ferimentos ou à recuperação da saúde. No entanto, ao contrário da cirurgia plástica, o melhoramento genético não é puramente cosmético. Vai além do nível superficial. Até mesmo os melhoramentos somáticos, que não atingiriam nossos filhos e netos, suscitam questões morais difíceis. Se nos sentimos ambivalentes   em relação à cirurgia plástica e às injeções de Botox para corrigir pescoços flácidos e rugas na testa, nossa perturbação é ainda maior diante do uso da manipulação genética para obter corpos mais fortes, memórias mais aguçadas, maior inteligência e melhor humor. A questão é se temos ou não razão em nos sentir perturbados — e, em caso afirmativo, em que termos?
Quando a ciência avança mais depressa do que a compreensão moral, como é o caso de hoje, homens e mulheres lutam para articular seu mal-estar. Nas sociedades liberais, buscam primeiro a linguagem baseada nos conceitos de autonomia, justiça e direitos humanos. Essa parte de nosso vocabulário moral, no entanto, não nos equipou para abordar temas mais difíceis colocados pelas práticas de clonagem, crianças projetadas e engenharia genética. É por isso que a revolução genômica induziu a uma espécie de vertigem moral. Para compreender a ética do melhoramento, precisamos enfrentar questões que há muito se ausentaram do campo de visão do mundo moderno — relativas ao estatuto moral da natureza e à atitude adequada dos seres humanos em relação ao mundo “dado”. Uma vez que elas tocam na teologia, os filósofos e teóricos políticos modernos tendem a evitá-las. Entretanto os novos poderes da nossa biotecnologia as tornam inevitáveis. Engenharia genética
Para entender como isso se dá, consideremos quatro exemplos da bioengenharia que já estão delineados no horizonte: melhoramento muscular, da memória e da altura e seleção de sexo. Em cada um desses casos, o que começou como a tentativa de tratar uma doença ou prevenir um distúrbio genético hoje acena como um instrumento de melhoria e uma escolha de consumo.

Músculos

Todos deveriam receber de braços abertos uma terapia genética capaz de aliviar a distrofia muscular e conter a perda muscular debilitante que surgem com a idade. Mas e se essa mesma terapia fosse utilizada para produzir atletas geneticamente alterados? Pesquisadores desenvolveram um gene sintético que, quando injetado nas fibras musculares de ratos, provoca o crescimento muscular e evita que os músculos se deteriorem com a idade. O êxito traz bons prognósticos para o uso do gene em seres humanos. O dr. H. Lee Sweeney, responsável pela pesquisa, espera que sua descoberta seja capaz de sanar a imobilidade que aflige os idosos. Os ratos curados do dr. Sweeney, entretanto, já atraíram a atenção de atletas que estão em busca de vantagem competitiva. Isso porque o gene não apenas promove a reparação dos músculos lesionados, mas também fortalece os músculos saudáveis. Embora a terapia não esteja ainda aprovada para uso em seres humanos, a perspectiva de halterofilistas, batedores de beisebol, jogadores de futebol americano e corredores geneticamente melhorados é fácil de imaginar. O uso generalizado de esteroides e outras drogas de melhoramento de desempenho no esporte profissional sugere que muitos atletas ficariam ansiosos para se lançar à terapia de melhoramento genético. O Comitê Olímpico Internacional (COI) já está preocupado com o fato de que, ao contrário de drogas e medicamentos, não é possível detectar a presença de genes alterados em testes de urina ou de sangue.
A perspectiva de atletas geneticamente alterados ilustra bastante bem os dilemas que existem em torno do melhoramento genético. O COI e outras ligas profissionais do esporte deveriam banir os atletas geneticamente melhorados? Em caso afirmativo, em que termos? Os dois motivos mais óbvios para banir o uso de drogas nos esportes são a segurança e a igualdade: os esteroides apresentam efeitos colaterais danosos, e permitir que alguns atletas melhorem seu desempenho arriscando-se a prejudicar seriamente a saúde colocaria seus adversários em um pé de injusta desigualdade. Mas suponhamos, a título de argumentação, que a terapia genética de melhoramento muscular fosse segura, ou pelo menos não mais arriscada do que um programa de musculação rigoroso. Será que ainda assim haveria razão para banir o seu uso nos esportes? Sim, existe algo de inquietante em relação ao espectro de atletas geneticamente modificados  levantando SUVs, marcando home runs de 200 metros ou correndo 2 quilômetros em três minutos, mas o que exatamente nos inquieta ao imaginarmos tais situações? Será apenas porque consideramos    tais     espetáculos    super-humanos    bizarros    demais     para    serem contemplados, ou será que nosso mal-estar aponta para algo de relevância ética?
A distinção entre curar e melhorar parece ser de cunho moral, mas não é óbvio em que consiste essa diferença. Pense nisto: se não há problema que um atleta machucado repare uma lesão muscular com a ajuda da terapia genética, por que é errado que esse mesmo atleta estenda a terapia de modo a não apenas curar o músculo,  mas  também voltar para o páreo melhor ainda do que antes? Podemos argumentar que um atleta geneticamente modificado teria uma vantagem injusta em relação a seus adversários não melhorados, porém o argumento contra o melhoramento apoiado na questão da justiça tem em si uma falha fatal. Sempre houve atletas geneticamente superiores e, contudo, não julgamos que a desigualdade natural da herança genética de uns em relação a outros prejudique a justiça nas competições esportivas. Do ponto de vista da justiça e da igualdade competitiva, as diferenças genéticas provocadas pelo melhoramento não são piores do que as naturais. Além do mais, supondo que seu uso seja seguro, as terapias  de melhoramento genético poderiam estar disponíveis para todos. Se o melhoramento genético nos esportes é moralmente censurável, então deve sê-lo por motivos que vão  além da justiça e da igualdade.

Memória

O melhoramento genético é tão possível para o cérebro quanto para os músculos. Em meados da década de 1990, cientistas conseguiram manipular um gene das drosófilas ligado à memória e criaram moscas com memória fotográfica. Mais recentemente, pesquisadores produziram ratos inteligentes ao inserir em seus embriões cópias extras de um gene relacionado à memória. Os ratos modificados aprendem mais depressa e se lembram das coisas por mais tempo do que os ratos normais. Por exemplo, conseguem reconhecer melhor objetos que já viram antes e se lembrar de que determinado som leva a um choque elétrico. O gene que os cientistas refinaram nos embriões de ratos também está presente nos seres humanos e se torna menos ativo com a idade. As cópias extras inseridas nos ratos foram programadas para permanecer ativas mesmo na velhice, e tal melhoria foi transmitida a suas crias.
É claro que o funcionamento da memória humana é mais complicado do que apenas recordar associações simples. Mas empresas de biotecnologia com  nomes  como Memory Pharmaceuticals estão ensandecidas atrás de medicamentos para melhorar a memória, os chamados “melhoradores cognitivos”, para uso em seres humanos. Um dos alvos óbvios para tais drogas são as pessoas que sofrem de distúrbios sérios da memória, como Alzheimer e demência. Mas as empresas já estão de olho em uma fatia do mercado bem maior: os 76 milhões de baby boomers*** acima dos 50 anos que estão começando a enfrentar a perda natural de memória que surge com a idade.
Um uso dessa natureza ficaria no meio-termo entre remédio e melhoramento. Ao contrário de uma terapia para Alzheimer, não curaria nenhuma doença, mas, uma vez que restaurasse as capacidades que a pessoa um dia já teve, teria certo aspecto medicinal. Por outro lado, também poderia ser usado para fins absolutamente não medicinais: por exemplo, por um advogado lutando para memorizar fatos para um julgamento ou por um executivo ansioso por aprender mandarim na véspera da sua viagem para Xangai.
Pode-se argumentar, contra o projeto de melhoramento genético da memória, que existem coisas que é melhor esquecer. Para as empresas  farmacêuticas,  entretanto,  o desejo de esquecer não representa nenhum empecilho, e sim mais um segmento de mercado. Quem deseja apagar o impacto de lembranças traumáticas ou dolorosas poderá em breve tomar um medicamento capaz de evitar que os acontecimentos horrendos irrompam de modo vívido na memória. Vítimas de violência sexual, soldados expostos à carnificina da guerra ou membros de equipes de salvamento e resgate obrigados a enfrentar o desfecho de um ataque terrorista poderiam tomar uma droga supressora da memória para nublar um trauma que, de outro modo, talvez os atormentasse por toda a vida. Se o uso de tais drogas tornar-se amplamente aceito, pode ser que um dia elas venham a ser administradas rotineiramente nos pronto-socorros e hospitais militares.
Alguns dos que se preocupam com a ética do melhoramento cognitivo apontam para o perigo de criar duas classes de seres humanos — aqueles com acesso às tecnologias de melhoramento genético e aqueles que precisam se virar com uma memória inalterada que se deteriora com a idade. E se os melhoramentos puderem ser transmitidos de geração em geração, as duas classes poderiam um dia tornar-se subespécies humanas: os melhorados e os naturais. A preocupação com o acesso, entretanto, implora que analisemos a questão do estatuto moral do melhoramento por si mesmo. Se essa situação parece perturbadora é porque os benefícios da bioengenharia seriam negados aos pobres não melhorados ou porque os ricos melhorados estariam de certo modo desumanizados? A mesma problemática apresentada em relação aos músculos vale também para a memória:  a questão fundamental   não   é como assegurar o   acesso igualitário ao melhoramento, e sim se devemos aspirar a ele. Será que deveríamos dedicar nossa proficiência tecnológica para curar as doenças e ajudar as pessoas a recuperarem a saúde ou será que também deveríamos nos melhorar reconstruindo nossos corpos e nossas mentes?

Altura

Os pediatras já estão se defrontando com a ética do melhoramento ao serem interpelados por pais que desejam aumentar a altura dos filhos. A partir dos anos 1980, a terapia com hormônio do crescimento humano foi aprovada para crianças portadoras de uma deficiência hormonal que as torna bem mais baixas do que a média.
 O mesmo tratamento, porém, também é capaz de aumentar a altura de crianças saudáveis. Alguns pais de crianças saudáveis que estão insatisfeitos com a estatura dos filhos (em geral meninos) pedem pelo tratamento hormonal dizendo que não importa se uma criança é baixa por causa de uma deficiência hormonal ou porque seus pais são baixos. Seja qual for a causa da baixa estatura, as consequências sociais que ela acarreta são idênticas nos dois casos.
Diante desse argumento, alguns médicos começaram a prescrever tratamentos hormonais para crianças cuja baixa estatura não tinha nenhuma relação com problemas de saúde. Em 1996, tal uso off label***** respondia por 40% das prescrições de hormônio do crescimento humano.13 Embora não seja ilegal prescrever medicamentos para fins não aprovados pela Food and Drug Administration (FDA), as empresas farmacêuticas são proibidas de promover esse tipo de uso. Buscando expandir seu mercado, uma dessas empresas, a Eli Lilly, recentemente convenceu a FDA a aprovar o uso do hormônio de crescimento humano para crianças saudáveis cuja projeção de altura quando adultas se situasse no percentil mais baixo — menos de 1,60 metro no caso dos meninos e menos de 1,48 metro no caso das meninas. Essa pequena concessão levanta uma grande questão relativa à ética do melhoramento: se os tratamentos hormonais não precisam mais se limitar às crianças com deficiências hormonais, por que deveriam então estar disponíveis somente para crianças muito baixas? Por que não deveriam estar disponíveis a todas as crianças mais baixas do que a média? E que dizer de uma criança  de altura normal que desejasse ser mais alta para entrar no time de basquete?
Os   críticos  chamam  o  uso  eletivo   do  hormônio  do  crescimento  humano     de “endocrinologia cosmética”.
 Os tratamentos são caros e os seguros de saúde dificilmente  os cobririam. Devem-se aplicar injeções até seis vezes por semana durante de dois a cinco anos, a um custo anual de aproximadamente US$ 20 mil — e tudo isso para um ganho potencial de altura de 5 a 7,5 centímetros.
Há quem se oponha ao uso do melhoramento para conquistar altura com o argumento de que é coletivamente prejudicial, pois enquanto alguns se tornam mais altos, outros necessariamente se tornam mais baixos em relação à média. Mas nem todas as crianças podem ter altura mediana, exceto as de Lake Wobegon*****. À medida que os não melhorados começarem a se sentir mais baixos, poderão eles também buscar tratamento, o que levará a uma corrida hormonal sem sentido que só agravará ainda mais a situação atual, especialmente de quem não puder pagar para superar a baixa estatura.
Contudo, a objeção da corrida sem sentido não é decisiva em si. Tal como o argumento da justiça contra a bioengenharia utilizada para melhorar os músculos e a memória, ela não analisa as atitudes e disposições que incitam o impulso pelo melhoramento. Se o que nos incomoda fosse apenas a injustiça de acrescentar a baixa estatura ao rol de problemas dos pobres, poderíamos remediar o problema oferecendo terapias de melhoramento genético subsidiadas pelo governo. Quanto ao problema da ação coletiva, a criação de um imposto sobre aqueles que pagassem para ser mais altos poderia compensar financeiramente todos os observadores inocentes que se vissem prejudicados pela relativa depreciação da sua altura. A verdadeira questão é se desejamos viver em uma sociedade em que os pais se sentem compelidos a gastar uma fortuna somente para aumentar em alguns centímetros a altura de seus filhos perfeitamente saudáveis.

Seleção do sexo

Talvez o mais sedutor dos usos da bioengenharia para fins não medicinais  seja a seleção do sexo. Há séculos os pais tentam escolher o sexo dos filhos. Aristóteles  aconselhava que os homens que desejavam um menino amarrassem o testículo esquerdo antes da relação sexual. O Talmude ensina que os homens que se contêm e permitem que as mulheres cheguem primeiramente ao orgasmo serão abençoados com um garoto. Outros métodos recomendados envolviam combinar o momento da relação sexual com a época da concepção ou as fases da lua. Hoje a bioengenharia encontra êxito onde os remédios populares falharam.
No caso dos casais que usam a fertilização in vitro (FIV), é possível escolher o sexo da criança antes da implantação do óvulo fertilizado no útero. O procedimento, conhecido como diagnóstico genético pré-implantacional (PGD, sigla em inglês para preimplantation genetic diagnosis), funciona da seguinte maneira: diversos óvulos são fertilizados em uma placa de Petri. Quando atingem o estágio de oito células (ou seja, depois de aproximadamente três dias), os embriões são testados para determinação do sexo. Os do sexo desejado são implantados; os outros são descartados. Embora poucos casais estejam dispostos a encarar as dificuldades e o custo elevado da FIV apenas para escolher o sexo do filho, os testes embrionários são um meio altamente confiável para a seleção do sexo. E, à medida que aumenta nosso conhecimento sobre genética, pode vir a ser possível utilizar o PGD para descartar outras características genéticas indesejadas, tais como  obesidade,  baixa  estatura  ou  cor  de  pele.  O  filme  de   ficção   científica Gattaca — Experiência genética, de 1997, retrata um futuro no qual os pais rotineiramente testam embriões para determinar sexo, altura, imunidade e até mesmo QI. Existe algo de perturbador no quadro exibido em Gattaca, mas não é fácil identificar  qual é exatamente o problema de testar embriões para escolher o sexo de nossos filhos.
A tecnologia de ponta usada para a seleção do sexo nos coloca essa questão por si só, sem associada ao status moral dos embriões. O Genetics & IVF Institute, uma clínica de infertilidade com fins lucrativos localizada em Fairfax, Virgínia, oferece hoje uma técnica de seleção de espermatozoides que permite que os clientes escolham o sexo dos filhos antes mesmo da concepção. O espermatozoide com cromossomo X (que produz meninas) carrega mais DNA do que o espermatozoide com cromossomo Y (que produz meninos); com o uso de um aparelho chamado citômetro de fluxo, é possível diferenciá- los. A técnica, que foi patenteada sob o nome de MicroSort, apresenta altos índices de precisão: 91% na identificação de meninas e 76% na de meninos. O Genetics & IVF Institute licenciou essa tecnologia no Departamento [Ministério] de Agricultura dos Estados Unidos, que a desenvolveu para a reprodução de gado bovino.
Se considerarmos censurável a seleção de sexo por meio da testagem de espermatozoides, então deve ser por motivos que vão além do debate em relação ao estatuto moral do embrião. Um desses motivos é que a seleção do sexo é um instrumento de discriminação sexual, tipicamente contra meninas, como ilustram as assustadoras desproporções entre os sexos na Índia e na China. Há quem especule que as sociedades nas quais existem mais homens do que mulheres serão menos estáveis, mais violentas e mais propensas ao crime e às guerras do que aquelas nas quais as proporções entre os sexos são normais.
 Todas essas preocupações são legítimas, mas a empresa de testagem de espermatozoides mencionada criou uma forma inteligente para lidar com elas. O MicroSort só está disponível para casais que desejam escolher o sexo dos filhos com o intuito de balancear a família. Os que têm mais filhos do que  filhas  podem escolher uma menina e vice-versa. Os clientes não podem utilizar a técnica para  colecionar crianças do mesmo sexo, tampouco para escolher o sexo do primeiro filho. Até agora, a maioria dos clientes da MicroSort escolheu meninas.
O caso do MicroSort nos ajuda a isolar a questão moral suscitada pelas tecnologias de melhoramento genético. Deixemos de lado os debates comuns em torno da segurança, do descarte de embriões e da discriminação sexual e imaginemos que as tecnologias de testagem de espermatozoides fossem empregadas em uma sociedade que não favorecesse os homens e que o resultado final fosse um equilíbrio maior na proporção  entre os sexos. Será que nessas condições a seleção do sexo continuaria a ser repreensível? E se fosse possível escolher não apenas o sexo, mas  também a altura, a cor dos olhos e a cor  da pele? Além de orientação sexual, QI, habilidades musicais e aptidão para os esportes? Imagine ainda que o melhoramento genético de músculos, memória e altura fosse aperfeiçoado a ponto de ser seguro e colocado à disposição de todos: nesse caso, deixaria de ser repreensível?
Não necessariamente. Em todos esses casos, persiste algo de moralmente inquietante. O problema não reside somente nos meios, mas também nos fins almejados. É comum dizer que o melhoramento genético, a clonagem e a engenharia genética ameaçam a dignidade humana. Isso é verdade. O desafio, porém, é identificar como essas práticas reduzem a nossa humanidade — ou seja, quais aspectos da liberdade humana ou do florescimento humano se veem ameaçados.

Atletas biônicos
Se o esforço fosse o ideal esportivo mais elevado de todos, então o pecado do melhoramento seria o fato de ele fornecer um jeito de escapar do treino e do trabalho árduo. Mas esforço não é tudo. Ninguém acredita que um jogador de basquete medíocre que dá tudo de si e treina com afinco ainda maior do que Michael Jordan mereça mais aclamação ou um contrato melhor. O verdadeiro problema dos atletas geneticamente modificados é que eles corrompem a competição esportiva enquanto atividade  humana que honra o cultivo e a exibição de talentos naturais.

MELHORAMENTO DO DESEMPENHO: HIGH TECH E LOWTECH

O limite entre cultivar talentos naturais e corrompê-los com artifícios nem sempre é claro. No início, os corredores corriam descalços. Pode ser que aquele que calçou o primeiro par de tênis de corrida tenha sido acusado de corromper a competição. Tal acusação teria sido injusta; desde que todos tenham acesso a esse tipo de calçado, ele destaca, e não obscurece, a excelência que a corrida foi inventada para exibir. Não se pode dizer o mesmo sobre todos os artifícios que os atletas empregam para melhorar seu desempenho. Quando foi descoberto que Rosie Ruiz vencera a Maratona de Boston porque saíra de fininho e percorrera parte do trajeto de metrô, seu prêmio foi revogado. Os casos difíceis se situam em algum ponto entre os tênis de corrida e o metrô.
As inovações em equipamentos são uma espécie de melhoramento e assim estão constantemente sendo colocadas em dúvida: aperfeiçoam ou obscurecem as habilidades essenciais para a competição? Entretanto, parece que as questões mais difíceis são levantadas pelo melhoramento corporal. Os defensores do melhoramento  argumentam que as drogas e as intervenções genéticas não são diferentes  de outros  modos  que os atletas empregam para modificar o corpo, tais como dietas especiais, complexos vitamínicos, barras energéticas, suplementos, programas de treinamento rigorosos   e até mesmo cirurgias. Tiger Woods enxergava tão mal que nem sequer conseguia ler o “E” grande do painel de exame oftalmológico. Em 1999 ele se submeteu a uma cirurgia a laser com o método Lasik e venceu seus cinco torneios seguintes.
O caráter reparador da cirurgia ocular faz com que ela seja de fácil aceitação. Mas e se Woods tivesse visão normal e desejasse melhorá-la? Ou, digamos, como parece ser o caso, que a cirurgia a laser tenha lhe dado uma visão melhor do que a de um jogador de golfe comum: será que isso faria dela um melhoramento ilegítimo?
A resposta depende de definir se o melhoramento da visão dos golfistas aperfeiçoa ou distorce os talentos e as habilidades que o golfe, na sua máxima expressão, foi criado para pôr à prova. Os defensores do melhoramento têm razão neste ponto: no caso  dos golfistas, a legitimidade do melhoramento da visão não está relacionada aos meios que eles empregam para consegui-la — sejam eles cirurgias, lentes de contato, exercícios oculares ou quantidades copiosas de suco de cenoura. O melhoramento é perturbador porque distorce e sobrepuja os talentos naturais, e isso não se restringe às drogas e modificações genéticas: podemos levantar objeções semelhantes contra alguns tipos de melhoramento que aceitamos comumente, como treinos e dieta.


Filhos projetados, pais projetistas

MOLDAR E CONTEMPLAR

A medicina, tal como os esportes, é uma prática dotada de propósito, de um telos que a norteia e a restringe. É claro que o que se considera saúde ou funcionamento humano normal é algo aberto à discussão; não é apenas uma questão biológica. Há controvérsias, por exemplo, quanto a se a surdez é uma deficiência a ser curada ou uma forma de comunidade e identidade a cultivar. Contudo, mesmo essa discussão surge a partir do ponto pacífico de que o objetivo da medicina é promover a saúde e curar as doenças.
Algumas pessoas argumentam que na obrigação de um pai de curar um filho doente está implícita a de melhorar um filho saudável, de maximizar seu potencial para que ele alcance o sucesso na vida. Contudo isso somente é verdadeiro se aceitarmos a ideia utilitária de que a saúde não é um bem humano distintivo, e sim apenas um meio de maximizar nossa felicidade e nosso bem-estar. O bioeticista Julian Savulescu argumenta, por exemplo, que “a saúde não tem valor intrínseco”, apenas “valor instrumental”, é um “recurso” que nos permite fazer o que desejamos. Esse tipo de pensamento em relação à saúde rejeita a distinção entre cura e melhoramento. De acordo com Savulescu, os pais não apenas têm o dever de promover a saúde dos filhos como  também  a “obrigação moral de modificá-los geneticamente”. Os pais deveriam utilizar a tecnologia para manipular a “memória, o temperamento, a paciência, a empatia, o senso de humor, o otimismo” e outras características dos filhos, a fim de lhes dar “a melhor oportunidade de ter uma vida melhor”.
Mas é um erro pensar na saúde em termos exclusivamente instrumentais, como um meio de maximizar alguma outra coisa. A boa saúde, assim como o bom caráter, é um elemento constitutivo do florescimento humano. Embora seja melhor ter mais saúde do que ter menos, pelo menos dentro de certos limites, a saúde não é o tipo de recurso que pode ser maximizado. Ninguém deseja ser um virtuose na saúde (exceto talvez os hipocondríacos).
Hoje, no entanto, os pais exageradamente ambiciosos tendem a perder a medida na transformação do amor, ao promover e exigir todo tipo de conquista dos filhos em busca da perfeição.
Admiramos os pais que buscam o melhor para seus filhos, que não poupam esforços para ajudá-los a conquistar a felicidade e o sucesso. Qual é, então, a diferença entre oferecer essa ajuda por meio da educação e da disciplina e fornecê-la por meio do melhoramento genético? Alguns pais conseguem vantagens para os filhos ao matriculá-los em escolas caras, contratar professores particulares, mandá-los a acampamentos de tênis, aulas de piano, de balé, de natação, de preparação para os exames de admissão à universidade e assim por diante. Se isso é admissível, e até mesmo admirável, então por que não é igualmente admirável que os pais se valham de quaisquer tecnologias genéticas à disposição (desde que sejam seguras) para melhorar a inteligência, a habilidade musical ou a competência esportiva dos seus filhos?
Os defensores do melhoramento argumentam que, em princípio, não existe diferença entre melhorar as crianças por meio da educação ou por meio da bioengenharia. Os críticos do melhoramento insistem em que tentar melhorar as crianças por meio da manipulação de sua carga genética é algo que remonta à eugenia, aquele movimento desacreditado do século passado que visava a melhorar a raça humana por meio de políticas (inclusive esterilização forçada e outras medidas hediondas) voltadas para o aprimoramento genético. Essas analogias rivais ajudam a esclarecer o estatuto moral do melhoramento genético. Será o afã de melhorar os filhos por meio da  engenharia genética mais parecido com a educação e a disciplina (algo presumivelmente bom) ou mais parecido com a eugenia (algo presumivelmente ruim)?
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Embora as prescrições de ritalina para crianças e adolescentes tenham disparado nos últimos anos, nem todos os seus usuários sofrem de transtorno de atenção ou hiperatividade. Os alunos, tanto do ensino médio quanto de nível universitário, descobriram que os psicoestimulantes melhoram também a concentração das pessoas saudáveis; alguns compram ou pegam emprestado a ritalina dos colegas para  melhorar seu desempenho no exame de admissão à universidade ou em provas na universidade. Uma das descobertas mais desconcertantes a respeito do uso da ritalina é o aumento das prescrições médicas para crianças em idade pré-escolar. Embora o medicamento não esteja aprovado para uso em crianças menores de 6 anos, os índices de prescrição para crianças de 2 a 4 anos praticamente triplicaram de 1991 a 1995.
Uma  vez  que  a  ritalina  funciona  tanto  para  propósitos  medicinais  quanto   para propósitos não medicinais — ou seja, tanto para tratar TDAH quanto para melhorar o desempenho de jovens saudáveis em busca de uma vantagem competitiva —, ela propõe os mesmos dilemas morais suscitados por outras técnicas  de  melhoramento.  Seja lá como forem resolvidos esses dilemas, o debate sobre a ritalina revela a distância cultural que percorremos desde o debate em torno das drogas (como maconha e LSD) uma geração atrás. Ao contrário das drogas dos anos 1960 e 1970, a ritalina e o Adderall não são para se distrair, mas para se concentrar; não para observar o mundo e absorvê-lo,  mas para moldar o mundo e se encaixar. Costumávamos chamar o uso de drogas não medicinais de “recreacional”. Esse termo já não se aplica. Os esteroides e estimulantes que figuram no debate em torno do melhoramento não são uma fonte de recreação, mas uma tentativa de adequação, uma forma de resposta à demanda competitiva da sociedade para melhorar nosso desempenho e aperfeiçoar nossa natureza. Essa demanda pelo desempenho e pela perfeição anima o impulso de injuriar o que nos é dado. É a fonte mais profunda do problema moral do melhoramento.
Há quem veja uma linha distinta entre o melhoramento genético e as outras maneiras que as pessoas utilizam para melhorar a si mesmas e aos seus filhos. A manipulação genética parece de certa forma pior — mais invasiva, mais sinistra — do que outras maneiras de melhorar o desempenho e buscar o sucesso. Mas, do ponto de vista moral, a diferença é menos significativa do que parece.


3            A nova e a velha eugenias

A eugenia foi um movimento dotado de uma grande ambição: aprimorar geneticamente a raça humana. O termo, que significa “bem-nascido”, foi cunhado em 1883 por sir Francis Galton, primo de Charles Darwin, que aplicou métodos estatísticos ao estudo da hereditariedade. Convencido de que a hereditariedade dominava o talento e o caráter, ele achava possível “produzir uma raça altamente talentosa de seres humanos por meio de casamentos criteriosos durante diversas gerações consecutivas”. Ele conclamava que a eugenia fosse “introduzida na consciência nacional, como uma nova religião”, encorajando os talentosos a escolherem seus parceiros com objetivos eugênicos em mente. “O que a natureza faz às cegas, devagar e de modo grosseiro, os homens podem fazer de modo providente, rápido e gentil (…). O aprimoramento de nossa raça me parece ser um dos mais elevados objetivos que podemos buscar racionalmente.”

A VELHA EUGENIA

Na  Alemanha,  a  legislação  eugênica  americana  encontrou  em  Adolf  Hitler um admirador. Em Mein Kampf (Minha luta) ele fez uma profissão de fé na eugenia:
A exigência de que os deficientes sejam impedidos de propagar uma prole de deficientes como eles é uma exigência da mais clara razão e, se sistematicamente executada, representa o mais humano dos atos da humanidade. Poupará milhões  de desafortunados de sofrimento desmerecido e consequentemente levará a uma melhoria da saúde como um todo.
Quando conquistou o poder, em 1933, Hitler promulgou uma ampla lei de esterilização que arrancou elogios dos eugenistas americanos. O Eugenical News, uma publicação de Cold Spring Harbor, editou uma tradução literal da lei e observou com orgulho suas semelhanças com o modelo de lei de esterilização proposto pelo movimento de eugenia americano.
A eugenia de Hitler terminou indo além da esterilização e passou ao assassinato em massa e ao genocídio. No fim da Segunda Guerra Mundial, as notícias sobre as atrocidades cometidas pelos nazistas contribuíram para o recuo do movimento eugenista norte-americano. As esterilizações involuntárias caíram nas décadas de 1940 e 1950, muito embora até os anos 1970 alguns estados continuassem a fazê-las. Em 2002  e 2003,  depois  que  reportagens  investigativas  trouxeram  as  crueldades  eugenistas  do passado à atenção do grande público, os governadores dos estados de Oregon, Virgínia, Califórnia, Carolina do Norte e Carolina do Sul fizeram pedidos de desculpas formais para as vítimas da esterilização compulsória.
A sombra da eugenia paira sobre todos os debates da atualidade acerca da engenharia e do melhoramento genéticos. Os críticos da engenharia genética argumentam que a clonagem humana, o melhoramento genético e a busca por crianças feitas sob encomenda não passam de eugenia “privatizada” ou “de livre mercado”. Já os defensores retrucam que as escolhas genéticas feitas livremente não são eugenia, pelo menos não no sentido pejorativo do termo. Retirar o aspecto da coerção, argumentam, é retirar aquilo que torna a eugenia repugnante.
Aprender a lição da eugenia é outra maneira de se confrontar com a ética do melhoramento. Os nazistas deram um rosto feio à eugenia, mas o que exatamente havia  de errado com ela? Seria a eugenia censurável somente quando coercitiva? Ou haverá algo de errado mesmo com as formas não coercitivas de controlar a carga genética da geração seguinte?



DE NOSSOS DONS
 a consciência de que nenhum de nós é completamente responsável pelo próprio sucesso — impede a sociedade meritocrática de deslizar para a crença arrogante de que o sucesso é o coroamento da virtude, de que os ricos são ricos porque são mais merecedores do que os pobres.
Se a engenharia genética nos permitisse sobrepujar os resultados da loteria genética e substituir o acaso pela escolha, o caráter de dádiva das potências e das  conquistas humanas desapareceria — e com ele, talvez, nossa capacidade de nos ver como pessoas  que compartilham um destino comum. Seria ainda mais provável do que é hoje que os bem-sucedidos se vissem como pessoas self-made e autossuficientes e, por conseguinte, completamente responsáveis pelo próprio sucesso. Os que estão nas camadas mais baixas da sociedade seriam vistos não como em desvantagem, e por isso dignos de alguma forma de compensação, mas simplesmente como desqualificados e, portanto, dignos de consertos eugênicos. A meritocracia, menos moderada pelo acaso, ficaria mais inflexível e menos tolerante. À medida que o perfeito conhecimento genético extinguisse o simulacro de  solidariedade  que  existe  nos  mercados  de  seguros,  o  perfeito  controle genético corroeria a verdadeira solidariedade que surge quando homens e mulheres refletem sobre a contingência de seus talentos e de sua sorte.

OBJEÇÕES

É provável que meu argumento contra o melhoramento levante pelo menos duas objeções: algumas pessoas poderão dizer que é religioso demais; outras, que não é convincente em termos consequencialistas. A primeira objeção afirma que falar em dádiva pressupõe um doador. Se isso é verdade, então meu argumento contra a engenharia e o melhoramento genéticos seria inescapavelmente religioso. Eu afirmo,  pelo  contrário, que a valorização da dádiva da vida pode surgir tanto de fontes religiosas quanto  seculares. Embora alguns creiam que Deus seja a fonte da dádiva da vida, e que a reverência à vida é uma forma de gratidão a Deus, não é preciso acreditar nisso para valorizar a vida como dádiva e reverenciá-la. Falamos comumente do dom de um atleta, ou de um músico, sem formar qualquer suposição quanto a se esse dom vem ou não de Deus. O que queremos dizer com isso é apenas que o talento em questão não é responsabilidade inteiramente do atleta ou do músico; é um dote que vai além do seu controle, não importa se ele deve agradecer à natureza, à sorte ou a Deus.
De modo semelhante, as pessoas costumam falar na santidade da vida, ou mesmo da natureza, sem necessariamente abraçar a versão metafísica pesada dessa ideia. Por exemplo, há quem partilhe com os antigos a noção de que a natureza é sagrada no sentido de ser encantada, dotada de um significado inerente, ou animada por um propósito divino; outras pessoas, na tradição judaico-cristã, acham que a santidade da natureza é derivada da criação divina do universo; já outras ainda acreditam que a natureza é sagrada simplesmente no sentido de não ser um simples objeto a nossa disposição, aberto a qualquer uso que queiramos fazer. Todas essas diversas compreensões do sagrado insistem que valorizemos a natureza e os seres  vivos  como algo além de meros instrumentos; fazer o contrário mostra certa falta de reverência, de respeito. Mas esse mandato moral não precisa se apoiar em um único quadro religioso  ou metafísico.
Pode-se retrucar que as noções não teológicas de santidade e dádiva são incapazes de se sustentar por si mesmas e devem sempre se apoiar em suposições metafísicas emprestadas que elas mesmas deixam de validar. Essa é uma questão profunda e  difícil que não posso tentar resolver aqui.6 É digno de nota, contudo, que pensadores liberais de Locke a Kant e Habermas aceitem a ideia de que a liberdade depende de uma origem ou de um ponto de vista que foge do nosso controle.
Para Locke, nossa vida e nossa liberdade, por serem direitos inalienáveis, não são nossas para delas abrirmos mão (por meio do suicídio ou vendendo-nos como escravos). Para Kant, embora sejamos os autores da lei moral, não temos a liberdade de nos explorar ou nos tratar como objetos, do mesmo modo como não podemos fazer isso com os outros. E para Habermas, conforme vimos, nossa liberdade de seres morais iguais depende de termos uma origem que esteja além da manipulação ou do controle humanos. Podemos compreender tais noções de direitos inalienáveis e invioláveis sem necessariamente abraçar os conceitos religiosos da santidade da vida humana. De maneira semelhante, podemos compreender a noção de dádiva, e sentir seu peso moral, independentemente de atribuirmos a origem dessa dádiva a Deus.
A segunda objeção considera minha argumentação contra o melhoramento limitadamente consequencialista e segue nas seguintes linhas: apontar os possíveis efeitos da bioengenharia sobre a humildade, a responsabilidade e a solidariedade pode ser convincente para quem valoriza essas virtudes. Mas quem está mais interessado em obter uma vantagem competitiva para seus filhos ou para si mesmo talvez resolva que os benefícios advindos do melhoramento genético superam seus efeitos supostamente adversos sobre as instituições sociais e os sentimentos morais. Além disso, mesmo supondo que o desejo de domínio seja algo mau, um indivíduo que o persiga pode conquistar um bem moral compensatório — a cura do câncer, por exemplo. Então por que assumir que o lado “ruim” do domínio necessariamente supera o bem que ele pode trazer?7
A essa objeção respondo que não tenciono apoiar meu argumento contra o melhoramento em considerações consequencialistas, pelo menos não no sentido comum do termo. Não desejo provar que a engenharia genética é repreensível simplesmente porque seus custos sociais provavelmente superariam os possíveis benefícios. Nem  afirmo que as pessoas que lançam mão da bioengenharia para projetar a si mesmas ou a seus filhos estejam necessariamente motivadas pelo desejo de dominar e que isso é um pecado do qual nada de bom pode advir. Não: o que estou sugerindo é que no debate sobre o melhoramento os riscos morais não estão totalmente apreendidos nas categorias familiares de autonomia e direitos, por um lado, nem no cálculo dos custos e benefícios, por  outro. O que me preocupa não  é o melhoramento  como vício  individual,  mas  sim COMO HÁBITO MENTAL E MODO DE VIDA.
Os maiores riscos são de dois tipos. Um deles envolve o destino dos bens humanos encarnados em importantes práticas sociais — os preceitos de amor incondicional e abertura ao imprevisto, no caso da experiência parental; a celebração dos talentos e dos dons naturais nas artes e nos esportes; a humildade diante do privilégio próprio e a disposição de partilhar os frutos da sua boa fortuna por meio de mecanismos de solidariedade social. O outro diz respeito a nossa orientação em relação ao mundo que habitamos e ao tipo de liberdade ao qual aspiramos.
É tentador pensar que projetar nossos filhos e nós mesmos para o sucesso por meio da bioengenharia é um exercício de liberdade numa sociedade competitiva. Porém modificar nossa natureza para nos encaixar no mundo, e não o contrário, é, na verdade, a forma mais profunda de enfraquecimento da autonomia. Em vez de empregar nossos novos conhecimentos genéticos para endireitar “a madeira torta da humanidade”,9 deveríamos fazer o possível para criar arranjos políticos e sociais mais tolerantes com as dádivas e limitações dos seres humanos imperfeitos.


O PROJETO DO DOMÍNIO
No fim dos anos 1960, Robert L. Sinsheimer, um biólogo molecular do California Institute of Technology, vislumbrou o rumo que as coisas tomariam. Em um artigo intitulado “The Prospect of Designed Genetic Change” (A perspectiva das modificações genéticas projetadas), ele argumentou que a liberdade de escolha justificaria a nova genética e a apartaria da antiga eugenia caída em descrédito.
Para implementar a antiga eugenia de Galton e seus sucessores, teria sido necessário um programa social de grande envergadura e com duração de muitas gerações. Um programa assim não poderia ser levado a cabo sem  o consentimento e a cooperação da maioria da população e estaria continuamente submetido ao controle social. Em comparação, a nova eugenia poderia, pelo menos em princípio, ser implementada numa base individual, em uma única geração, sem se sujeitar a qualquer restrição preexistente.
Segundo a nova eugenia seria voluntária, não coercitiva, e também mais humana. Em vez de segregar e eliminar os desqualificados, ela os melhoraria. “A velha eugenia teria exigido não só que se fizesse uma seleção contínua, a fim de fazer os qualificados procriarem, como também que se apartassem os desqualificados. A nova eugenia permitiria, em princípio, a conversão de todos os desqualificados para o mais alto nível genético.”
A peã de Sinsheimer à engenharia genética retrata a autoimagem prometeica e irrefletida de nossa era. Ele falou esperançosamente em resgatar “os perdedores da loteria cromossômica que com tanta firmeza direciona nossos destinos humanos” e incluiu não apenas os nascidos com defeitos genéticos, mas também os “50 milhões de americanos ‘normais’ com QI abaixo de 90”. Contudo, ele também viu que algo maior do que melhorar o “lance de dados descuidado e arcaico da natureza” estava em jogo. Nas novas tecnologias de intervenção genética estava implícita uma posição nova e mais exaltada para os seres humanos no universo. “À medida que aumentarmos a liberdade do homem, diminuiremos suas restrições e o número de coisas que devemos aceitar como dadas.” Copérnico e Darwin “distituíram o homem de sua glória cintilante no ponto focal do universo”, mas a nova biologia recuperaria esse papel crucial do ser humano. No espelho de nosso novo conhecimento genético, nós nos veríamos como algo além de um simples elo na corrente da evolução: “Podemos ser os agentes da transição para um novo salto evolutivo. Esse é um acontecimento cósmico.”
Existe algo de sedutor, e até mesmo inebriante, em vislumbrar a liberdade humana livre dos grilhões daquilo que nos é dado. Talvez a sedução dessa perspectiva até tenha colaborado para dar início à era genética. É comum assumir que os poderes de melhoramento que hoje temos surgiram como  subprodutos  da  evolução  da biomedicina — que a revolução genética apareceu, por assim dizer, para curar as doenças, mas perdurou para nos tentar com a perspectiva de melhorar nosso desempenho, projetar nossos filhos e aperfeiçoar nossa natureza. Mas isso pode ser a história contada de trás para a frente. Também é possível ver a engenharia genética como a expressão máxima de nossa decisão de subjugar o mundo, como mestres de nossa própria natureza. Essa visão de liberdade, entretanto, é falha. Ela ameaça banir a valorização da vida como dádiva e nos deixar sem nada para defender ou contemplar além da nossa própria vontade.

EPÍLOGO

ÉTICA EMBRIONÁRIA: O DEBATE SOBRE AS CÉLULAS-TRONCO
Ao me opor ao melhoramento genético, argumentei contra o triunfo unilateral do domínio sobre a reverência e insisti que voltássemos a valorizar a vida como uma dádiva. Entretanto, também argumentei que existe uma diferença entre curar e melhorar. A medicina intervém na natureza, mas, por estar limitada pelo objetivo de restaurar o funcionamento humano normal, não representa um ato de hybris desenfreada nem um apelo de dominação. A necessidade de curar vem do fato de que o mundo não é perfeito e completo, mas necessita constantemente da intervenção e reparação humanas. Nem tudo que nos é dado é bom. A varíola e a malária não são dádivas e seria bom erradicá-las.
O mesmo vale para o diabetes, o mal de Parkinson, a esclerose lateral amiotrófica e as lesões medulares. Uma das novas e mais promissoras fontes de esperança para  os  afligidos por essas doenças é a pesquisa com células-tronco. Em breve, os cientistas poderão extrair células-tronco de embriões em estágios iniciais de desenvolvimento e, a partir delas, estudar e curar doenças degenerativas. Os críticos de tal prática dizem que a extração de células-tronco destrói os embriões. Argumentam que a vida é uma dádiva e que, portanto, qualquer pesquisa que destrói a vida humana incipiente deve ser rejeitada. Neste epílogo, ofereço uma defesa da pesquisa com células-tronco embrionárias e tento demonstrar como a ética de valorizar o que nos é dado não a condena.



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