Essa obra Machadiana e com certeza um presente
para vocês, É
a
oportunidade de conhecer não
somente a biografia desse gênio da Literatura Brasileira cuja história de superação encanta a muitos - de mulato, epilético sem formação superior a Fundador da
Academia e um dos seus mais ilustres Imortais. Então com vocês Machado numa
forma de construção
de texto em que ele era primoroso: o conto.
O aconselhável seria ler não nas sobras de tempo, mas reserve uns 20
minutos por dia dessa semana para ler os contos. Leia um por dia. Como uma dose
de remédio que deve ser administrada compassadamente para surtir efeito. Anote
o que você não entender, mas não deixe de grifar, ou
anotar também aquilo que você considerou mais relevante.
Leia um pouco sobre as características machadianas e
seus principais temas, isso vai ajudar a você a perceber os temas dos
contos e a forma peculiar de construção desse autor.
No entanto, como falta muito pouco para o vestibular leia os trechos em negrito e os comentários que faço dos contos. A Uesc já cobrou uma questão aberta dessa obra, mas acertar a questão de Papéis Avulsos faz muita diferença uma vez que são muitas Histórias. Continuo na torcida.
Boa leitura
Mara Rute Lima
Para ADVERTÊNCIA[1]
Este título de Papéis avulsos parece negar
ao livro uma certa unidade; faz crer que o autor coligiu vários escritos de
ordem diversa para o fim de os não perder. A verdade é essa, sem ser bem essa.
Avulsos são eles, mas não vieram para aqui como passageiros, que acertam de entrar
na mesma hospedaria. São pessoas de uma só família, que a obrigação do pai fez
sentar à mesma mesa.
Quanto ao gênero deles, não sei que diga
que não seja inútil. O livro está nas mãos do leitor. Direi somente, que se há
aqui páginas que parecem meros contos, e outras que o não são, defendo-me das
segundas com dizer que os leitores das outras
podem
achar nelas algum interesse, e das primeiras defendo-me com São João e Diderot.
O evangelista, descrevendo a famosa besta apocalíptica, acrescentava (XVII, 9):
"E aqui há sentido, que tem sabedoria." Menos a sabedoria, cubro-me
com aquela palavra. Quanto a Diderot, ninguém ignora que ele, não só escrevia
contos, e alguns deliciosos, mas até aconselhava a um amigo que os escrevesse
também. E eis a razão do enciclopedista: é que quando se faz um conto, o
espírito fica alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vida acaba, sem a gente
dar por isso.
Deste modo, venha donde vier o reproche,
espero que daí mesmo virá a absolvição.
Outubro de 1882
MACHADO
DE ASSIS.
Antes de ler esse conto aconselho que você
assista ao filme chamado “ Bicho de sete cabeças” estrelado pro Rodrigo
Santoro.
CAPÍTULO I - DE COMO ITAGUAÍ GANHOU UMA
CASA DE ORATES
As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em
tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da
nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas.
Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não
podendo el rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou
em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.
- A
ciência[3],
disse ele a Sua Majestade, é o meu
emprego único; Itaguaí é o meu universo.
Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e
entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as
leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos casou
com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de
um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas
perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e
disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições
fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia
regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes[4].
Se além dessas prendas,-- únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista
era mal composta de feições, longe de lastimá lo, agradecia-o a Deus, porquanto
não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação
exclusiva, miúda e vulgar da consorte.
D.
Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem
mofinos.[5] A índole
natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois
quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria,
releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou
consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher
um regímen alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a
bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua
resistência,-- explicável, mas inqualificável,- devemos a total extinção da
dinastia dos Bacamartes.
Mas a
ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico
mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos
recantos desta lhe chamou especialmente a atenção,-- o recanto psíquico, o
exame de patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só
autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão
Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira,
podia cobrir-se de "louros imarcescíveis", - expressão usada por ele
mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto,
segundo convém aos sabedores.
- A
saúde da alma, bradou ele, é a
ocupação mais digna do médico. [6]
- Do verdadeiro médico, emendou Crispim
Soares, boticário da vila, e um dos seus amigos e comensais.
A vereança de Itaguaí, entre outros pecados
de que é argüida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim
é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não
curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida;
os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar
tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício
que ia construir todos os loucos de Itaguaí, e das demais vilas e cidades,
mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o
não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou
grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos
absurdos, ou ainda maus. A idéia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em
comum, pareceu em si mesma sintoma de demência e não faltou quem o insinuasse à
própria mulher do médico.
-- Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre
Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido dá um passeio ao Rio de Janeiro.
Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo.
D. Evarista ficou aterrada. Foi ter com o
marido, disse-lhe "que estava com desejos", um principalmente, o de
vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a certo
fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou
a intenção da esposa e redargüiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à
Câmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu a com tanta
eloqüência, que a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo
tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento
dos doidos pobres. A matéria do imposto
não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí.[7] Depois
de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos
dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria
dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as
horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O
escrivão perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova
taxa; e um dos vereadores, que não acreditava na empresa do médico, pediu que
se relevasse o escrivão de um trabalho inútil.
- Os cálculos não são precisos, disse ele,
porque o Dr. Bacamarte não arranja nada. Quem é que viu agora meter todos os
doidos dentro da mesma casa?
Enganava-se o digno magistrado; o médico
arranjou tudo. Uma vez empossado da licença começou logo a construir a casa.
Era na Rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo; tinha cinqüenta
janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no
Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela consideração de que Alá lhes
tira o juízo para que não pequem. A idéia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele
a fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por
tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII, merecendo com essa
fraude aliás pia, que o Padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida daquele
pontífice eminente. [8]
A Casa
Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas[9], que pela primeira
vez apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as
vilas e povoações próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de
Janeiro, correu gente para assistir às cerimônias, que duraram sete dias.
Muitos dementes já estavam recolhidos; e os parentes tiveram ocasião de ver o
carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam ser tratados. D. Evarista, contentíssima com a glória do
marido, vestiu-se luxuosamente, cobriu-se de jóias, flores e sedas. Ela foi uma
verdadeira rainha naqueles dias memoráveis; ninguém deixou de ir visitá la duas
e três vezes, apesar dos costumes caseiros e recatados do século, e não só a
cortejavam como a louvavam;[10]
porquanto,-- e este fato é um documento altamente honroso para a sociedade do
tempo, -- porquanto viam nela a feliz esposa de um alto espírito, de um varão
ilustre, e, se lhe tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores.
Ao cabo de sete dias expiraram as festas
públicas; Itaguaí, tinha finalmente[11]
uma casa de orates.[12]
CAPÍTULO II - TORRENTES DE LOUCOS
Três dias depois, numa expansão íntima com
o boticário Crispim Soares, desvendou o alienista o mistério do seu coração.
-- A
caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra como
tempero, como o sal das coisas, que é assim que interpreto o dito de São
Paulo aos Coríntios[13]:
"Se eu conhecer quanto se pode saber, e não tiver caridade, não sou
nada". O principal nesta minha obra
da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus,
classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio
universal. Este é o mistério do meu coração. Creio que com isto presto um bom
serviço à humanidade. [14]
-- Um excelente serviço, corrigiu o
boticário.
-- Sem este asilo, continuou o alienista,
pouco poderia fazer; ele dá-me, porém, muito maior campo aos meus estudos.
-- Muito maior, acrescentou o outro.
E tinha razão. De todas as vilas e arraiais
vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram
monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro
meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos;
mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete. O Padre Lopes confessou que
não imaginara a existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o
inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que
todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado
de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e
suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de
crer. Quê! um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua!
-- Não digo que não, respondia-lhe o
alienista; mas a verdade é o que Vossa Reverendíssima está vendo. Isto é todos
os dias.
-- Quanto a mim, tornou o vigário, só se
pode explicar pela confusão das línguas na torre de Babel, segundo nos conta a
Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as línguas, é fácil trocá las
agora, desde que a razão não trabalhe...
-- Essa pode ser, com efeito, a explicação
divina do fenômeno, concordou o alienista, depois de refletir um instante, mas
não é impossível que haja também alguma razão humana, e puramente científica, e
disso trato...
-- Vá que seja, e fico ansioso. Realmente!
Os loucos por amor eram três ou quatro, mas
só dois espantavam pelo curioso do delírio. O primeiro, um Falcão, rapaz de
vinte e cinco anos, supunha-se estrela d'alva, abria os braços e alargava as
pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas esquecidas a
perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro andava sempre,
sempre, sempre, à roda das salas ou do pátio, ao longo dos corredores, à
procura do fim do mundo. Era um desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir
um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e saiu lhes no
encalço; achou os duas horas depois, ao pé de uma lagoa, matou os a ambos com os
maiores requintes de crueldade.
O ciúme satisfez-se, mas o vingado estava
louco. E então começou aquela ânsia de ir ao fim do mundo à cata dos fugitivos.
A
mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O mais notável era um pobre
diabo, filho de um algibebe, que narrava às paredes ( porque não olhava nunca
para nenhuma pessoa ) toda a sua genealogia, que era esta:
--
Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi, Davi
engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês,
o marquês engendrou o conde, que sou eu. [15]
Dava uma pancada na testa, um estalo com os
dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas:
-- Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.
Outro da mesma espécie era um escrivão, que
se vendia por mordomo do rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era
distribuir boiadas a toda a gente, dava trezentas cabeças a um, seiscentas a
outro, mil e duzentas a outro, e não acabava mais. Não falo dos casos de
monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus,
dizia agora ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e
as penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não
dizia nada, porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só
palavra, todas as estrelas se despegariam do céu e abrasariam a terra; tal era
o poder que recebera de Deus.
Assim o escrevia ele no papel que o
alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por interesse científico.
Que, na verdade, a paciência do alienista
era ainda mais extraordinária do que todas as manias hospedadas na Casa Verde;
nada menos que assombrosa. Simão Bacamarte começou por organizar um pessoal de
administração; e, aceitando essa idéia ao boticário Crispim Soares, aceitou-lhe
também dois sobrinhos, a quem incumbiu da execução de um regimento que lhes
deu, aprovado pela Câmara, da distribuição da comida e da roupa, e assim também
da escrita, etc. Era o melhor que podia fazer, para somente cuidar do seu
ofício.-- A Casa Verde, disse ele ao vigário, é agora uma espécie de mundo, em
que há o governo temporal e o governo espiritual. E o Padre Lopes ria deste pio
trocado,-- e acrescentava,-- com o único fim de dizer também uma chalaça: --
Deixe estar, deixe estar, que hei de mandá lo denunciar ao papa.
Uma
vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação
dos seus enfermos. Dividiu os primeiramente em duas classes principais: os
furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações
diversas.
Isto feito, começou um estudo aturado e
contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões,
as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos
enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes
da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família,
uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E cada dia
notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um fenômeno
extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as substâncias
medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham
nos seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de sagacidade
e paciência. Ora, todo esse trabalho levava-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal
dormia e mal comia; e, ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora
interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas vezes de um
cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista.
CAPÍTULO III - DEUS SABE O QUE FAZ
Ilustre dama, no fim de dois meses,
achou-se a mais desgraçada das mulheres: caiu em profunda melancolia, ficou
amarela, magra, comia pouco e suspirava a cada canto. Não ousava fazer-lhe
nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nele o seu marido e senhor, mas
padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe
perguntasse o marido o que é que tinha, respondeu tristemente que nada; depois
atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava tão viúva como
dantes. E acrescentou:
-- Quem diria nunca que meia dúzia de
lunáticos...
Não acabou a frase; ou antes, acabou-a
levantando os olhos ao teto,-- os olhos, que eram a sua feição mais
insinuante,-- negros, grandes, lavados de uma luz úmida, como os da aurora.
Quanto ao gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Simão Bacamarte a
pediu em casamento. Não dizem as crônicas se D. Evarista brandiu aquela arma
com o perverso intuito de degolar de uma vez a ciência, ou, pelo menos,
decepar-lhe as mãos; mas a conjetura é verossímil. Em todo caso, o alienista
não lhe atribuiu intenção. E não se irritou o grande homem, não ficou sequer
consternado. O metal de seus olhos não deixou de ser o mesmo metal, duro, liso,
eterno, nem a menor prega veio quebrar a superfície da fronte quieta como a
água de Botafogo. Talvez um sorriso lhe descerrou os lábios, por entre os quais
filtrou esta palavra macia como o óleo do Cântico:
-- Consinto que vás dar um passeio ao Rio
de Janeiro.
D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão
debaixo dos pés. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro, que posto não fosse
sequer uma pálida sombra do que hoje é, todavia era alguma coisa mais do que
Itaguaí, Ver o Rio de Janeiro, para ela, equivalia ao sonho do hebreu cativo.
Agora, principalmente, que o marido assentara de vez naquela povoação interior,
agora é que ela perdera as últimas esperanças de respirar os ares da nossa boa
cidade; e justamente agora é que ele a convidava a realizar os seus desejos de
menina e moça. D. Evarista não pôde dissimular o gosto de semelhante proposta.
Simão Bacamarte pagou lhe na mão e sorriu,-- um sorriso tanto ou quanto
filosófico, além de conjugal, em que parecia traduzir-se este pensamento: -- "Não há remédio certo para as dores
da alma; esta senhora definha, porque lhe parece que a não amo; dou-lhe o Rio
de Janeiro, e consola-se"[16]. E
porque era homem estudioso tomou nota da observação.
Mas um dardo atravessou o coração de D.
Evarista. Conteve-se, entretanto; limitou-se a dizer ao marido que, se ele não
ia, ela não iria também, porque não havia de meter-se sozinha pelas estradas.
-- Irá com sua tia, redargüiu o alienista.
Note-se que D. Evarista tinha pensado nisso
mesmo; mas não quisera pedi lo nem insinuá lo, em primeiro lugar porque seria
impor grandes despesas ao marido, em segundo lugar porque era melhor, mais
metódico e racional que a proposta viesse dele.
-- Oh! mas o dinheiro que será preciso
gastar! suspirou D. Evarista sem convicção.
-- Que importa? Temos ganho muito, disse o
marido. Ainda ontem o escriturário prestou-me contas. Queres ver?
E levou-a aos livros. D. Evarista ficou
deslumbrada. Era uma via láctea de algarismos. E depois levou-a às arcas, onde
estava o dinheiro.
Deus! eram montes de ouro, eram mil
cruzados sobre mil cruzados, dobrões sobre dobrões; era a opulência.
Enquanto ela comia o ouro com os seus olhos
negros, o alienista fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido com a mais pérfida das
alusões:
-- Quem diria que meia dúzia de
lunáticos...
D. Evarista compreendeu, sorriu e respondeu
com muita resignação:
-- Deus sabe o que faz!
Três meses depois efetuava-se a jornada. D.
Evarista, a tia, a mulher do boticário, um sobrinho deste, um padre que o
alienista conhecera em Lisboa, e que de aventura achava-se em Itaguaí cinco ou
seis pajens, quatro mucamas, tal foi a comitiva que a população viu dali sair
em certa manhã do mês de maio. As despedidas foram tristes para todos, menos
para o alienista. Conquanto as lágrimas de D. Evarista fossem abundantes e
sinceras, não chegaram a abalá-lo. Homem
de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência;[17]
e se alguma coisa o preocupava naquela ocasião, se ele deixava correr pela
multidão um olhar inquieto e policial, não era outra coisa mais do que a idéia
de que algum demente podia achar-se ali misturado com a gente de juízo.
-- Adeus! soluçaram enfim as damas e o
boticário.
E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao
tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da besta ruana em que vinha
montado; Simão Bacamarte alongava os seus pelo horizonte adiante, deixando ao
cavalo a responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do gênio e do vulgo! Um
fita o presente, com todas as suas lágrimas e saudades, outro devassa o futuro
com todas as suas auroras.
CAPÍTULO IV - UMA TEORIA NOVA
Ao passo que D. Evarista, em lágrimas,
vinha buscando o Rio de Janeiro, Simão Bacamarte estudava por todos os lados
uma certa idéia arrojada e nova, própria a alargar as bases da psicologia. Todo
o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde, era pouco para andar na
rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e
virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heróicos.
Um dia de manhã,-- eram passadas três
semanas,-- estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram
dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.
-- Trata-se de negócio importante, segundo
ele me disse, acrescentou o portador.
Crispim empalideceu. Que negócio importante
podia ser, se não alguma notícia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque
este tópico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas;
Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um só
dia. Assim se explicam os monólogos que ele fazia agora, e que os fâmulos lhe
ouviam muita vez:-- "Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem
de Cesária? Bajulador, torpe bajulador! Só para adular ao Dr. Bacamarte. Pois
agora agüenta-te; anda, agüenta-te, alma de lacaio, fracalhão, vil, miserável.
Dizes amém a tudo, não é? aí tens o lucro, biltre!"-- E muitos outros
nomes feios, que um homem não deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo.
Daqui a imaginar o efeito do recado é um nada. Tão depressa ele o recebeu como
abriu mão das drogas e voou à Casa Verde.
Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria
própria de um sábio, uma alegria abotoada de circunspeção até o pescoço.
-- Estou muito contente, disse ele.
-- Notícias do nosso povo? perguntou o
boticário com a voz trêmula.
O alienista fez um gesto magnífico, e
respondeu:
-- Trata-se de coisa mais alta, trata-se de
uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar
desde já a minha idéia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão uma
investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência
que vai mudar a face da Terra. A
loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da
razão; começo a suspeitar que é um continente.
Disse isto, e calou-se, para ruminar o
pasmo do boticário. Depois explicou compridamente a sua idéia. No conceito dele
a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto com
grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou os na história e em Itaguaí mas, como um raro
espírito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itaguaí e
refugiou-se na história. Assim, apontou com especialidade alguns personagens
célebres, Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à
esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de casos e
pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridículas. E
porque o boticário se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe
que era tudo a mesma coisa, e até acrescentou sentenciosamente:
-- A
ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a sério.
-- Gracioso, muito gracioso! exclamou
Crispim Soares levantando as mãos ao céu.
Quanto à idéia de ampliar o território da
loucura, achou-a o boticário extravagante; mas a modéstia, principal adorno de
seu espírito, não lhe sofreu confessar outra coisa além de um nobre entusiasmo;
declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era "caso de
matraca". Esta expressão não tem equivalente no estilo moderno. Naquele
tempo, Itaguaí que como as demais vilas, arraiais e povoações da colônia, não
dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notícia; ou por meio de
cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara, e da matriz;-- ou por meio
de matraca.
Eis em que consistia este segundo uso.
Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com
uma matraca na mão.
De quando em quando tocava a matraca,
reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam,-- um remédio para sezões,
umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesiástico, a melhor tesoura da
vila, o mais belo discurso do ano, etc. O sistema tinha inconvenientes para a
paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que possuía.
Por exemplo, um dos vereadores,-- aquele justamente que mais se opusera à
criação da Casa Verde,-- desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras
e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado
de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crônicas que algumas
pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação
perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema. Verdade,
verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do
nosso século.
-- Há melhor do que anunciar a minha idéia,
é praticá la, respondeu o alienista à insinuação do boticário.
E o boticário, não divergindo sensivelmente
deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor começar pela execução.
-- Sempre haverá tempo de a dar à matraca,
concluiu ele.
Simão Bacamarte refletiu ainda um instante,
e disse:
-- Suponho o espírito humano uma vasta
concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão;
por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da
loucura. A razão é o perfeito equilíbrio
de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia. [18]
O Vigário Lopes a quem ele confiou a nova
teoria, declarou lisamente que não chegava a entendê la, que era uma obra
absurda, e, se não era absurda, era de tal modo colossal que não merecia
princípio de execução.
-- Com a definição atual, que é a de todos
os tempos, acrescentou, a loucura e a
razão estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra
começa. Para que transpor a cerca?
Sobre o lábio fino e discreto do alienista
rogou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o desdém vinha casado à
comiseração; mas nenhuma palavra saiu de suas egrégias entranhas.
A ciência contentou-se em estender a mão à
teologia, -- com tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia crer em
si ou na outra. Itaguaí e o universo ficavam à beira de uma revolução.
CAPÍTULO V - O TERROR
Quatro dias depois, a população de Itaguaí
ouviu consternada a notícia de que um certo Costa fora recolhido à Casa Verde. [19]
-- Impossível!
-- Qual impossível! foi recolhido hoje de
manhã.
-- Mas, na verdade, ele não merecia...
Ainda em cima! depois de tanto que ele fez...
Costa era um dos cidadãos mais estimados de
Itaguaí, Herdara quatrocentos mil cruzados em boa moeda de El rei Dom João V,
dinheiro cuja renda bastava, segundo lhe declarou o tio no testamento, para
viver "até o fim do mundo". Tão depressa recolheu a herança, como
entrou a dividi-la em empréstimos, sem usura, mil cruzados a um, dois mil a
outro, trezentos a este, oitocentos àquele, a tal ponto que, no fim de cinco
anos, estava sem nada. Se a miséria viesse de chofre, o pasmo de Itaguaí, seria
enorme; mas veio devagar; ele foi passando da opulência à abastança, da
abastança à mediania, da mediania à pobreza, da pobreza à miséria,
gradualmente. Ao cabo daqueles cinco anos, pessoas que levavam o chapéu ao
chão, logo que ele assomava no fim da rua, agora batiam-lhe no ombro, com
intimidade, davam-lhe piparotes no nariz, diziam-lhe pulhas. E o Costa sempre
lhano, risonho. Nem se lhe dava de ver que os menos corteses eram justamente os
que tinham ainda a dívida em aberto; ao contrário, parece que os agasalhava com
maior prazer, e mais sublime resignação. Um dia, como um desses incuráveis
devedores lhe atirasse uma chalaça grossa, e ele se risse dela, observou um
desafeiçoado, com certa perfídia: -- "Você suporta esse sujeito para ver
se ele lhe paga". Costa não se deteve um minuto, foi ao devedor e
perdoou-lhe a dívida.-- "Não admira, retorquiu o outro; o Costa abriu mão
de uma estrela, que está no céu". Costa era perspicaz, entendeu que ele
negava todo o merecimento ao ato, atribuindo-lhe a intenção de rejeitar o que
não vinham meter-lhe na algibeira. Era também pundonoroso e inventivo; duas
horas depois achou um meio de provar que lhe não cabia um tal labéu: pegou de
algumas dobras, e mandou as de empréstimo ao devedor.
-- Agora espero que...-- pensou ele sem
concluir a frase.
Esse último rasgo do Costa persuadiu a
crédulos e incrédulos; ninguém mais pôs em dúvida os sentimentos cavalheirescos
daquele digno cidadão. As necessidades mais acanhadas saíram à rua, vieram
bater-lhe à porta, com os seus chinelos velhos, com as suas capas remendadas.
Um verme, entretanto, rola a alma do Costa: era o conceito do desafeto. Mas
isso mesmo acabou; três meses depois veio este pedir-lhe uns cento e vinte
cruzados com promessa de restituir-lhos daí a dois dias; era o resíduo da
grande herança, mas era também uma nobre desforra: Costa emprestou o dinheiro
logo, logo, e sem juros. Infelizmente não teve tempo de ser pago; cinco meses
depois era recolhido à Casa Verde.
Imagina-se a consternação de Itaguaí,
quando soube do caso. Não se falou em outra coisa, dizia-se que o Costa
ensandecera, ao almoço, outros que de madrugada; e contavam-se os acessos, que
eram furiosos, sombrios, terríveis,-- ou mansos, e até engraçados, conforme as
versões. Muita gente correu à Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranqüilo, um
pouco espantado, falando com muita clareza, e perguntando por que motivo o
tinham levado para ali. Alguns foram ter com o alienista. Bacamarte aprovava
esses sentimentos de estima e compaixão, mas acrescentava que a ciência era a
ciência, e que ele não podia deixar na rua um mentecapto. A última pessoa que
intercedeu por ele (porque depois do que vou contar ninguém mais se atreveu a
procurar o terrível médico) foi uma pobre senhora, prima do Costa. O alienista
disse-lhe confidencialmente que esse digno homem não estava no perfeito
equilíbrio das faculdades mentais, à vista do modo como dissipara os cabedais
que...
-- Isso, não! isso, não! interrompeu a boa
senhora com energia. Se ele gastou tão depressa o que recebeu, a culpa não é
dele.
-- Não?
-- Não, senhor. Eu lhe digo como o negócio
se passou. O defunto meu tio não era mau homem; mas quando estava furioso era
capaz de nem tirar o chapéu ao Santíssimo. Ora, um dia, pouco tempo antes de
morrer, descobriu que um escravo lhe roubara um boi; imagine como ficou.
A cara era um pimentão; todo ele tremia, a
boca escumava; lembra-me como se fosse hoje. Então um homem feio, cabeludo, em
mangas de camisa, chegou-se a ele e pediu água. Meu tio (Deus lhe fale à alma!)
respondeu que fosse beber ao rio ou ao inferno. O homem olhou para ele, abriu a
mão em ar de ameaça, e rogou esta praga:-- "Todo o seu dinheiro não há de
durar mais de sete anos e um dia, tão certo como isto ser o sino-salamão! E
mostrou o sino-salamão impresso no braço. Foi isto, meu senhor; foi esta praga
daquele maldito.
Bacamarte espetara na pobre senhora um par
de olhos agudos como punhais. Quando ela acabou, estendeu-lhe a mão
polidamente, como se o fizesse à própria esposa do vice rei, e convidou-a a ir
falar ao primo. A mísera acreditou; ele levou-a à Casa Verde e encerrou-a na
galeria dos alucinados.
A notícia desta aleivosia do ilustre
Bacamarte lançou o terror à alma da população. Ninguém queria acabar de crer,
que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde uma senhora
perfeitamente ajuizada, que não tinha outro crime senão o de interceder por um
infeliz. Comentava-se o caso nas esquinas, nos barbeiros; edificou-se um
romance, umas finezas namoradas que o alienista outrora dirigira à prima do
Costa, a indignação do Costa e o desprezo da prima. E daí a vingança. Era
claro. Mas a austeridade do alienista, a vida de estudos que ele levava,
pareciam desmentir uma tal hipótese. Histórias! Tudo isso era naturalmente a
capa do velhaco. E um dos mais crédulos chegou a murmurar que sabia de outras
coisas, não as dizia, por não ter certeza plena, mas sabia, quase que podia
jurar.
-- Você, que é íntimo dele, não nos podia
dizer o que há, o que houve, que motivo...
Crispim Soares derretia-se todo. Esse
interrogar da gente inquieta e curiosa, dos amigos atônitos, era para ele uma
consagração pública. Não havia duvidar; toda a povoação sabia enfim que o
privado do alienista era ele, Crispim, o boticário, o colaborador do grande
homem e das grandes coisas; daí a corrida à botica. Tudo isso dizia o carão
jucundo e o riso discreto do boticário, o riso e o silêncio, porque ele não
respondia nada; um, dois, três monossílabos, quando muito, soltos, secos,
encapados no fiel sorriso constante e miúdo, cheio de mistérios científicos,
que ele não podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana.
-- Há coisa, pensavam os mais desconfiados.
Um desses limitou-se a pensá-lo, deu de
ombros e foi embora. Tinha negócios pessoais Acabava de construir uma casa
suntuosa. Só a casa bastava para deter a chamar toda a gente; mas havia mais,--
a mobília, que ele mandara vir da Hungria e da Holanda, segundo contava, e que
se podia ver do lado de fora, porque as janelas viviam abertas,-- e o jardim,
que era uma obra prima de arte e de gosto. Esse homem, que enriquecera no
fabrico de albardas, tinha tido sempre o sonho de uma casa magnífica, jardim
pomposo, mobília rara. Não deixou o negócio das albardas, mas repousava dele na
contemplação da casa nova, a primeira de Itaguaí, mais grandiosa do que a Casa
Verde, mais nobre do que a da Câmara, Entre a gente ilustre da povoação havia
choro e ranger de dentes, quando se pensava, ou se falava, ou se louvava a casa
do albardeiro,-- um simples albardeiro, Deus do céu!
-- Lá está ele embasbacado, diziam os
transeuntes, de manhã.
De manhã, com efeito, era costume do Mateus
estatelar-se, no meio do jardim, com os olhos na casa, namorado, durante uma
longa hora, até que vinham chamá lo para almoçar. Os vizinhos, embora o
cumprimentassem com certo respeito, riam-se por trás dele, que era um gosto. Um
desses chegou a dizer que o Mateus seria muito mais econômico, e estaria
riquíssimo, se fabricasse as albardas para si mesmo; epigrama ininteligível,
mas que fazia rir às bandeiras despregadas.
-- Agora lá está o Mateus a ser
contemplado, diziam à tarde.
A razão deste outro dito era que, de tarde,
quando as famílias saíam a passeio (jantavam cedo) usava o Mateus postar-se à
janela, bem no centro, vistoso, sobre um fundo escuro, trajado de branco,
atitude senhoril, e assim ficava duas e três horas até que anoitecia de todo.
Pode crer-se que a intenção do Mateus era ser admirado e invejado, posto que
ele não a confessasse a nenhuma pessoa, nem ao boticário, nem ao Padre Lopes
seus grandes amigos. E entretanto não foi outra a alegação do boticário, quando
o alienista lhe disse que o albardeiro talvez padecesse do amor das pedras,
mania que ele Bacamarte descobrira e estudava desde algum tempo. Aquilo de
contemplar a casa...
-- Não, senhor, acudiu vivamente Crispim
Soares.
-- Não?
-- Há de perdoar-me, mas talvez não saiba
que ele de manhã examina a obra, não a admira; de tarde, são os outros que o
admiram a ele e à obra.-- E contou o uso do albardeiro, todas as tardes, desde
cedo até o cair da noite.
Uma volúpia científica alumiou os olhos de
Simão Bacamarte. Ou ele não conhecia todos os costumes do albardeiro, ou nada
mais quis, interrogando o Crispim, do que confirmar alguma notícia incerta ou
suspeita vaga. A explicação satisfê lo; mas como tinha as alegrias próprias de
um sábio, concentradas, nada viu o boticário que fizesse suspeitar uma intenção
sinistra. Ao contrário, era de tarde, e o alienista pediu-lhe o braço para irem
a passeio. Deus! era a primeira vez que Simão Bacamarte dava o seu privado
tamanha honra; Crispim ficou trêmulo, atarantado, disse que sim, que estava
pronto. Chegaram duas ou três pessoas de fora, Crispim mandou as mentalmente a
todos os diabos; não só atrasavam o passeio, como podia acontecer que Bacamarte
elegesse alguma delas, para acompanhá lo, e o dispensasse a ele. Que
impaciência! que aflição! Enfim, saíram. O alienista guiou para os lados da
casa do albardeiro, viu-o à janela, passou cinco, seis vezes por diante,
devagar, parando, examinando as atitudes, a expressão do rosto. O pobre Mateus,
apenas notou que era objeto da curiosidade ou admiração do primeiro volto de
Itaguaí redobrou de expressão, deu outro relevo às atitudes... Triste! triste,
não fez mais do que condenar-se; no dia seguinte, foi recolhido à Casa Verde.
-- A Casa Verde é um cárcere privado, disse
um médico sem clínica.
Nunca uma opinião pegou e grassou tão
rapidamente. Cárcere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a
oeste de Itaguaí,-- a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu à
captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas,-- duas ou três de
consideração,-- foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que só eram
admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se
as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania
do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em
Itaguaí qualquer gérmen de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir,
com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não
explicavam nada, tal era o produto diário da imaginação pública.
Nisto chegou do Rio de Janeiro a esposa do
alienista, a tia, a mulher do Crispim Soares, e toda a mais comitiva, -- ou
quase toda-- que algumas semanas antes partira de Itaguaí O alienista foi
recebê la, com o boticário, o Padre Lopes os vereadores e vários outros
magistrados. O momento em que D. Evarista pôs os olhos na pessoa do marido é
considerado pelos cronistas do tempo como um dos mais sublimes da história
moral dos homens, e isto pelo contraste das duas naturezas, ambas extremas,
ambas egrégias. D. Evarista soltou um grito, -- balbuciou uma palavra e
atirou-se ao consorte -- de um gesto que não se pode melhor definir do que
comparando-o a uma mistura de onça e rola. Não assim o ilustre Bacamarte; frio
como diagnóstico, sem desengonçar por um instante a rigidez científica,
estendeu os braços à dona que caiu neles e desmaiou. Curto incidente; ao cabo
de dois minutos D. Evarista recebia os cumprimentos dos amigos e o préstito
punha-se em marcha.
D. Evarista era a esperança de Itaguaí,
contava-se com ela para minorar o flagelo da Casa Verde. Daí as aclamações
públicas, a imensa gente que atulhava as ruas, as flâmulas, as flores e
damascos às janelas. Com o braço apoiado no do Padre Lopes -- porque o eminente
confiara a mulher ao vigário e acompanhava-os a passo meditativo-- D. Evarista
voltava a cabeça a um lado e outro, curiosa, inquieta, petulante. O vigário
indagava do Rio de Janeiro, que ele não vira desde o vice-reinado anterior; e
D. Evarista respondia entusiasmada que era a coisa mais bela que podia haver no
mundo. O Passeio Público estava acabado, um paraíso onde ela fora muitas vezes,
e a Rua das Belas Noites, o chafariz das Marrecas... Ah! o chafariz das
Marrecas! Eram mesmo marrecas-- feitas de metal e despejando água pela boca
fora. Uma coisa galantíssima. O vigário dizia que sim, que o Rio de Janeiro
devia estar agora muito mais bonito. Se já o era noutro tempo! Não admira,
maior do que Itaguaí, e, demais, sede do governo... Mas não se pode dizer que
Itaguaí fosse feio; tinha belas casas, a casa do Mateus, a Casa Verde...
-- A propósito de Casa Verde, disse o Padre
Lopes escorregando habilmente para o assunto da ocasião, a senhora vem achá la
muito cheia de gente.
-- Sim?
-- É verdade. Lá está o Mateus...
-- O albardeiro?
-- O albardeiro; está o Costa, a prima do
Costa, e Fulano, e Sicrano, e...
-- Tudo isso doido?
-- Ou quase doido, obtemperou padre.
-- Mas então?
O vigário derreou os cantos da boca, à
maneira de quem não sabe nada ou não quer dizer tudo; resposta vaga, que se não
pode repetir a outra pessoa por falta de texto. D. Evarista achou realmente
extraordinário que toda aquela gente ensandecesse; um ou outro, vá; mas todos?
Entretanto custava-lhe duvidar; o marido era um sábio, não recolheria ninguém à
Casa Verde sem prova evidente de loucura.
-- Sem dúvida... sem dúvida... ia pontuando
o vigário.
Três horas depois cerca de cinqüenta
convivas sentavam-se em volta da mesa de Simão Bacamarte; era o jantar das boas
vindas. D. Evarista foi o assunto obrigado dos brindes, discursos, versos de
toda a casta, metáforas, amplificações, apólogos. Ela era a esposa do novo
Hipócrates, a musa da ciência, anjo, divina, aurora, caridade, vida,
consolação; trazia nos olhos duas estrelas segundo a versão modesta de Crispim
Soares e dois sóis no conceito de um vereador. O alienista ouvia essas coisas
um tanto enfastiado, mas sem visível impaciência. Quando muito, dizia ao ouvido
da mulher que a retórica permitia tais arrojos sem significação. D. Evarista
fazia esforços para aderir a esta opinião do marido; mas, ainda descontando
três quartas partes das louvaminhas, ficava muito com que enfunar-lhe a alma.
Um dos oradores, por exemplo, Martim Brito, rapaz de vinte e cinco anos,
pintalegrete acabado, curtido de namoros e aventuras, declamou um discurso em
que o nascimento de D. Evarista era explicado pelo mais singular dos reptos.
Deus, disse ele, depois de dar o universo ao homem e à mulher, esse diamante e
essa pérola da coroa divina (e o orador arrastava triunfalmente esta frase de
uma ponta a outra da mesa), Deus quis vencer a Deus, e criou D. Evarista."
D. Evarista baixou os olhos com exemplar
modéstia. Duas senhoras, achando a cortesanice excessiva e audaciosa,
interrogaram os olhos do dono da casa; e, na verdade, o gesto do alienista
pareceu-lhes nublado de suspeitas, de ameaças e provavelmente de sangue. O
atrevimento foi grande, pensaram as duas damas. E uma e outra pediam a Deus que
removesse qualquer episódio trágico-- ou que o adiasse ao menos para o dia
seguinte. Sim, que o adiasse. Uma delas, a mais piedosa, chegou a admitir
consigo mesma que D. Evarista não merecia nenhuma desconfiança, tão longe
estava de ser atraente ou bonita. Uma simples água morna. Verdade é que, se
todos os gostos fossem iguais, o que seria do amarelo? Esta idéia fê la tremer
outra vez, embora menos; menos, porque o alienista sorria agora para o Martim
Brito e, levantados todos, foi ter com ele e falou-lhe do discurso. Não lhe
negou que era um improviso brilhante, cheio de rasgos magníficos. Seria dele
mesmo a idéia relativa ao nascimento de D. Evarista ou tê la ia encontrado em
algum autor que?... Não senhor; era dele mesmo; achou-a naquela ocasião e
pareceu-lhe adequada a um arroubo oratório. De resto, suas idéias eram antes
arrojadas do que ternas ou jocosas. Dava para o épico. Uma vez, por exemplo,
compôs uma ode à queda do Marquês de Pombal, em que dizia que esse ministro era
o "dragão aspérrimo do Nada" esmagado pelas "garras vingadoras
do Todo"; e assim outras mais ou menos fora do comum; gostava das idéias
sublimes e raras, das imagens grandes e nobres...
-- Pobre moço! pensou o alienista. E
continuou consigo: -- Trata-se de um caso de lesão cerebral: fenômeno sem
gravidade, mas digno de estudo...
D. Evarista ficou estupefata quando soube,
três dias depois, que o Martim Brito fora alojado na Casa Verde. Um moço que
tinha idéias tão bonitas! As duas senhoras atribuíram o ato a ciúmes do alienista.
Não podia ser outra coisa; realmente, a declaração do moço fora audaciosa
demais.
Ciúmes? Mas como explicar que, logo em
seguida, fossem recolhidos José Borges do Couto Leme, pessoa estimável, o Chico
das cambraias, folgazão emérito, o escrivão Fabrício e ainda outros? O terror acentuou-se. Não se sabia já quem
estava são, nem quem estava doido[20].
As mulheres, quando os maridos safam, mandavam acender uma lamparina a Nossa
Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam fora sem um
ou dois capangas. Positivamente o terror. Quem podia emigrava. Um desses
fugitivos chegou a ser preso a duzentos passos da vila. Era um rapaz de trinta
anos, amável, conversado, polido, tão polido que não cumprimentava alguém sem
levar o chapéu ao chão; na rua, acontecia-lhe correr uma distância de dez a
vinte braças para ir apertar a mão a um homem grave, a uma senhora, às vezes a
um menino, como acontecera ao filho do juiz de fora. Tinha a vocação das
cortesias. De resto, devia as boas relações da sociedade, não só aos dotes
pessoais, que eram raros, como à nobre tenacidade com que nunca desanimava
diante de uma, duas, quatro, seis recusas, caras feias, etc. O que acontecia
era que, uma vez entrado numa casa, não a deixava mais, nem os da casa o
deixavam a ele, tão gracioso era o Gil Bernardes. Pois o Gil Bernardes, apesar
de se saber estimado, teve medo quando lhe disseram um dia que o alienista o
trazia de olho; na madrugada seguinte fugiu da vila, mas foi logo apanhado e
conduzido à Casa Verde.
-- Devemos acabar com isto!
-- Não pode continuar!
-- Abaixo a tirania!
-- Déspota! violento! Golias!
Não eram gritos na rua, eram suspiros em
casa, mas não tardava a hora dos gritos. O terror crescia; avizinhava-se a
rebelião. A idéia de uma petição ao governo, para que Simão Bacamarte fosse
capturado e deportado, andou por algumas cabeças, antes que o barbeiro Porfírio
a expendesse na loja com grandes gestos de indignação. Note-se -- e essa é uma
das laudas mais puras desta sombrio história -- note-se que o Porfírio, desde
que a Casa Verde começara a povoar-se tão extraordinariamente, viu
crescerem-lhe os lucros pela aplicação assídua de sanguessugas que dali lhe
pediam; mas o interesse particular, dizia ele, deve ceder ao interesse público.
E acrescentava:-- é preciso derrubar o tirano! Note-se mais que ele soltou esse
grito justamente no dia em que Simão Bacamarte fizera recolher à Casa Verde um
homem que trazia com ele uma demanda, o Coelho.
-- Não me dirão em que é que o Coelho é
doido? bradou o Porfírio,
E ninguém lhe respondia; todos repetiam que
era um homem perfeitamente ajuizado. A mesma demanda que ele trazia com o
barbeiro, acerca de uns chãos da vila, era filha da obscuridade de um alvará e
não da cobiça ou ódio. Um excelente caráter o Coelho. Os únicos desafeiçoados
que tinha eram alguns sujeitos que, dizendo-se taciturnos ou alegando andar com
pressa, mal o viam de longe dobravam as esquinas, entravam nas lojas, etc. Na
verdade, ele amava a boa palestra, a palestra comprida, gostada a sorvos
largos, e assim é que nunca estava só, preferindo os que sabiam dizer duas
palavras, mas não desdenhando os outros. O Padre Lopes que cultivava o Dante, e
era inimigo do Coelho, nunca o via desligar-se de uma pessoa que não declamasse
e emendasse este trecho:
La bocca sollevò dal fero pasto
Quel "seccatore"...
mas uns sabiam do ódio do padre, e outros
pensavam que isto era uma oração em latim.
CAPÍTULO VI - A REBELIÃO [21]
Cerca de trinta pessoas ligaram-se ao
barbeiro, redigiram e levaram uma representação à Câmara.
A Câmara recusou aceitá la, declarando que
a Casa Verde era uma instituição pública, e que a ciência não podia ser
emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua.
-- Voltai ao trabalho, concluiu o presidente,
é o conselho que vos damos.
A irritação dos agitadores foi enorme. O
barbeiro declarou que iam dali levantar a bandeira da rebelião e destruir a
Casa Verde; que Itaguaí não podia continuar a servir de cadáver aos estudos e
experiências de um déspota; que muitas pessoas estimáveis e algumas distintas,
outras humildes mas dignas de apreço, jaziam nos cubículos da Casa Verde; que o
despotismo científico do alienista complicava-se do espírito de ganância, visto
que os loucos ou supostos tais não eram tratados de graça: as famílias e em
falta delas a Câmara pagavam ao alienista...
-- É falso! interrompeu o presidente.
-- Falso?
-- Há cerca de duas semanas recebemos um
ofício do ilustre médico em que nos declara que, tratando de fazer experiências
de alto valor psicológico, desiste do estipêndio votado pela Câmara, bem como
nada receberá das famílias dos enfermos.
A notícia deste ato tão nobre, tão puro,
suspendeu um pouco a alma dos rebeldes. Seguramente o alienista podia estar em
erro, mas nenhum interesse alheio à ciência o instigava; e para demonstrar o
erro, era preciso alguma coisa mais do que arruaças e clamores. Isto disse o
presidente, com aplauso de toda a Câmara. O barbeiro, depois de alguns
instantes de concentração, declarou que estava investido de um mandato público
e não restituiria a paz a Itaguaí antes de ver por terra a Casa Verde-- "essa
Bastilha da razão humana"-- expressão que ouvira a um poeta local e
que ele repetiu com muita ênfase. Disse, e, a um sinal, todos saíram com ele.
Imagine-se a situação dos vereadores; urgia
obstar ao ajuntamento, à rebelião, à luta, ao sangue. Para acrescentar ao mal
um dos vereadores que apoiara o presidente ouvindo agora a denominação dada
pelo barbeiro à Casa Verde-- "Bastilha da razão humana"-- achou-a tão
elegante que mudou de parecer. Disse que entendia de bom aviso decretar alguma
medida que reduzisse a Casa Verde; e porque o presidente, indignado,
manifestasse em termos enérgicos o seu pasmo, o vereador fez esta reflexão:
--
Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos são
reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista? [22]
Sebastião Freitas, o vereador dissidente,
tinha o dom da palavra e falou ainda por algum tempo, com prudência mas com firmeza.
Os colegas estavam atônitos; o presidente pediu-lhe que, ao menos, desse o
exemplo da ordem e do respeito à lei, não aventasse as suas idéias na rua para
não dar corpo e alma à rebelião, que era por ora um turbilhão de átomos
dispersos. Esta figura corrigiu um pouco o efeito da outra: Sebastião Freitas
prometeu suspender qualquer ação, reservando-se o direito de pedir pelos meios
legais a redução da Casa Verde. E repetia consigo namorado:-- Bastilha da razão
humana!
Entretanto a arruaça crescia. Já não eram
trinta mas trezentas pessoas que acompanhavam o barbeiro, cuja alcunha familiar
deve ser mencionada, porque ela deu o nome à revolta; chamavam-lhe o Canjica--
e o movimento ficou célebre com o nome de revolta dos Canjicas. A ação podia ser restrita-- visto que muita
gente, ou por medo, ou por hábitos de educação, não descia à rua; mas o
sentimento era unânime, ou quase unânime, e os trezentos que caminhavam para a
Casa Verde,-- dada a diferença de Paris a Itaguaí,-- podiam ser comparados aos
que tomaram a Bastilha. [23]
D. Evarista teve noticia da rebelião antes
que ela chegasse; veio dar-lha uma de suas crias. Ela provava nessa ocasião um
vestido de seda,-- um dos trinta e sete que trouxera do Rio de Janeiro,-- e não
quis crer.
-- Há de ser alguma patuscada, dizia ela,
mudando a posição de um alfinete. Benedita, vê se a barra está boa.
-- Está, sinhá, respondia a mucama de
cócoras no chão, está boa. Sinhá vira um bocadinho. Assim. Está muito boa.
-- Não é patuscada, não, senhora; eles
estão gritando: -- Morra o Dr. Bacamarte!!! o tirano! dizia o moleque
assustado.
-- Cala a boca, tolo! Benedita, olha aí do
lado esquerdo; não parece que a costura está um pouco enviesada? A risca azul
não segue até abaixo; está muito feio assim; é preciso descoser para ficar
igualzinho e...
-- Morra o Dr. Bacamarte!!! morra o tirano!
uivaram fora trezentas vozes. Era a rebelião que desembocava na Rua Nova.
D. Evarista ficou sem pinga de sangue. No
primeiro instante não deu um passo, não fez um gesto; o terror petrificou-a. A
mucama correu instintivamente para a porta do fundo. Quanto ao moleque, a quem
D. Evarista não dera crédito, teve um instante de triunfo súbito,
imperceptível, entranhado, de satisfação moral, ao ver que a realidade vinha
jurar por ele.
-- Morra o alienista! bradavam as vozes
mais perto.
D. Evarista, se não resistia facilmente às
comoções de prazer, sabia entestar com os momentos de perigo. Não desmaiou;
correu à sala interior onde o marido estudava. Quando ela ali entrou,
precipitada, o ilustre médico escrutava um texto de Averróis;; os olhos dele,
empanados pela cogitação, subiam do livro ao reto e baixavam do reto ao livro,
cegos para a realidade exterior, videntes para os profundos trabalhos mentais.
D. Evarista chamou pelo marido duas vezes, sem que ele lhe desse atenção; à
terceira, ouviu e perguntou-lhe o que tinha, se estava doente.
-- Você não ouve estes gritos? perguntou a
digna esposa em lágrimas.
O alienista atendeu então; os gritos
aproximavam-se, terríveis, ameaçadores; ele compreendeu tudo. Levantou-se da
cadeira de espaldar em que estava sentado, fechou o livro, e, a passo firme e
tranqüilo, foi depositá lo na estante. Como a introdução do volume
desconsertasse um pouco a linha dos dois tomos contíguos, Simão Bacamarte cuidou
de corrigir esse defeito mínimo, e, aliás, interessante. Depois disse à mulher
que se recolhesse, que não fizesse nada.
-- Não, não, implorava a digna senhora,
quero morrer ao lado de você...
Simão Bacamarte teimou que não, que não era
caso de morte; e ainda que o fosse, intimava-lhe, em nome da vida, que ficasse.
A infeliz dama curvou a cabeça, obediente e chorosa.
-- Abaixo a Casa Verde! bradavam os
Canjicas.
O alienista caminhou para a varanda da
frente e chegou ali no momento em que a rebelião também chegava e parava,
defronte, com as suas trezentas cabeças rutilantes de civismo e sombrias de
desespero.-- Morra! morra! bradaram de todos os lados, apenas o vulto do
alienista assomou na varanda. Simão Bacamarte fez um sinal pedindo para falar;
os revoltosos cobriram-lhe a voz com brados de indignação. Então o barbeiro,
agitando o chapéu, a fim de impor silêncio à turba, conseguiu aquietar os
amigos, e declarou ao alienista que podia falar, mas acrescentou que não
abusasse da paciência do povo como fizera até então.
-- Direi pouco, ou até não direi nada, se
for preciso. Desejo saber primeiro o que pedis.
-- Não pedimos nada, replicou fremente o
barbeiro; ordenamos que a Casa Verde seja demolida, ou pelo menos despojada dos
infelizes que lá estão.
-- Não entendo.
-- Entendeis bem, tirano; queremos dar
liberdade às vítimas do vosso ódio, capricho, ganância...
O alienista sorriu, mas o sorriso desse
grande homem não era coisa visível aos olhos da multidão; era uma contração
leve de dois ou três músculos, nada mais. Sorriu e respondeu:
-- Meus
senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou
razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se
quereis emendar a administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas,
se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns
de vós em comissão dos outros a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não o
faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos nem a
rebeldes. [24]
Disse isto o alienista e a multidão ficou
atônita; era claro que não esperava tanta energia e menos ainda tamanha
serenidade. Mas o assombro cresceu de ponto quando o alienista, cortejando a
multidão com muita gravidade, deu-lhe as costas e retirou-se lentamente para
dentro. O barbeiro tornou logo a si e, agitando o chapéu, convidou os amigos à
demolição da Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi nesse
momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo;
pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde e derrocando a influência do
alienista, chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as demais autoridades e
constituir se senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por ver o
seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado
por não ter uma posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou
nunca. Demais, fora tão longe na arruaça que a derrota seria a prisão ou talvez
a forca ou o degredo. Infelizmente a resposta do alienista diminuíra o furor
dos sequazes. O barbeiro, logo que o percebeu, sentiu um impulso de indignação
e quis bradar-lhes:-- Canalhas! covardes! -- mas conteve-se e rompeu deste
modo:
Meus amigos, lutemos até o fim! A salvação
de Itaguaí está nas vossas mãos dignas e heróicas. Destruamos o cárcere de
vossos filhos e pais, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e amigos, e de
vós mesmos. Ou morrereis a pão e água, talvez a chicote, na masmorra daquele
indigno.
E a multidão agitou-se, murmurou, bradou,
ameaçou, congregou-se toda em derredor do barbeiro. Era a revolta que tornava a
si da ligeira síncope e ameaçava arrasar a Casa Verde.
-- Vamos! bradou Porfírio, agitando o
chapéu.
-- Vamos! repetiram todos.
Deteve os um incidente: era um corpo de
dragões que, a marche marche, entrava na Rua Nova.
CAPÍTULO VII - O INESPERADO [25]
Chegados os dragões em frente aos Canjicas
houve um instante de estupefação. Os Canjicas não queriam crer que a força
pública fosse mandada contra eles; mas o barbeiro compreendeu tudo e esperou.
Os dragões pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse; mas,
conquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou
fortemente o barbeiro, cuja resposta consistiu nestes termos alevantados:
-- Não nos dispersaremos. Se quereis os
nossos cadáveres, podeis tomá los; mas só os cadáveres; não levareis a nossa
honra, o nosso crédito, os nossos direitos, e com eles a salvação de Itaguaí.
Nada mais imprudente do que essa resposta
do barbeiro; e nada mais natural. Era a vertigem das grandes crises. Talvez
fosse também um excesso de confiança na abstenção das armas por parte dos
dragões; confiança que o capitão dissipou logo, mandando carregar sobre os
Canjicas. O momento foi indescritível. A multidão urrou furiosa; alguns,
trepando às janelas das casas ou correndo pela rua fora, conseguiram escapar;
mas a maioria ficou bufando de cólera, indignada, animada pela exortação do
barbeiro. A derrota dos Canjicas estava iminente quando um terço dos dragões,--
qualquer que fosse o motivo, as crônicas não o declaram,-- passou subitamente
para o lado da rebelião. Este inesperado reforço deu alma aos Canjicas, ao
mesmo tempo que lançou o desânimo às fileiras da legalidade. Os soldados fiéis
não tiveram coragem de atacar os seus próprios camaradas, e um a um foram
passando para eles, de modo que, ao cabo de alguns minutos, o aspecto das
coisas era totalmente outro. O capitão estava de um lado com alguma gente
contra uma massa compacta que o ameaçava de morte. Não teve remédio,
declarou-se vencido e entregou a espada ao barbeiro.
A revolução triunfante não perdeu um só
minuto; recolheu os feridos às casas próximas e guiou para a Câmara Povo e
tropa fraternizavam, davam vivas a el rei, ao vice rei, a Itaguaí, ao
"ilustre Porfírio". Este ia na frente, empunhando tão destramente a
espada, como se ela fosse apenas uma navalha um pouco mais comprida. A vitória
cingia-lhe a fronte de um nimbo misterioso. A dignidade de governo começava a
enrijar-lhe os quadris.
Os vereadores, às janelas, vendo a multidão
e a tropa, cuidaram que a tropa capturara a multidão, e sem mais exame,
entraram e votaram uma petição ao vice rei para que mandasse dar um mês de
soldo aos dragões, "cujo denodo salvou Itaguaí do abismo a que o tinha
lançado uma cáfila de rebeldes . Esta frase foi proposta por Sebastião Freitas,
o vereador dissidente cuja defesa dos Canjicas tanto escandalizara os colegas.
Mas bem depressa a ilusão se desfez. Os vivas ao barbeiro, os morras aos vereadores
e ao alienista vieram dar-lhes notícia da triste realidade. O presidente não
desanimou:-- Qualquer que seja a nossa sorte, disse ele, lembremo-nos que
estamos ao serviço de Sua Majestade e do povo.-- Sebastião insinuou que melhor
se poderia servir à coroa e à vila saindo pelos fundos e indo conferenciar com
o juiz de fora, mas toda a Câmara rejeitou esse alvitre.
Daí a nada o barbeiro, acompanhado de
alguns de seus tenentes, entrava na sala da vereança intimava à Câmara a sua
queda. A Câmara não resistiu, entregou-se e foi dali para a cadeia. Então os
amigos do barbeiro propuseram-lhe que assumisse o governo da vila em nome de
Sua Majestade. Porfírio aceitou o encargo, embora não desconhecesse
(acrescentou) os espinhos que trazia; disse mais que não podia dispensar o
concurso dos amigos presentes; ao que eles prontamente anuíram. O barbeiro veio
à janela e comunicou ao povo essas resoluções, que o povo ratificou, aclamando
o barbeiro. Este tomou a denominação de-- "Protetor da vila em nome de Sua
Majestade, e do povo".-- Expediram-se logo várias ordens importantes,
comunicações oficiais do novo governo, uma exposição minuciosa ao vice rei, com
muitos protestos de obediência às ordens de Sua Majestade; finalmente uma
proclamação ao povo, curta, mas enérgica:
ITAGUAIENSES!
Uma Câmara corrupta e violenta conspirava
contra os interesses de Sua Majestade e do povo. A opinião pública tinha a
condenado; um punhado de cidadãos, fortemente apoiados pelos bravos dragões de
Sua Majestade, acaba de a dissolver ignominiosamente, e por unânime consenso da
vila, foi-me confiado o mando supremo, até que Sua Majestade se sirva ordenar o
que parecer melhor ao seu real serviço. Itaguaienses! não vos peço senão que me
rodeeis de confiança, que me auxilieis em restaurar a paz e a fazenda pública,
tão desbaratada pela Câmara que ora findou às vossas mãos. Contai com o meu
sacrifício, e ficai certos de que a coroa será por nós.
O Protetor da vila em nome de Sua Majestade
e do povo
Porfírio Caetano das Neves.
Toda a gente advertiu no absoluto silêncio
desta proclamação acerca da Casa Verde; e, segundo uns, não podia haver mais
vivo indício dos projetos tenebrosos do barbeiro. O perigo era tanto maior
quanto que, no meio mesmo desses graves sucessos, o alienista metera na Casa
Verde umas sete ou oito pessoas, entre elas duas senhoras e sendo um dos homens
aparentado com o Protetor. Não era um repto, um ato intencional; mas todos o
interpretaram dessa maneira; e a vila respirou com a esperança de que o
alienista dentro de vinte e quatro horas estaria a ferros e destruído o
terrível cárcere.
O dia acabou alegremente. Enquanto o arauto
da matraca ia recitando de esquina em esquina a proclamação, o povo
espalhava-se nas ruas e jurava morrer em defesa do ilustre Porfírio Poucos gritos
contra a Casa Verde, prova de confiança na ação do governo. O barbeiro faz
expedir um ato declarando feriado aquele dia, e entabulou negociações com o
vigário para a celebração de um Te Deum, tão conveniente era aos olhos dele a
conjunção do poder temporal com o espiritual; mas o Padre Lopes recusou
abertamente o seu concurso.
-- Em todo caso, Vossa Reverendíssima não
se alistará entre os inimigos do governo? disse-lhe o barbeiro, dando à
fisionomia um aspecto tenebroso.
Ao que o Padre Lopes respondeu, sem
responder:
-- Como alistar-me, se o novo governo não
tem inimigos?
O barbeiro sorriu; era a pura verdade.
Salvo o capitão, os vereadores e os principais da vila, toda a gente o
aclamava. Os mesmos principais, se o não aclamavam, não tinham saído contra
ele. Nenhum dos almotacés deixou de vir receber as suas ordens. No geral, as
famílias abençoavam o nome daquele que ia enfim libertar Itaguaí da Casa Verde
e do terrível Simão Bacamarte.
CAPÍTULO VIII - AS ANGÚSTIAS DO BOTICÁRIO[26]
Vinte e quatro horas depois dos sucessos
narrados no capítulo anterior, o barbeiro saiu do palácio do governo,-- foi a
denominação dada à casa da Câmara,-- com dois ajudantes de ordens, e dirigiu-se
à residência de Simão Bacamarte. Não ignorava ele que era mais decoroso ao
governo mandá lo chamar; o receio, porém, de que o alienista não obedecesse,
obrigou-o a parecer tolerante e moderado.
Não descrevo o terror do boticário ao ouvir
dizer que o barbeiro ia à casa do alienista.-- Vai prendê lo, pensou ele. E redobraram-lhe
as angústias. Com efeito, a tortura moral do boticário naqueles dias de
revolução excede a toda a descrição possível. Nunca um homem se achou em mais
apertado lance: -- a privança do alienista chamava-o ao lado deste, a vitória
do barbeiro atraía-o ao barbeiro. Já a simples noticia da sublevação tinha-lhe
sacudido fortemente a alma, porque ele sabia a unanimidade do ódio ao
alienista; mas a vitória final foi também o golpe final. A esposa, senhora
máscula, amiga particular de D. Evarista, dizia que o lugar dele era ao lado de
Simão Bacamarte; ao passo que o coração lhe bradava que não, que a causa do
alienista estava perdida, e que ninguém,
por ato próprio, se amarra a um cadáver. Fê lo Catão, é verdade, sed victa
Catoni, pensava ele, relembrando algumas palestras habituais do Padre Lopes;
mas Catão não se atou a uma causa vencida, ele era a própria causa vencida, a
causa da república; o seu ato, portanto, foi de egoísta, de um miserável
egoísta; minha situação é outra. Insistindo, porém, a mulher, não achou Crispim
Soares outra saída em tal crise senão adoecer; declarou-se doente e meteu-se na
cama.
-- Lá vai o Porfírio à casa do Dr.
Bacamarte, disse-lhe a mulher no dia seguinte à cabeceira da cama; vai
acompanhado de gente.
-- Vai prendê lo, pensou o boticário.
Uma
idéia traz outra;
o boticário imaginou que, uma vez preso o alienista, viriam também buscá-lo a
ele na qualidade de cúmplice. Esta idéia foi o melhor dos vesicatórios. Crispim
Soares ergueu-se, disse que estava bom, que ia sair; e, apesar de todos os
esforços e protestos da consorte, vestiu-se e saiu. Os velhos cronistas são
unânimes em dizer que a certeza de que o marido ia colocar-se nobremente ao
lado do alienista consolou grandemente a esposa do boticário; e notam com muita
perspicácia o imenso poder moral de uma ilusão; porquanto, o boticário caminhou
resolutamente ao palácio do governo e não à casa do alienista. Ali chegando,
mostrou-se admirado de não ver o barbeiro, a quem ia apresentar os seus
protestos de adesão, não o tendo feito desde a véspera por enfermo. E tossia
com algum custo. Os altos funcionários que lhe ouviam esta declaração,
sabedores da intimidade do boticário com o alienista, compreenderam toda a
importância da adesão nova e trataram a Crispim Soares com apurado carinho;
afirmaram-lhe que o barbeiro não tardava; Sua Senhoria tinha ido à Casa Verde,
a negócio importante, mas não tardava. Deram-lhe cadeira, refrescos, elogios;
disseram-lhe que a causa do ilustre Porfírio era a de todos os patriotas; ao
que o boticário ia repetindo que sim, que nunca pensara outra coisa, que isso
mesmo mandaria declarar a Sua Majestade.
CAPÍTULO IX - DOIS LINDOS CASOS
Não se demorou o alienista em receber o
barbeiro; declarou-lhe que não tinha meios de resistir, e portanto estava
prestes a obedecer. Só uma coisa pedia, é que o não constrangesse a assistir
pessoalmente à destruição da Casa Verde.
--
Engana-se Vossa Senhoria, disse o barbeiro depois de alguma pausa, engana-se em
atribuir ao governo intenções vandálicas. Com razão ou sem ela, a opinião crê
que a maior parte dos doidos ali metidos estão em seu perfeito juízo, mas o
governo reconhece que a questão é puramente científica e não cogita em resolver
com posturas as questões científicas.. Demais, a Casa Verde é uma instituição
pública; tal a aceitamos das mãos da Câmara dissolvida. Há entretanto-- por
força que há de haver um alvitre intermédio que restitua o sossego ao espírito
público.
O alienista mal podia dissimular o
assombro; confessou que esperava outra coisa, o arrasamento do hospício, a
prisão dele, o desterro, tudo, menos...
-- O pasmo de Vossa Senhoria, atalhou
gravemente o barbeiro, vem de não atender à grave responsabilidade do governo.
O povo, tomado de uma cega piedade que lhe dá em tal caso legitima indignação,
pode exigir do governo certa ordem de atos; mas este, com a responsabilidade
que lhe incumbe, não os deve praticar, ao menos integralmente, e tal é a nossa
situação. A generosa revolução que ontem derrubou uma Câmara vilipendiada e
corrupta, pediu em altos brados o arrasamento da Casa Verde; mas pode entrar no
ânimo do governo eliminar a loucura? Não. E se o governo não a pode eliminar,
está ao menos apto para discriminá la, reconhecê la? Também não; é matéria de
ciência. Logo, em assunto tão melindroso, o governo não pode, não quer
dispensar o concurso de Vossa Senhoria. O que lhe pede é que de certa maneira
demos alguma satisfação ao povo. Unamo-nos,
e o povo saberá obedecer. Um dos alvitres aceitáveis, se Vossa Senhoria não
indicar outro, seria fazer retirar da Casa Verde aqueles enfermos que estiverem
quase curados e bem assim os maníacos de pouca monta, etc. Desse modo, sem
grande perigo, mostraremos alguma tolerância e benignidade.
-- Quantos mortos e feridos houve ontem no
conflito? perguntou Simão Bacamarte depois de uns três minutos.
O barbeiro ficou espantado da pergunta, mas
respondeu logo que onze mortos e vinte e cinco feridos.
-- Onze mortos e vinte e cinco feridos!
repetiu duas ou três vezes o alienista.
E em seguida declarou que o alvitre lhe não
parecia bom mas que ele ia catar algum outro, e dentro de poucos dias lhe daria
resposta. E fez-lhe várias perguntas acerca dos sucessos da véspera, ataque,
defesa, adesão dos dragões, resistência da Câmara etc., ao que o barbeiro ia
respondendo com grande abundância, insistindo principalmente no descrédito em
que a Câmara caíra. O barbeiro confessou que o novo governo não tinha ainda por
si a confiança dos principais da vila, mas o alienista podia fazer muito nesse
ponto. O governo, concluiu o barbeiro, folgaria se pudesse contar não já com a
simpatia senão com a benevolência do mais alto espírito de Itaguaí e
seguramente do reino. Mas nada disso alterava a nobre e austera fisionomia
daquele grande homem que ouvia calado, sem desvanecimento nem modéstia, mas
impassível como um deus de pedra.
-- Onze mortos e vinte e cinco feridos,
repetiu o alienista depois de acompanhar o barbeiro até a porta. Eis aí dois
lindos casos de doença cerebral. Os sintomas de duplicidade e descaramento deste
barbeiro são positivos. Quanto à toleima dos que o aclamaram, não é preciso
outra prova além dos onze mortos e vinte e cinco feridos.-- Dois lindos casos!
-- Viva o ilustre Porfírio! bradaram umas
trinta pessoas que aguardavam o barbeiro à porta.
O alienista espiou pela janela e ainda
ouviu este resto de uma pequena fala do barbeiro às trinta pessoas que o
aclamavam:
-- ...porque eu velo, podeis estar certos
disso, eu velo pela execução das vontades do povo. Confiai em mim; e tudo se
fará pela melhor maneira. Só vos recomendo ordem. E ordem, meus amigos, é a
base do governo...
-- Viva o ilustre Porfírio bradaram as
trinta vozes, agitando os chapéus.
-- Dois lindos casos! murmurou o alienista.
[27]
CAPÍTULO X - RESTAURAÇÃO
Dentro de cinco dias, o alienista meteu na
Casa Verde cerca de cinqüenta aclamadores do novo governo. O povo indignou-se.
O governo, atarantado, não sabia reagir. João Pina, outro barbeiro, dizia
abertamente nas ruas, que o Porfírio estava "vendido ao ouro de Simão
Bacamarte", frase que congregou em torno de João Pina a gente mais
resoluta da vila. Porfírio vendo o
antigo rival da navalha à testa da insurreição, compreendeu que a sua perda era
irremediável, se não desse um grande golpe; expediu dois decretos, um abolindo a
Casa Verde, outro desterrando o alienista. João Pina mostrou claramente com
grandes frases que o ato de Porfírio! era um simples aparato, um engodo, em que
o povo não devia crer. Duas horas depois caía Porfírio! ignominiosamente e João
Pina assumia a difícil tarefa do governo.[28]
Como achasse nas gavetas as minutas da proclamação, da exposição ao vice rei e
de outros atos inaugurais do governo anterior, deu-se pressa em os fazer copiar
e expedir; acrescentam os cronistas, e aliás subentende-se, que ele lhes mudou
os nomes, e onde o outro barbeiro falara de uma Câmara corrupta, falou este de
"um intruso eivado das más doutrinas francesas e contrário aos
sacrossantos interesses de Sua Majestade", etc.
Nisto entrou na vila uma força mandada pelo
vice rei e restabeleceu a ordem. O alienista exigiu desde logo a entrega do
barbeiro Porfírio e bem assim a de uns cinqüenta e tantos indivíduos que
declarou mentecaptos; e não só lhe deram esses como afiançaram entregar-lhe
mais dezenove sequazes do barbeiro, que convalesciam das feridas apanhadas na
primeira rebelião.
Este ponto da crise de Itaguaí marca também
o grau máximo da influência de Simão Bacamarte. Tudo quanto quis, deu-se-lhe; e
uma das mais vivas provas do poder do ilustre médico achamo la na prontidão com
que os vereadores, restituídos a seus lugares, consentiram em que Sebastião
Freitas também fosse recolhido ao hospício. O alienista, sabendo da
extraordinária inconsistência das opiniões desse vereador, entendeu que era um
caso patológico, e pediu-o. A mesma coisa aconteceu ao boticário. O alienista,
desde que lhe falaram da momentânea adesão de Crispim Soares à rebelião dos
Canjicas, comparou-a à aprovação que sempre recebera dele ainda na véspera, e
mandou capturá lo. Crispim Soares não negou o fato, mas explicou-o dizendo que
cedera a um movimento de terror ao ver a rebelião triunfante, e deu como prova
a ausência de nenhum outro aro seu, acrescentando que voltara logo à cama,
doente. Simão Bacamarte não o contrariou; disse, porém, aos circunstantes que o terror também é pai da loucura, e que o
caso de Crispim Soares lhe parecia dos mais caracterizados.
Mas a prova mais evidente da influência de
Simão Bacamarte foi a docilidade com que a Câmara lhe entregou o próprio
presidente. Este digno magistrado tinha declarado, em plena sessão, que não se
contentava, para lavá la da afronta dos Canjicas, com menos de trinta almudes
de sangue; palavra que chegou aos ouvidos do alienista por boca do secretário
da Câmara entusiasmado de tamanha energia. Simão Bacamarte começou por meter
osecretário na Casa Verde, e foi dali à Câmara à qual declarou que o presidente
estava padecendo da "demência dos touros", um gênero que ele
pretendia estudar, com grande vantagem para os povos. A Câmara a princípio
hesitou, mas acabou cedendo.
Daí em diante foi uma coleta desenfreada.
Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda
daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na
Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de
charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem
todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém
escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava
as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural e as
segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a
Casa Verde; daí a alegação de que não
havia regra para a completa sanidade mental[29].
Alguns cronistas crêem que Simão Bacamarte nem sempre procedia com lisura, e
citam em abono da afirmação (que não sei se pode ser aceita) o fato de ter
alcançado da Câmara uma postura autorizando o uso de um anel de prata no dedo
polegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental ou
tradicional, declarasse ter nas veias duas ou três onças de sangue godo. Dizem
esses cronistas que o fim secreto da insinuação à Câmara foi enriquecer um
ourives amigo e compadre dele; mas, conquanto seja certo que o ourives viu
prosperar o negócio depois da nova ordenação municipal, não o é menos que essa
postura deu à Casa Verde uma multidão de inquilinos; pelo que, não se pode
definir, sem temeridade, o verdadeiro fim do ilustre médico. Quanto à razão
determinativa da captura e aposentação na Casa Verde de todos quantos usaram do
anel, é um dos pontos mais obscuros da história de Itaguaí a opinião mais
verossímil é que eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à loa, nas
ruas, em casa, na igreja. Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito. Em
todo caso, é uma simples conjetura; de positivo, nada há.
-- Onde é que este homem vai parar? diziam
os principais da terra. Ah! se nós tivéssemos apoiado os Canjicas...
Um dia de manhã-- dia em que a Câmara devia
dar um grande baile,-- a vila inteira ficou abalada com a notícia de que a
própria esposa do alienista fora metida na Casa Verde. Ninguém acreditou; devia
ser invenção de algum gaiato. E não era: era a verdade pura. D. Evarista fora
recolhida às duas horas da noite. O Padre Lopes correu ao alienista e
interrogou-o discretamente acerca do fato.
-- Já há algum tempo que eu desconfiava,
disse gravemente o marido. A modéstia com que ela vivera em ambos os
matrimônios não podia conciliar-se com o furor das sedas, veludos, rendas e
pedras preciosas que manifestou logo que voltou do Rio de Janeiro. Desde então
comecei a observá-la. Suas conversas eram todas sobre esses objetos; se eu lhe falava das antigas cortes, inquiria logo da
forma dos vestidos das damas; se uma senhora a visitava na minha ausência,
antes de me dizer o objeto da visita, descrevia-me o trajo, aprovando umas
coisas e censurando outras. Um dia, creio que Vossa Reverendíssima há de
lembrar-se, propôs-se a fazer anualmente um vestido para a imagem de Nossa
Senhora da matriz. Tudo isto eram sintomas graves; esta noite, porém,
declarou-se a total demência. Tinha escolhido, preparado, enfeitado o vestuário
que levaria ao baile da Câmara Municipal; só hesitava entre um colar de granada
e outro de safira. Anteontem perguntou-me qual deles levaria; respondi-lhe que
um ou outro lhe ficava bem. Ontem repetiu a pergunta ao almoço; pouco depois de
jantar fui achá la calada e pensativa.-- Que tem? perguntei-lhe.-- Queria levar
o colar de granada, mas acho o de safira tão bonito!-- Pois leve o de safira.--
Ah! mas onde fica o de granada?-- Enfim, passou a tarde sem novidade. Ceamos, e
deitamo-nos. Alta noite, seria hora e meia, acordo e não a vejo; levanto-me,
vou ao quarto de vestir, acho-a diante dos dois colares, ensaiando os ao
espelho, ora um ora outro. Era evidente a demência: recolhi-a logo. [30]
O Padre Lopes não se satisfez com a
resposta, mas não objetou nada. O alienista, porém, percebeu e explicou-lhe que
o caso de D. Evarista era de "mania santuária", não incurável e em
todo caso digno de estudo.
-- Conto pô la boa dentro de seis semanas,
concluiu ele.
E a abnegação do ilustre médico deu-lhe
grande realce. Conjeturas, invenções, desconfianças, tudo caiu por terra desde
que ele não duvidou recolher à Casa Verde a própria mulher, a quem amava com
todas as forças da alma. Ninguém mais tinha o direito de resistir-lhe-- menos
ainda o de atribuir-lhe intuitos alheios à ciência.
Era um
grande homem austero, Hipócrates forrado de Catão. [31]
CAPÍTULO XI - O ASSOMBRO DE ITAGUAÍ [32]
E agora prepare-se o leitor para o mesmo
assombro em que ficou a vila ao saber um dia que os loucos da Casa Verde iam
todos ser postos na rua.
-- Todos?
-- Todos.
-- É impossível; alguns sim, mas todos...
-- Todos. Assim o disse ele no ofício que
mandou hoje de manhã à Câmara
De fato o alienista oficiara à Câmara
expondo: -- 1': que verificara das estatísticas da vila e da Casa Verde que
quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento; 2° que
esta deslocação de população levara-o a examinar os fundamentos da sua teoria
das moléstias cerebrais, teoria que excluía da razão todos os casos em que o
equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto; 3° que, desse exame e
do fato estatístico, resultara para ele a convicção de que a verdadeira
doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto, que se devia admitir como
normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas
todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto; 4º que à vista
disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e
agasalhar nela as pessoas que se achassem nas condições agora expostas; 5° que,
tratando de descobrir a verdade científica, não se pouparia a esforços de toda
a natureza, esperando da Câmara igual dedicação; 6º que restituía à Câmara e
aos particulares a soma do estipêndio recebido para alojamento dos supostos
loucos, descontada a parte efetivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o
que a Câmara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde.
O assombro de Itaguaí foi grande; não foi
menor a alegria dos parentes e amigos dos reclusos. Jantares, danças,
luminárias, músicas, tudo houve para celebrar tão fausto acontecimento. Não
descrevo as festas por não interessarem ao nosso propósito; mas foram
esplêndidas, tocantes e prolongadas.
E vão assim as coisas humanas! No meio do
regozijo produzido pelo ofício de Simão Bacamarte, ninguém advertia na frase
final do § 4º, uma frase cheia de experiências futuras.
CAPÍTULO XII - O FINAL DO § 4º [33]
Apagaram-se as luminárias,
reconstituíram-se as famílias, tudo parecia reposto nos antigos eixos. Reinava
a ordem, a Câmara exercia outra vez o governo sem nenhuma pressão externa; o
presidente e o vereador Freitas tornaram aos seus lugares. O barbeiro Porfírio,
ensinado pelos acontecimentos, tendo "provado tudo", como o poeta
disse de Napoleão, e mais alguma coisa, porque Napoleão não provou a Casa
Verde, o barbeiro achou preferível a glória obscura da navalha e da tesoura às
calam idades brilhantes do poder; foi, é certo, processado; mas a população da
vila implorou a clemência de Sua Majestade; daí o perdão. João Pina foi
absolvido, atendendo-se a que ele derrocara um rebelde. Os cronistas pensam que
deste fato é que nasceu o nosso adágio:-- ladrão que furta ladrão tem cem anos
de perdão;-- adágio imoral, é verdade, mas grandemente útil.
Não só findaram as queixas contra o
alienista, mas até nenhum ressentimento ficou dos atos que ele praticara;
acrescendo que os reclusos da Casa Verde, desde que ele os declarara plenamente
ajuizados, sentiram-se tomados de profundo reconhecimento e férvido entusiasmo.
Muitos entenderam que o alienista merecia uma especial manifestação e deram-lhe
um baile, ao qual se seguiram outros bailes e jantares. Dizem as crônicas que
D. Evarista a princípio tivera idéia de separar-se do consorte, mas a dor de
perder a companhia de tão grande homem venceu qualquer ressentimento de amor
próprio e o casal veio a ser ainda mais feliz do que antes.
Não menos íntima ficou a amizade do
alienista e do boticário. Este concluiu do ofício de Simão Bacamarte que a
prudência é a primeira das virtudes em tempos de revolução e apreciou muito a
magnanimidade do alienista, que ao dar-lhe a liberdade estendeu-lhe a mão de
amigo velho.
-- É um grande homem, disse ele à mulher,
referindo aquela circunstância.
Não é preciso falar do albardeiro, do
Costa, do Coelho, do Martim Brito e outros especialmente nomeados neste
escrito; basta dizer que puderam exercer livremente os seus hábitos anteriores.
O próprio Martim Brito, recluso por um discurso em que louvara enfaticamente D.
Evarista, fez agora outro em honra do insigne médico-- "cujo altíssimo
gênio, elevando as asas muito acima do sol, deixou abaixo de si todos os demais
espíritos da terra".
-- Agradeço as suas palavras, retorquiu-lhe
o alienista, e ainda me não arrependo de o haver restituído à liberdade.
Entretanto, a Câmara que respondera o
ofício de Simão Bacamarte com a ressalva de que oportunamente estatuiria em
relação ao final do § 4°, tratou enfim de legislar sobre ele. Foi adorada sem
debate uma postura, autorizando o alienista a agasalhar na Casa Verde as
pessoas que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais.
E porque a experiência da Câmara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ela a
cláusula de que a autorização era provisória, limitada a um ano, para o fim de
ser experimentada a nova teoria psicológica, podendo a Câmara antes mesmo
daquele prazo mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por
motivos de ordem pública. O vereador Freitas propôs também a declaração de que,
em nenhum caso, fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados:
cláusula que foi aceita, votada e incluída na postura apesar das reclamações do
vereador Galvão. O argumento principal deste magistrado é que a Câmara
legislando sobre uma experiência científica, não podia excluir as pessoas dos
seus membros das conseqüências da lei; a exceção era odiosa e ridícula. Mal
proferira estas duas palavras, romperam os vereadores em altos brados contra a
audácia e insensatez do colega; este, porem, ouviu os e limitou-se a dizer que
votava contra a exceção.
-- A vereança, concluiu ele, não nos dá
nenhum poder especial nem nos elimina do espírito humano.
Simão Bacamarte aceitou a postura com todas
as restrições. Quanto à exclusão dos vereadores, declarou que teria profundo
sentimento se fosse compelido a recolhê los à Casa Verde; a cláusula, porém,
era a melhor prova de que eles não padeciam do perfeito equilíbrio das
faculdades mentais. Não acontecia o mesmo ao vereador Galvão, cujo acerto na
objeção feita, e cuja moderação na resposta dada às invectivas dos colegas
mostravam da parte dele um cérebro bem organizado; pelo que rogava à Câmara que
lho entregasse. A Câmara sentindo-se ainda agravada pelo proceder do vereador
Galvão, estimou o pedido do alienista e votou unanimemente a entrega.
Compreende-se que, pela teoria nova, não
bastava um fato ou um dito para recolher alguém à Casa Verde; era preciso um
longo exame, um vasto inquérito do passado e do presente. O Padre Lopes, por
exemplo, só foi capturado trinta dias depois da postura, a mulher do boticário
quarenta dias. A reclusão desta senhora encheu o consorte de indignação.
Crispim Soares saiu de casa espumando de cólera e declarando às pessoas a quem
encontrava que ia arrancar as orelhas ao tirano. Um sujeito, adversário do
alienista, ouvindo na rua essa noticia, esqueceu os motivos de dissidência, e
correu à casa de Simão Bacamarte a participar-lhe o perigo que corria. Simão
Bacamarte mostrou-se grato ao procedimento do adversário, e poucos minutos lhe
bastaram para conhecer a retidão dos seus sentimentos, a boa fé, o respeito
humano, a generosidade; apertou-lhe muito as mãos, e recolheu o à Casa Verde.
-- Um caso destes é raro, disse ele à
mulher pasmada. Agora esperemos o nosso Crispim.
Crispim Soares entrou. A dor vencera a
raiva, o boticário não arrancou as orelhas ao alienista. Este consolou o seu
privado, assegurando-lhe que não era caso perdido; talvez a mulher tivesse
alguma lesão cerebral; ia examiná la com muita atenção; mas antes disso não
podia deixá la na rua. E, parecendo-lhe vantajoso reuni los, porque a astúcia e
velhacaria do marido poderiam de certo modo curar a beleza moral que ele
descobrira na esposa, disse Simão Bacamarte:
-- O senhor trabalhará durante o dia na
botica, mas almoçará e jantará com sua mulher, e cá passará as noites, e os
domingos e dias santos.
A proposta colocou o pobre boticário na
situação do asno de Buridan. Queria viver com a mulher, mas temia voltar à Casa
Verde; e nessa luta esteve algum tempo, até que D. Evarista o tirou da
dificuldade, prometendo que se incumbiria de ver a amiga e transmitiria os
recados de um para outro. Crispim Soares beijou-lhe as mãos agradecido. Este
último rasgo de egoísmo pusilânime pareceu sublime ao alienista.
Ao cabo de cinco meses estavam alojadas
umas dezoito pessoas; mas Simão Bacamarte não afrouxava; ia de rua em rua, de
casa em casa, espreitando, interrogando, estudando; e quando colhia um enfermo
levava-o com a mesma alegria com que outrora os arrebanhava às dúzias. Essa
mesma desproporção confirmava a teoria nova; achara-se enfim a verdadeira
patologia cerebral. Um dia conseguiu meter na Casa Verde o juiz de fora; mas
procedia com tanto escrúpulo que o não fez senão depois de estudar
minuciosamente todos os seus atos e interrogar os principais da vila. Mais de
uma vez esteve prestes a recolher pessoas perfeitamente desequilibradas; foi o
que se deu com um advogado, em quem reconheceu um tal conjunto de qualidades
morais e mentais que era perigoso deixá lo na rua. Mandou prendê lo; mas o
agente, desconfiado, pediu-lhe para fazer uma experiência; foi ter com um
compadre, demandado por um testamento falso, e deu-lhe de conselho que tomasse
por advogado o Salustiano; era o nome da pessoa em questão.
-- Então parece-lhe...?
-- Sem dúvida: vá, confesse tudo, a verdade
inteira, seja qual for, e confie-lhe a causa.
O homem foi ter com o advogado, confessou
ter falsificado o testamento e acabou pedindo que lhe tomasse a causa. Não se
negou o advogado; estudou os papéis, arrazoou longamente, e provou a todas as
luzes que o testamento era mais que verdadeiro. A inocência do réu foi
solenemente proclamada pelo juiz e a herança passou-lhe às mãos. O distinto
jurisconsulto deveu a esta experiência a liberdade.
Mas nada escapa a um espírito original e
penetrante. Simão Bacamarte, que desde algum tempo notava o zelo, a sagacidade,
a paciência, a moderação daquele agente, reconheceu a habilidade e o tino com
que ele levara a cabo uma experiência tão melindrosa e complicada, e determinou
recolhê lo imediatamente à Casa Verde; deu-lhe todavia um dos melhores
cubículos.
Os alienados foram alojados por classes.
Fez-se uma galeria de modestos; isto é, os loucos em quem predominava esta
perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de símplices,
outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes, outra de sinceros, etc.
Naturalmente as famílias e os amigos dos reclusos bradavam contra a teoria; e
alguns tentaram compelir a Câmara a cassar a licença. A Câmara porém, não
esquecera a linguagem do vereador Galvão, e, se cassasse a licença, vê lo ia na
rua e restituído ao lugar; pelo que, recusou. Simão Bacamarte oficiou aos
vereadores, não agradecendo, mas felicitando os por esse ato de vingança
pessoal.
Desenganados da legalidade, alguns
principais da vila recorreram secretamente ao barbeiro Porfírio e
afiançaram-lhe todo o apoio de gente, de dinheiro e influência na corte, se ele
se pusesse à testa de outro movimento contra a Câmara e o alienista. O barbeiro
respondeu-lhes que não; que a ambição o levara da primeira vez a transgredir as
leis, mas que ele se emendara, reconhecendo o erro próprio e a pouca consistência
da opinião dos seus mesmos sequazes; que a Câmara entendera autorizar a nova
experiência do alienista, por um ano: cumpria, ou esperar o fim do prazo, ou
requerer ao vice rei, caso a mesma Câmara rejeitasse o pedido. Jamais
aconselharia o emprego de um recurso que ele viu falhar em suas mãos e isso a
troco de mortes e ferimentos que seriam o seu eterno remorso.
-- O que é que me está dizendo? perguntou o
alienista quando um agente secreto lhe contou a conversação do barbeiro com os
principais da vila.
Dois dias depois o barbeiro era recolhido à
Casa Verde.-- Preso por ter cão, preso por não ter cão! exclamou o infeliz.
Chegou o fim do prazo, a Câmara autorizou
um prazo suplementar de seis meses para ensaio dos meios terapêuticos. O
desfecho deste episódio da crônica itaguaiense é de tal ordem e tão inesperado,
que merecia nada menos de dez capítulos de exposição; mas contento-me com um,
que será o remate da narrativa, e um dos mais belos exemplos de convicção
científica e abnegação humana.
CAPÍTULO XIII - PLUS ULTRA!
Era a vez da terapêutica. Simão Bacamarte,
ativo e sagaz em descobrir enfermos, excedeu-se ainda na diligência e penetração
com que principiou a tratá-los. Neste ponto todos os cronistas estão de pleno
acordo: o ilustre alienista faz curas pasmosas, que excitaram a mais viva
admiração em Itaguaí.
Com efeito, era difícil imaginar mais
racional sistema terapêutico. Estando os loucos divididos por classes, segundo
a perfeição moral que em cada um deles excedia às outras, Simão Bacamarte
cuidou em atacar de frente a qualidade predominante. Suponhamos um modesto. Ele
aplicava a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento oposto; e não ia logo
às doses máximas,-- graduava as, conforme o estado, a idade, o temperamento, a
posição social do enfermo. Às vezes bastava uma casaca, uma fita, uma
cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao alienado; em outros casos a
moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às
distinções honoríficas, etc. Houve um doente poeta que resistiu a tudo. Simão
Bacamarte começava a desesperar da cura, quando teve a idéia de mandar correr
matraca para o fim de o apregoar como um rival de Garção e de Píndaro.
-- Foi um santo remédio, contava a mãe do
infeliz a uma comadre; foi um santo remédio.
Outro doente, também modesto, opôs a mesma
rebeldia à medicação; mas, não sendo escritor (mal sabia assinar o nome), não
se lhe podia aplicar o remédio da matraca. Simão Bacamarte lembrou-se de pedir
para ele o lugar de secretário da Academia dos Encobertos, estabelecida em
Itaguaí. Os lugares de presidente e secretários eram de nomeação régia, por
especial graça do finado Rei Dom João V, e implicavam o tratamento de
Excelência e o uso de uma placa de ouro no chapéu. O governo de Lisboa recusou
o diploma; mas, representando o alienista que o não pedia como prêmio
honorífico ou distinção legitima, e somente como um meio terapêutico para um
caso difícil, o governo cedeu excepcionalmente à súplica; e ainda assim não o
faz sem extraordinário esforço do ministro da marinha e ultramar, que vinha a
ser primo do alienado. Foi outro santo remédio.
-- Realmente, é admirável! Dizia-se nas
ruas, ao ver a expressão sadia e enfunada dos dois ex dementes.
Tal era o sistema. Imagina-se o resto. Cada
beleza moral ou mental era atacada no ponto em que a perfeição parecia mais
sólida; e o efeito era certo. Nem sempre era certo. Casos houve em que a
qualidade predominante resistia a tudo; então o alienista atacava outra parte,
aplicando à terapêutica o método da estratégia militar, que toma uma fortaleza
por um ponto, se por outro o não pode conseguir.
No fim de cinco meses e meio estava vazia a
Casa Verde; todos curados! O vereador Galvão, tão cruelmente afligido de
moderação e eqüidade, teve a felicidade de perder um tio; digo felicidade,
porque o tio deixou um testamento ambíguo, e ele obteve uma boa interpretação
corrompendo os juízes e embaçando os outros herdeiros. A sinceridade do
alienista manifestou-se nesse lance; confessou ingenuamente que não teve parte
na cura: foi a simples vis medicatrix da natureza. Não aconteceu o mesmo com o
Padre Lopes. Sabendo o alienista que ele ignorava perfeitamente o hebraico e o
grego, incumbiu-o de fazer uma análise crítica da versão dos Setenta; o padre
aceitou a incumbência, e em boa hora o fez; ao cabo de dois meses possuía um
livro e a liberdade. Quanto à senhora do boticário, não ficou muito tempo na
célula que lhe coube, e onde aliás lhe não faltaram carinhos.
-- Por que é que o Crispim não vem
visitar-me: dizia ela todos os dias.
Respondiam-lhe ora uma coisa, ora outra;
afinal disseram-lhe a verdade inteira. A digna matrona não pôde conter a
indignação e a vergonha. Nas explosões da cólera escaparam-lhe expressões
soltas e vagas, como estas:
-- Tratante!... velhaco!... ingrato!... Um
patife que tem feito casas à custa de ungüentos falsificados e podres... Ah!
tratante!...
Simão Bacamarte advertiu que, ainda quando
não fosse verdadeira a acusação contida nestas palavras, bastavam elas para
mostrar que a excelente senhora estava enfim restituída ao perfeito
desequilíbrio das faculdades; e prontamente lhe deu alta.
Agora, se imaginais que o alienista ficou
radiante ao ver sair o último hóspede da Casa Verde, mostrais com isso que
ainda não conheceis o nosso homem. Plus ultra! era a sua divisa. Não lhe
bastava ter descoberto a teoria verdadeira da loucura; não o contentava ter
estabelecido em Itaguaí o reinado da razão. Plus ultra! Não ficou alegre, ficou
preocupado, cogitativo; alguma coisa lhe dizia que a teoria nova tinha, em si
mesma, outra e novíssima teoria.
-- Vejamos, pensava ele; vejamos se chego
enfim à última verdade.
Dizia isto, passeando ao longo da vasta
sala, onde fulgurava a mais rica biblioteca dos domínios ultramarinos de Sua
Majestade. Um amplo chambre de damasco, preso à cintura por um cordão de seda,
com borlas de ouro (presente de uma universidade) envolvia o corpo majestoso e
austero do ilustre alienista. A cabeleira cobria-lhe uma extensa e nobre calva
adquirida nas cogitações cotidianas da ciência. Os pés, não delgados e
femininos, não graúdos e mariolas, mas proporcionados ao vulto, eram
resguardados por um par de sapatos cujas fivelas não passavam de simples e
modesto latão. Vede a diferença:-- só se lhe notava luxo naquilo que era de origem
científica; o que propriamente vinha dele trazia a cor da moderação e da
singeleza, virtudes tão ajustadas à pessoa de um sábio.
Era assim que ele ia, o grande alienista,
de um cabo a outro da vasta biblioteca, metido em si mesmo, estranho a todas as
coisas que não fosse o tenebroso problema da patologia cerebral. Súbito, parou.
Em pé, diante de uma janela, com o cotovelo esquerdo apoiado na mão direita,
aberta, e o queixo na mão esquerda, fechada, perguntou ele a si:
-- Mas
deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim,-- ou o que pareceu cura
não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?
E cavando por aí abaixo, eis o resultado a
que chegou: os cérebros bem organizados que ele acabava de curar, eram
desequilibrados como os outros. Sim, dizia ele consigo, eu não posso ter a
pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova; uma e
outra coisa existiam no estado latente, mas existiam.
Chegado a esta conclusão, o ilustre
alienista teve duas sensações contrárias, uma de gozo, outra de abatimento. A
de gozo foi por ver que, ao cabo de longas e pacientes investigações,
constantes trabalhos, luta ingente com o povo, podia afirmar esta verdade:--
não havia loucos em Itaguaí. Itaguaí não possuía um só mentecapto. Mas tão
depressa esta idéia lhe refrescara a alma, outra apareceu que neutralizou o
primeiro efeito; foi a idéia da dúvida. Pois quê! Itaguaí. não possuiria um único cérebro concertado? Esta conclusão tão
absoluta, não seria por isso mesmo errônea, e não vinha, portanto, destruir o
largo e majestoso edifício da nova doutrina psicológica?
A aflição do egrégio Simão Bacamarte é
definida pelos cronistas itaguaienses como uma das mais medonhas tempestades
morais que têm desabado sobre o homem. Mas as tempestades só aterram os fracos;
os fortes enrijam-se contra elas e fitam o trovão. Vinte minutos depois
alumiou-se a fisionomia do alienista de uma suave claridade.
-- Sim, há de ser isso, pensou ele.
Isso é
isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio
mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a
perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as
qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo,
e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu
convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi
afirmativa.
-- Nenhum defeito?
-- Nenhum, disse em coro a assembléia.
-- Nenhum vício?
-- Nada.
-- Tudo perfeito?
-- Tudo.
-- Não, impossível, bradou o alienista.
Digo que não sinto em mim essa superioridade que acabo de ver definir com tanta
magnificência. A simpatia é que vos faz falar. Estudo-me e nada acho que
justifique os excessos da vossa bondade.
A assembléia insistiu; o alienista
resistiu; finalmente o Padre Lopes. explicou tudo com este conceito digno de um
observador:
-- Sabe a razão por que não vê as suas
elevadas qualidades, que aliás todos nós admiramos? É porque tem ainda uma
qualidade que realça as outras:-- a modéstia.
Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a
cabeça juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato
continuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram
que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem
sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.
-- A
questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro
exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática. [34]
-- Simão! Simão! meu amor! dizia-lhe a
esposa com o rosto lavado em lágrimas.
Mas o
ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos
à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde,
entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu
dali a dezessete meses no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar
nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco além
dele em Itaguaí mas esta opinião fundada em um boato que correu desde que o
alienista expirou, não tem outra prova senão o boato; e boato duvidoso, pois é
atribuído ao Padre Lopes. que com tanto fogo realçara as qualidades do grande
homem. Seja como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade. [35]
Teoria
do Medalhão[36]
- Estás com sono?
- Não, senhor.
- Nem eu; conversemos um pouco. Abre a
janela. Que horas são?
- Onze.
- Saiu o último conviva do nosso modesto
jantar. Com que, meu peralta, chegaste aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas
tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros...
- Papai...
- Não
te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela
porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um
diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura,
na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras
diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba
do nosso destino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram tudo
aos vinte e um anos. Mas qualquer que
seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre,
ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum.[37]
A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados
inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de
outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas
integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.
- Sim, senhor.
- Entretanto, assim como é de boa economia
guardar um pão para a velhice, assim
também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os
outros falhem,[38] ou não
indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. É isto o que te aconselho
hoje, dia da tua maioridade.
- Creia que lhe agradeço; mas que ofício,
não me dirá?
- Nenhum
me parece mais útil e cabido que o de medalhão[39].
Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções
de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das
esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e
entende. És moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da
idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que aos quarenta e cinco anos
possas entrar francamente no regime do aprumo e do compasso. O sábio que disse:
"a gravidade é um mistério do corpo", definiu a compostura do
medalhão. Não confundas essa gravidade com aquela outra que, embora resida no
aspecto, é um puro reflexo ou emanação do espírito; essa é do corpo,
tão-somente do corpo, um sinal da natureza ou um jeito da vida. Quanto à idade
de quarenta e cinco anos...
- É verdade, por que quarenta e cinco anos?
- Não é, como podes supor, um limite
arbitrário, filho do puro capricho; é a data normal do fenômeno. Geralmente, o verdadeiro medalhão começa a
manifestar-se entre os quarenta e cinco e cinqüenta anos, conquanto alguns
exemplos se dêem entre os cinqüenta e cinco e os sessenta; mas estes são raros.
Há-os também de quarenta anos, e outros mais precoces, de trinta e cinco e de
trinta; não são, todavia, vulgares. Não falo dos de vinte e cinco anos: esse madrugar é privilégio do gênio. [40]
- Entendo.
- Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo
o cuidado nas idéias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor
será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por
exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de
artifício, dissimular o defeito aos olhos da platéia; mas era muito melhor
dispor dos dois. O mesmo se dá com as idéias; pode-se, com violência,
abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão
constante esforço conviria ao exercício da vida.
- Mas quem lhe diz que eu...
- Tu, meu filho, se me não engano, pareces
dotado da perfeita inópia mental[41],
conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que
repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse
fato, posto indique certa carência de idéias, ainda assim pode não passar de
uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que
usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um
colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí
um sintoma eloqüente, eis aí uma esperança, No entanto, podendo acontecer que,
com a idade, venhas a ser afligido de algumas idéias próprias, urge aparelhar
fortemente o espírito. As idéias são de
sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofreemos, elas irrompem e
precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente
delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.
- Creio que assim seja; mas um tal
obstáculo é invencível.
- Não é; há um meio; é lançar mão de um
regime debilitante, ler compêndios de
retórica, ouvir certos discursos, etc. O voltarete, o dominó e o whist são
remédios aprovados. O whist tem até a rara vantagem de acostumar ao silêncio,
que é a forma mais acentuada da circunspecção. Não digo o mesmo da natação, da
equitação e da ginástica, embora elas façam repousar o cérebro; mas por isso
mesmo que o fazem repousar, restituem-lhe as forças e a atividade perdidas. O
bilhar é excelente. [42]
- Como assim, se também é um exercício
corporal?
- Não digo que não, mas há coisas em que a
observação desmente a teoria. Se te aconselho excepcionalmente o bilhar é
porque as estatísticas mais escrupulosas mostram que três quartas partes dos
habituados do taco partilham as opiniões do mesmo taco. O passeio nas ruas,
mormente nas de recreio e parada, é utilíssimo, com a condição de não andares
desacompanhado, porque a solidão é
oficina de idéias, e o espírito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão,
pode adquirir uma tal ou qual atividade.
- Mas se eu não tiver à mão um amigo apto e
disposto a ir comigo?
- Não faz mal; tens o valente recurso de
mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do
lugar, ou por qualquer outra, razão que me escapa, não são propícias ao nosso
fim[43];
e, não obstante, há grande conveniência em entrar por elas, de quando em
quando, não digo às ocultas, mas às escâncaras. Podes resolver a dificuldade de
um modo simples: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, de um
contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer coisa, quando não
prefiras interrogar diretamente os leitores habituais das belas crônicas de
Mazade; 75 por cento desses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão as mesmas
opiniões, e uma tal monotonia é grandemente saudável. Com este regime, durante oito,
dez, dezoito meses - suponhamos dois anos, - reduzes o intelecto, por mais
pródigo que seja, à sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum. Não trato do
vocabulário, porque ele está subentendido no uso das idéias; há de ser
naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de
clarim...
- Isto é o diabo! Não poder adornar o
estilo, de quando em quando...
- Podes; podes empregar umas quantas
figuras expressivas, a hidra de Lerna, por exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel
das Danaides, as asas de Ícaro, e outras, que românticos, clássicos e realistas
empregam sem desar, quando precisam delas.
Sentenças
latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de
bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou
de agradecimento. Caveant consules é um excelente fecho de artigo político; o
mesmo direi do Si vis pacem para bellum. Alguns costumam renovar o sabor de uma
citação intercalando-a numa frase nova, original e bela, mas não te aconselho
esse artifício: seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo
isso, porém, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as
locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na
memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os
outros a um esforço inútil. Não as relaciono agora, mas fá-lo-ei por escrito.
De resto, o mesmo ofício te irá ensinando os elementos dessa arte difícil de
pensar o pensado. Quanto à utilidade de um tal sistema, basta figurar uma
hipótese. Faz-se uma lei, executa-se, não produz efeito, subsiste o mal. Eis aí
uma questão que pode aguçar as curiosidades vadias, dar ensejo a um inquérito
pedantesco, a uma coleta fastidiosa de documentos e observações, análise das
causas prováveis, causas certas, causas possíveis, um estudo infinito das
aptidões do sujeito reformado, da natureza do mal, da manipulação do remédio,
das circunstâncias da aplicação; matéria, enfim, para todo um andaime de
palavras, conceitos, e desvarios. Tu poupas aos teus semelhantes todo esse
imenso aranzel, tu dizes simplesmente: Antes das leis, reformemos os costumes!
- E esta frase sintética, transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum,
resolve mais depressa o problema, entra pelos espíritos como um jorro súbito de
sol. [44]
- Vejo por aí que vosmecê condena toda e
qualquer aplicação de processos modernos.
- Entendamo-nos. Condeno a aplicação, louvo
a denominação. O mesmo direi de toda a recente terminologia científica; deves
decorá-la. Conquanto o rasgo peculiar do medalhão seja uma certa atitude de
deus Término, e as ciências sejam obra do movimento humano, como tens de ser
medalhão mais tarde, convém tomar as armas do teu tempo. E de duas uma: - ou
elas estarão usadas e divulgadas daqui a trinta anos, ou conservar-se-ão novas;
no primeiro caso, pertencem-te de foro próprio; no segundo, podes ter a
coquetice de as trazer, para mostrar que também és pintor. De outiva, com o
tempo, irás sabendo a que leis, casos e fenômenos responde toda essa
terminologia; porque o método de interrogar os próprios mestres e oficiais da
ciência, nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz
o perigo de inocular idéias novas, e é radicalmente falso. Acresce que no dia
em que viesses a assenhorear-te do espírito daquelas leis e fórmulas, serias
provavelmente levado a empregá-las com um tal ou qual comedimento, como a
costureira esperta e afreguesada, - que, segundo um poeta clássico,
Quanto mais pano tem, mais poupa o corte, Menos monte alardeia de retalhos;
e este fenômeno, tratando-se de um
medalhão, é que não seria científico.
- Upa! que a profissão é difícil!
- E ainda não chegamos ao cabo.
- Vamos a ele.
- Não
te falei ainda dos benefícios da publicidade[45]. A
publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de
pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a
constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Que D. Quixote solicite
os favores dela mediante, ações heróicas ou custosas, é um sestro próprio desse
ilustre lunático. O verdadeiro medalhão
tem outra política. Longe de inventar um Tratado científico da criação dos
carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja
notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra;
cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo. Comissões ou
deputações para felicitar um agraciado, um benemérito, um forasteiro, têm
singulares merecimentos, e assim as irmandades e associações diversas, sejam
mitológicas, cinegéticas ou coreográficas. Os sucessos de certa ordem, embora
de pouca monta, podem ser trazidos a lume, contanto que ponham em relevo a tua
pessoa. Explico-me. Se caíres de um carro, sem outro dano, além do susto, é
útil mandá-lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em si, que é
insignificante, mas pelo efeito de recordar um nome caro às afeições gerais.
Percebeste?
- Percebi.
- Essa é
publicidade constante, barata, fácil, de todos os dias; mas há outra. Qualquer que seja a teoria das artes, é
fora de dúvida que o sentimento da família, a amizade pessoal e a estima
pública instigam à reprodução das feições de um homem amado ou benemérito.
Nada obsta a que sejas objeto de uma tal distinção, principalmente se a
sagacidade dos amigos não achar em ti repugnância. Em semelhante caso, não só
as regras da mais vulgar polidez mandam aceitar o retrato ou o busto, como
seria desazado impedir que os amigos o expusessem em qualquer casa pública.
Dessa maneira o nome fica ligado à pessoa; os que houverem lido o teu recente
discurso (suponhamos) na sessão inaugural da União dos Cabeleireiros,
reconhecerão na compostura das feições o autor dessa obra grave, em que a
"alavanca do progresso" e o "suor do trabalho" vencem as
"fauces hiantes" da miséria. No caso de que uma comissão te leve a
casa o retrato, deves agradecer-lhe o obséquio com um discurso cheio de
gratidão e um copo d'água: é uso antigo, razoável e honesto. Convidarás então
os melhores amigos, os parentes, e, se for possível, uma ou duas pessoas de
representação. Mais. Se esse dia é um dia de glória ou regozijo, não vejo que
possas, decentemente, recusar um lugar à mesa aos reporters dos jornais. Em
todo o caso, se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podes
ajudá-los de certa maneira, redigindo tu mesmo a notícia da festa; e, dado que
por um tal ou qual escrúpulo, aliás desculpável, não queiras com a própria mão
anexar ao teu nome os qualificativos dignos dele, incumbe a notícia a algum amigo
ou parente.
- Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não
é nada fácil.
- Nem eu te digo outra coisa. É difícil,
come tempo, muito tempo, leva anos, paciência, trabalho, e felizes os que
chegam a entrar na terra prometida! Os que lá não penetram, engole-os a
obscuridade. Mas os que triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Verás cair as
muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que
estás fixado. Começa nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura
obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões,
irmandades; elas virão ter contigo, com o seu ar pesadão e cru de substantivos
desadjetivados, e tu serás o adjetivo dessas orações opacas, o odorífero das
flores, o anilado dos céus, o prestimoso dos cidadãos, o noticioso e suculento
dos relatórios. E ser isso é o principal, porque o adjetivo é a alma do idioma,
a sua porção idealista e metafísica. O substantivo é a realidade nua e crua, é
o naturalismo do vocabulário.
- E parece-lhe que todo esse ofício é
apenas um sobressalente para os deficits da vida?
- Decerto; não fica excluída nenhuma outra
atividade.
- Nem política?
- Nem política. Toda a questão é não
infringir as regras e obrigações capitais. Podes pertencer a qualquer partido,
liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de
não ligar nenhuma idéia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhe somente a
utilidade do scibboleth bíblico.
- Se for ao parlamento, posso ocupar a
tribuna?
- Podes e deves; é um modo de convocar a
atenção pública. Quanto à matéria dos discursos, tens à escolha: - ou os
negócios miúdos, ou a metafísica política, mas prefere a metafísica. Os
negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de bom-tom,
própria de um medalhão acabado; mas, se puderes, adota a metafísica; - é mais
fácil e mais atraente.
Supõe que desejas saber por que motivo a 7ª
companhia de infantaria foi transferida de Uruguaiana para Canguçu; serás
ouvido tão-somente pelo ministro da guerra, que te explicará em dez minutos as
razões desse ato. Não assim a metafísica. Um discurso de metafísica política
apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas.
E depois não obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos
tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da
memória. Em todo caso, não transcendas nunca os limites de uma invejável
vulgaridade.
- Farei o que puder. Nenhuma imaginação?
- Nenhuma; antes faze correr o boato de que
um tal dom é ínfimo.
- Nenhuma filosofia?
-
Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada. "Filosofia
da história", por exemplo, é uma locução que deves empregar com
freqüência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já
achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade,
etc., etc.
- Também ao riso?
- Como ao riso?
- Ficar sério, muito sério...
- Conforme. Tens um gênio folgazão,
prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem eliminá-lo; podes brincar e rir alguma
vez. Medalhão não quer dizer melancólico. Um grave pode ter seus momentos de
expansão alegre. Somente, - e este ponto é melindroso...
- Diga...
- Somente não deves empregar a ironia, esse
movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da
decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição
própria dos cépticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa
chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete
pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e
arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça. Que é isto?
- Meia-noite.
-
Meia-noite? Entras nos teus vinte e dois anos, meu peralta; estás
definitivamente maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse,
meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de
Machiavelli[46].
Vamos dormir.
A chinela Turca
Vede o bacharel Duarte. Acaba de compor o
mais teso e correto laço de gravata que apareceu naquele ano de 1850, e
anunciam-lhe a visita do major Lopo Alves. Notai que é de noite, e passa de
nove horas. Duarte estremeceu, e tinha duas razões para isso. A primeira era
ser o major, em qualquer ocasião, um dos mais enfadonhos sujeitos do tempo. A
segunda é que ele preparava-se justamente para ir ver, em um baile, os mais
finos cabelos loiros e os mais pensativos olhos azuis que este nosso clima, tão
avaro deles, produzira. Datava de uma semana aquele namoro. Seu coração deixando-se
prender entre duas valsas, confiou aos olhos, que eram castanhos, uma
declaração em regra, que eles pontualmente transmitiram à moça, dez minutos
antes da ceia, recebendo favorável resposta logo depois do chocolate. Três dias
depois, estava a caminho a primeira carta, e pelo jeito que levavam as coisas
não era de admirar que, antes do fim do ano, estivessem ambos a caminho da
igreja. Nestas circunstâncias, a chegada de Lopo Alves era uma verdadeira
calamidade. Velho amigo da família, companheiro de seu finado pai no exército,
tinha jus o major a todos os respeitos. Impossível despedi-lo ou tratá-lo com
frieza. Havia felizmente uma circunstância atenuante; o major era aparentado
com Cecília, a moça dos olhos azuis; em caso de necessidade, era um voto seguro.
Duarte enfiou um chambre e dirigiu-se para
a sala, onde Lopo Alves, com um rolo debaixo do braço e os olhos fitos no ar,
parecia totalmente alheio à chegada do bacharel.
- Que bom vento o trouxe a Catumbi a
semelhante hora? perguntou Duarte, dando à voz uma expressão de prazer,
aconselhada não menos pelo interesse que pelo bom-tom.
- Não sei se o vento que me trouxe é bom ou
mau, respondeu o major sorrindo por baixo do espesso bigode grisalho; sei que
foi um vento rijo. Vai sair?
- Vou ao Rio Comprido.
- Já sei; vai à casa da viúva Meneses.
Minha mulher e as pequenas já lá devem estar: eu irei mais tarde, se puder.
Creio que é cedo, não?
Lopo Alves tirou o relógio e viu que eram
nove horas e meia. Passou a mão pelo bigode, levantou-se, deu alguns passos na
sala, tornou a sentar-se e disse:
- Dou-lhe uma notícia, que certamente não
espera. Saiba que fiz... fiz um drama.
- Um drama! exclamou o bacharel.
- Que quer? Desde criança padeci destes
achaques literários. O serviço militar não foi remédio que me curasse, foi um
paliativo. A doença regressou com a força dos primeiros tempos. Já agora não há
mais remédio senão deixá-la, e ir simplesmente ajudando a natureza.
Duarte recordou-se de que efetivamente o
major falava noutro tempo de alguns discursos inaugurais, duas ou três nênias e
boa soma de artigos que escrevera acerca das campanhas do Rio da Prata. Havia
porém muitos anos que Lopo Alves deixara em paz os generais platinos e os
defuntos; nada fazia supor que a moléstia volvesse, sobretudo caracterizada por
um drama. Esta circunstância
explicá-la-ia o bacharel, se soubesse que Lopo Alves algumas semanas antes,
assistira à representação de uma peça do gênero ultra-romântico, obra que lhe
agradou muito e lhe sugeriu a idéia de afrontar as luzes do tablado. Não entrou
o major nestas minuciosidades necessárias, e o bacharel ficou sem conhecer o
motivo da explosão dramática do militar. Nem o soube, nem curou disso.[47]
Encareceu muito as faculdades mentais do major, manifestou calorosamente a
ambição que nutria de o ver sair triunfante naquela estréia, prometeu que o
recomendaria a alguns amigos que tinha no Correio Mercantil, e só estacou e
empalideceu quando viu o major, trêmulo de bem-aventurança, abrir o rolo que
trazia consigo.
- Agradeço-lhe as suas boas intenções,
disse Lopo Alves, e aceito o obséquio que me promete; antes dele, porém, desejo
outro. Sei que é inteligente e lido; há de me dizer francamente o que pensa
deste trabalho. Não lhe peço elogios, exijo franqueza e franqueza rude. Se
achar que não é bom, diga-o sem rebuço.
Duarte procurou desviar aquele cálice de
amargura; mas era difícil pedi-lo, e impossível alcançá-lo. Consultou
melancolicamente o relógio, que marcava nove horas e cinqüenta e cinco minutos,
enquanto o major folheava paternalmente as cento e oitenta folhas do
manuscrito.
- Isto vai depressa, disse Lopo Alves; eu
sei o que são rapazes e o que são bailes. Descanse que ainda hoje dançará duas
ou
três valsas com ela, se a tem, ou com elas.
Não acha melhor irmos para o seu gabinete?
Era indiferente, para o bacharel, o lugar
do suplício; acedeu ao desejo do hóspede. Este, com a liberdade que lhe davam
as
relações, disse ao moleque que não deixasse
entrar ninguém. O algoz não queria testemunhas. A porta do gabinete fechou-se;
Lopo Alves tomou lugar ao pé da mesa, tendo
em frente o bacharel, que mergulhou o corpo e o desespero numa vasta poltrona
de marroquim, resoluto a não dizer palavra para ir mais depressa ao termo.
O drama dividia-se em sete quadros.[48] Esta indicação produziu um calafrio no
ouvinte. Nada havia de novo naquelas cento e oitenta páginas, senão a letra do
autor. O mais eram os lances, os caracteres, as ficelles, e até o estilo
dos mais acabados tipos do romantismo desgrenhado. Lopo Alves cuidava pôr por
obra uma invenção, quando não fazia mais do que alinhavar as suas
reminiscências. Noutra ocasião, a obra seria um bom passatempo. Havia logo no
primeiro quadro, espécie de prólogo, uma criança roubada à família, um
envenenamento, dois embuçados, a ponta de um punhal e quantidade de adjetivos
não menos afiados que o punhal. No segundo quadro dava-se conta da morte de um
dos embuçados, que devia ressuscitar no terceiro, para ser preso no quinto, e
matar o tirano do sétimo. Além da morte aparente do embuçado, havia no segundo
quadro o rapto da menina, já então moça de dezessete anos, um monólogo que
parecia durar igual prazo, e o roubo de um testamento.
Eram quase onze horas quando acabou a
leitura deste segundo quadro. Duarte mal podia conter a cólera; era já impossível
ir ao Rio Comprido. Não é fora de propósito conjeturar que, se o major
expirasse naquele momento, Duarte agradecia a morte como um benefício da
Providência. Os sentimentos do bacharel não faziam crer tamanha ferocidade; mas a leitura de um mau livro é capaz de
produzir fenômenos ainda mais espantosos. Acresce que, enquanto aos olhos
carnais do bacharel aparecia em toda a sua espessura a grenha de Lopo Alves,
fugiam-lhe ao espírito os fios de ouro que ornavam a formosa cabeça de Cecília;
via-a com os olhos azuis, a tez branca e rosada, o gesto delicado e gracioso,
dominando todas as demais damas que deviam estar no salão da viúva Meneses. Via
aquilo, e ouvia mentalmente a música, a palestra, o soar dos passos, e o
ruge-ruge das sedas; enquanto a voz rouquenha e sensaborona de Lopo Alves ia
desfiando os quadros e os diálogos, com a impassibilidade de uma grande
convicção.
Voava o tempo, e o ouvinte já não sabia a
conta dos quadros. Meia-noite soara desde muito; o baile estava perdido. De
repente, viu Duarte que o major enrolava outra vez o manuscrito, erguia-se,
empertigava-se, cravava nele uns olhos odientos e maus, e saía arrebatadamente
do gabinete. Duarte quis chamá-lo, mas o pasmo tolhera-lhe a voz e os
movimentos. Quando pôde dominar-se, ouviu o bater do tacão rijo e colérico do
dramaturgo na pedra da calçada.
Foi à janela; nada viu nem ouviu; autor e
drama tinham desaparecido.
- Por que não fêz ele isso a mais tempo?
disse o rapaz suspirando.
O suspiro mal teve tempo de abrir as asas e
sair pela janela fora, em demanda do Rio Comprido, quando o moleque do bacharel
veio anunciar-lhe a visita de um homem baixo e gordo.
- A esta hora? exclamou Duarte.
- A esta hora, repetiu o homem baixo e
gordo, entrando na sala. A esta ou a qualquer hora, pode a polícia entrar na
casa do
cidadão, uma vez que se trata de um delito
grave.
- Um delito!
- Creio que me conhece...
- Não tenho essa honra.
- Sou empregado na polícia.
- Mas que tenho eu com o senhor? de que
delito se trata?
- Pouca coisa: um furto. O senhor é acusado de ter subtraído uma
chinela turca. Aparentemente não vale nada ou vale pouco a tal chinela. Mas há
chinela e chinela. Tudo depende das circunstâncias. [49]
O homem disse isto com um riso sarcástico,
e cravando no bacharel uns olhos de inquisidor. Duarte não sabia sequer da
existência do objeto roubado. Concluiu que havia equívoco de nome, e não se
zangou com a injúria irrogada à sua pessoa, e de algum modo à sua classe,
atribuindo-se-lhe a ratonice. Isto mesmo disse ao empregado da polícia, acrescentando
que não era motivo, em todo caso, para incomodá-lo a semelhante hora.
- Há de perdoar-me, disse o representante
da autoridade. A chinela de que se trata vale algumas dezenas de contos de
réis; é ornada de finíssimos diamantes, que a tornam singularmente preciosa.
Não é turca só pela forma, mas também pela origem. A dona, que é uma de nossas
patrícias mais viajeiras, esteve, há cerca de três anos no Egito, onde a
comprou a um judeu. A história, que este
aluno de Moisés referiu acerca daquele produto da indústria muçulmana, é
verdadeiramente miraculosa, e, no meu sentir, perfeitamente mentirosa. Mas não
vem ao caso dizê-la. O que importa saber é que ela foi roubada e que a polícia
tem denúncia contra o senhor.
Neste ponto do discurso, chegara-se o homem
à janela; Duarte suspeitou que fosse um doido ou um ladrão. Não teve tempo de
examinar a suspeita, porque dentro de alguns segundos, viu entrar cinco homens
armados, que lhe lançaram as mãos e o levaram, escada abaixo, sem embargo dos
gritos que soltava e dos movimentos desesperados que fazia. Na rua havia um
carro, onde o meteram à força. Já lá estava o homem baixo e gordo, e mais um
sujeito alto e magro, que o receberam e fizeram sentar no fundo do carro.
Ouviu-se estalar o chicote do cocheiro e o carro partiu à desfilada.
- Ah! ah! disse o homem gordo. Com que
então pensava que podia impunemente furtar chinelas turcas, namorar moças
louras, casar talvez com elas... e rir ainda por cima do gênero humano.
Ouvindo aquela alusão à dama dos seus pensamentos,
Duarte teve um calafrio. Tratava-se, ao que parecia, de algum desforço de rival
suplantado. Ou a alusão seria casual e estranha à aventura? Duarte perdeu-se
num cipoal de conjeturas, enquanto o carro ia sempre andando a todo galope. No
fim de algum tempo, arriscou uma observação.
- Quaisquer que sejam os meus crimes,
suponho que a polícia...
- Nós não somos da polícia, interrompeu
friamente o homem magro.
- Ah!
- Este
cavalheiro e eu fazemos um par. Ele, o senhor e eu fazemos um terno. Ora, terno
não é melhor que par; não é, não pode ser. Um casal é o ideal. Provavelmente
não me entendeu?
- Não, senhor.
- Há de entender logo mais.
Duarte resignou-se à espera, enfronhou-se
no silêncio, derreou o corpo, e deixou correr o carro e a aventura. Obra de
cinco minutos depois estacavam os cavalos.
- Chegamos, disse o homem gordo.
Dizendo isto, tirou um lenço da algibeira e
ofereceu-o ao bacharel para que tapasse os olhos. Duarte recusou, mas o homem
magro observou-lhe que era mais prudente obedecer que resistir. Não resistiu o
bacharel; atou o lenço e apeou-se. Ouviu, daí a pouco, ranger uma porta; duas
pessoas, - provavelmente as mesmas que o acompanharam no carro, - seguraram-lhe
as mãos e o conduziram por uma infinidade de corredores e escadas. Andando,
ouvia o bacharel algumas vozes desconhecidas, palavras soltas, frases
truncadas. Afinal pararam; disseram-lhe que se sentasse e destapasse os olhos.
Duarte obedeceu; mas ao desvendar-se, não viu ninguém mais.
Era uma sala vasta, assaz iluminada, trastejada
com elegância e opulência. Era talvez sobreposse a variedade dos adornos;
contudo, a pessoa que os escolhera devia ter gosto apurado.
Os bronzes, charões, tapetes, espelhos, - a
cópia infinita de objetos que enchiam a sala, era tudo da melhor fábrica. A
vista daquilo restituiu a serenidade de ânimo ao bacharel; não era provável que
ali morassem ladrões.
Reclinou-se o moço indolentemente na
otomana... Na otomana[50]! Esta
circunstância trouxe à memória do rapaz o principio da aventura e o roubo da chinela.
Alguns minutos de reflexão bastaram para ver que a tal chinela era já agora
mais que problemática. Cavando mais fundo no terreno das conjeturas,
pareceu-lhe achar uma explicação nova e definitiva. A chinela vinha a ser pura metáfora; tratava-se do coração de Cecília,
que ele roubara, delito de que o queria punir o já imaginado rival. A isto
deviam ligar-se naturalmente as palavras misteriosas do homem magro: o par é
melhor que o terno; um casal é o ideal. [51]
- Há de ser isto, concluiu Duarte; mas quem
será esse pretendente derrotado?
Neste momento abriu-se uma porta do fundo
da sala e negrejou a batina de um padre alvo e calvo. Duarte levantou-se, como
por efeito de uma mola. O padre atravessou
lentamente a sala, ao passar por ele deitou-lhe a bênção, e foi sair por outra
porta rasgada na parede fronteira. O bacharel ficou sem movimento, a olhar para
a porta, a olhar sem ver, estúpido de todos os
sentidos. O inesperado daquela aparição
baralhou totalmente as idéias anteriores a respeito da aventura. Não teve
tempo,
entretanto, de cogitar alguma nova
explicação, porque a primeira porta foi de novo aberta e entrou por ela outra
figura, desta vez o homem magro, que foi direito a ele e o convidou a segui-lo.
Duarte não opôs resistência. Saíram por uma terceira porta, e, atravessados
alguns corredores mais ou menos alumiados, foram dar a outra sala, que só o era
por duas velas postas em
castiçais de prata. Os castiçais estavam
sobre uma mesa larga. Na cabeceira desta havia um homem velho que representava ter
cinqüenta e cinco anos; era uma figura atlética, farta de cabelos na cabeça e
na cara.
- Conhece-me? perguntou o velho, logo que
Duarte entrou na sala.
- Não, senhor.
- Nem é preciso. O que vamos fazer exclui
absolutamente a necessidade de qualquer apresentação. Saberá em primeiro lugar
que o roubo da chinela foi um simples
pretexto...
- Oh! decerto! interrompeu Duarte.
- Um simples pretexto, continuou o velho,
para trazê-lo a esta nossa casa. A chinela não foi roubada; nunca saiu das mãos
da
dona. João Rufino, vá buscar a chinela.
O homem magro saiu, e o velho declarou ao
bacharel que a famosa chinela não tinha nenhum diamante, nem fora comprada a
nenhum judeu do Egito; era, porém, turca,
segundo se lhe disse, e um milagre de pequenez. Duarte ouviu as explicações, e,
reunindo todas as forças, perguntou
resolutamente:
- Mas, senhor, não me dirá de uma vez o que
querem de mim e o que estou fazendo nesta casa?
- Vai sabê-lo, respondeu tranqüilamente o
velho.
A porta abriu-se e apareceu o homem magro
com a chinela na mão. Duarte, convidado a aproximar-se da luz, teve ocasião de
verificar que a pequenez era realmente miraculosa. A chinela era de marroquim
finíssimo; no assento do pé, estufado e forrado de seda cor azul, rutilavam
duas letras bordadas a ouro.
- Chinela de criança, não lhe parece? disse
o velho.
- Suponho que sim.
- Pois supõe mal; é chinela de moça.
- Será; nada tenho com isso.
- Perdão! Tem muito, porque vai casar com a
dona.
- Casar! exclamou Duarte.
- Nada menos. João Rufino, vá buscar a dona
da chinela.
Saiu o
homem magro, e voltou logo depois. Assomando à porta, levantou o reposteiro e
deu entrada a uma mulher, que caminhou para o centro da sala. Não era mulher,
era uma sílfide, uma visão de poeta, uma criatura divina. Era loura; tinha os
olhos azuis, como os de Cecília, extáticos, uns olhos que buscavam o céu ou
pareciam viver dele. Os cabelos, deleixadamente penteados, faziam-lhe em volta
da cabeça um como resplendor de santa; santa somente, não mártir, porque o
sorriso que lhe desabrochava os lábios, era um sorriso de bem-aventurança, como
raras vezes há de ter tido a terra.[52]
Um
vestido branco, de finíssima cambraia, envolvia-lhe castamente o corpo, cujas
formas aliás desenhava, pouco para os olhos, mas muito para a imaginação.
Um
rapaz, como o bacharel, não perde o sentimento da elegância, ainda em lances
daqueles.
Duarte, ao ver a moça, compôs o chambre, apalpou a gravata e fez uma
cerimoniosa cortesia, a que ela correspondeu com tamanha gentileza e graça, que
a aventura começou a parecer muito menos aterradora.
- Meu
caro doutor, esta é a noiva.
A moça abaixou os olhos; Duarte respondeu
que não tinha vontade de casar.
- Três coisas vai o senhor fazer agora
mesmo, continuou impassivelmente o velho: a primeira, é casar; a segunda,
escrever o seu testamento; a terceira engolir droga do Levante...
- Veneno! interrompeu Duarte.
- Vulgarmente é esse o nome; eu dou-lhe
outro: passaporte do céu.
Duarte estava pálido e frio. Quis falar,
não pôde; um gemido, sequer, não lhe saiu do peito. Rolaria ao chão, se não
houvesse ali perto uma cadeira em que se deixou cair.
- O senhor, continuou o velho, tem uma
fortunazinha de cento e cinqüenta contos. Esta pérola será a sua herdeira
universal.
João Rufino, vá buscar o padre.
O padre entrou, o mesmo padre calvo que
abençoara o bacharel pouco antes; entrou e foi direto ao moço, engrolando
sonolentamente um trecho de Neemias ou qualquer outro profeta menor; travou-lhe
da mão e disse:
- Levante-se!
- Não! Não quero! Não me casarei!
- E isto? disse da mesa o velho,
apontando-lhe uma pistola.
- Mas então é um assassinato?
- É; a
diferença está no gênero de morte: ou violenta com isto, ou suave com a droga.
Escolha!
Duarte suava e tremia. Quis levantar-se e
não pôde. Os joelhos batiam um contra o outro. O padre chegou-se-lhe ao ouvido,
e disse baixinho:
- Quer fugir?
- Oh! Sim! exclamou, não com os lábios, que
podia ser ouvido, mas com os olhos em que pôs toda a vida que lhe restava.
- Vê aquela janela? Está aberta; embaixo
fica um jardim. Atire-se dali sem medo.
- Oh! Padre! disse baixinho o bacharel.
- Não sou padre, sou tenente do exército.
Não diga nada.
A janela estava apenas cerrada; via-se pela
fresta uma nesga do céu, já meio claro. Duarte não hesitou, coligiu todas as
forças,
deu um pulo do lugar onde estava e
atirou-se a Deus misericórdia por ali abaixo. Não era grande altura, a queda
foi pequena; ergueu-se o moço rapidamente, mas o homem gordo, que estava no
jardim, tomou-lhe o passo.
- Que é isso? perguntou ele rindo.
Duarte não respondeu, fechou os punhos,
bateu com eles violentamente nos peitos do homem e deitou a correr pelo jardim
fora. O homem não caiu; sentiu apenas um grande abalo; e, uma vez passada a
impressão, seguiu no encalço do fugitivo. Começou então uma carreira
vertiginosa. Duarte ia saltando cercas e muros, calcando canteiros, esbarrando
árvores, que uma ou outra vez se lhe erguiam na frente. Escorria-lhe o suor em
bica, alteava-se-lhe o peito, as forças iam a perder-se pouco a pouco; tinha
uma das mãos feridas, a camisa salpicada do orvalho das folhas, duas vezes
esteve a ponto de ser apanhado, o chambre pegara-se-lhe em uma cerca de
espinhos. Enfim, cansado, ferido, ofegante, caiu nos degraus de pedra de uma
casa, que havia no meio do último jardim que atravessara.
Olhou para trás; não viu ninguém, o
perseguidor não o acompanhara até ali. Podia vir, entretanto; Duarte ergueu-se
a custo,
subiu os quatro degraus que lhe faltavam, e
entrou na casa, cuja porta, aberta, dava para uma sala pequena e baixa.
Um homem que ali estava, lendo um número do
Jornal do Comércio, pareceu não o ter visto entrar. Duarte caiu numa cadeira.
Fitou os olhos no homem. Era o major Lopo Alves.
O major, empunhando a folha, cujas
dimensões iam-se tornando extremamente exíguas, exclamou repentinamente:
- Anjo
do céu, estás vingado! Fim do último quadro. [53]
Duarte olhou para ele, para a mesa, para as
paredes, esfregou os olhos, respirou à larga.
- Então! Que tal lhe pareceu?
- Ah! excelente! Respondeu o bacharel,
levantando-se.
- Paixões fortes, não?
- Fortíssimas. Que horas são?
- Deram duas agora mesmo.
Duarte
acompanhou o major até à porta, respirou ainda uma vez, apalpou-se, foi até à
janela. Ignora-se o que pensou durante os primeiros minutos; mas, a cabo de um
quarto de hora, eis o que ele dizia consigo: - Ninfa, doce amiga, fantasia
inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original,
substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio. Um bom negócio e
uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que o melhor drama está no
espectador e não no palco.
A
arca
Para
essa história não haverá orientação. Gostaria que vocês lessem não preocupados
com a questão religiosa que ela envolve, mas pensando na natureza humana que
ela revela. A falta de orientação não é porque ela é menos importante, mas gostaria de através dela, depois de já terem lido três, perceber se vcs já estão
lendo Machado “direitinho”.
Três capítulos inéditos do Gênesis
Capítulo A
1. - Então Noé disse a seus filhos Jafé, Sem
e Cam: - "Vamos sair da arca, segundo a vontade do Senhor, nós, e nossas
mulheres, e todos os animais. A arca tem de parai no cabeço de uma montanha;
desceremos a ela.
2. - "Porque o Senhor cumpriu a sua
promessa, quando me disse: Resolvi dar cabo de toda a carne; o mal domina a
terra, quero fazer perecer os homens. Faze uma arca de madeira; entra nela tu,
tua mulher e teus filhos.
3. - "E as mulheres de teus filhos, e
um casal de todos os animais.
4. - "Agora, pois, se cumpriu a
promessa do Senhor. e todos os homens pereceram, e fecharam-se as cataratas dó
céu; tornaremos a descer à terra, e a viver no seio da paz e da
concórdia."
5. - Isto disse Noé, e os filhos de Noé
muito se alegraram de ouvir as palavras de seu pai; e Noé os deixou sós,
retirando-se a uma das câmaras da arca.
6. - Então Jafé levantou a voz e disse: -
"Aprazível vida vai ser a nossa. A figueira nos dará o fruto, a ovelha a
lã, a vaca o leite, o sol a claridade e a noite a tenda.
7. - "Porquanto seremos únicos na
terra, e toda a terra será nossa, e ninguém perturbará a paz de uma família,
poupada do castigo que feriu a todos os homens.
8. - "Para todo o sempre." Então
Sem, ouvindo falar o irmão, disse: - "Tenho uma idéia". Ao que Jafé e
Cam responderam:- "Vejamos a tua idéia, Sem."
9. - E Sem falou a voz de seu coração,
dizendo: "Meu pai tem a sua família; cada um de nós tem a sua família; a
terra é de sobra; podíamos viver em tendas separadas. Cada um de nós fará o que
lhe parecer melhor: e plantará, caçará, ou lavrará a madeira, ou fiará o
linho."
10. - E respondeu Jafé: - "Acho bem
lembrada a idéia de Sem; podemos viver em tendas separadas. A arca vai descer
ao cabeço de uma montanha; meu pai e Cam descerão para o lado do nascente; eu e
Sem para o lado do poente,. Sem ocupará duzentos côvados de terra, eu outros
duzentos."
11. - Mas dizendo Sem: - "Acho pouco
duzentos côvados" -, retorquiu Jafé: "Pois sejam quinhentos cada um.
Entre a minha terra e a tua haverá um rio, que as divida no meio, para se não
confundir a propriedade. Eu fico na margem esquerda e tu na margem direita;
12. - "E a minha terra se chamará a
terra de Jafé, e a tua se chamará a terra de Sem; e iremos às tendas um do
outro, e partiremos o pão da alegria e da concórdia."
13. - E tendo Sem aprovado a divisão,
perguntou a Jafé: "Mas o rio? a quem pertencerá a água do rio, a corrente?
14. - "Porque nós possuímos as
margens, e não estatuímos nada a respeito da corrente." E respondeu Jafé,
que podiam pescar de um e outro lado; mas, divergindo o irmão, propôs dividir o
rio em duas partes, fincando um pau no meio. Jafé, porém, disse que a corrente
levaria o pau.
15. - E tendo Jafé respondido assim, acudiu
o irmão: "Pois que te não serve o pau, fico eu com o rio, e as duas
margens; e para que não haja conflito, podes levantar um muro, dez ou doze
côvados, para lá da tua margem antiga.
16. - "E se com isto perdes alguma
coisa, nem é grande a diferença, nem deixa de ser acertado, para que nunca
jamais se turbe a concórdia entre nós, segundo é a vontade do Senhor."
17. - Jafé porém replicou: - "Vai
bugiar! Com que direito me tiras a margem, que é minha, e me roubas um pedaço
de terra?
Porventura és melhor do que eu,
18. - "Ou mais belo, ou mais querido
de meu pai? Que direito tens de violar assim tão escandalosamente a propriedade
alheia?
19. - "Pois agora te digo que o rio
ficará do meu lado, com ambas as margens, e que se te atreveres a entrar na
minha terra, matar-te-ei como Caim matou a seu irmão."
20. - Ouvindo isto, Cam atemorizou-se muito
e começou a aquietar os dois irmãos,
21. - Os quais tinham os olhos do tamanho
de figos e cor de brasa, e olhavam-se cheios de cólera e desprezo.
22. - A arca, porém, boiava sobre as águas
do abismo.
Capítulo B
1. - Ora, Jafé, tendo curtido a cólera,
começou a espumar pela boca, e Cam falou-lhe palavras de brandura,
2. - Dizendo: - "Vejamos um meio de
conciliar tudo; vou chamar tua mulher e a mulher de Sem."
3. - Um e outro, porém, recusaram dizendo
que o caso era de direito e não de persuasão.
4. - E Sem propôs a Jafé que compensasse os
dez côvados perdidos, medindo outros tantos nos fundos da terra dele. Mas Jafé
respondeu:
5. - "Por que não me mandas logo para
os confins do mundo? Já te não contentas com quinhentos côvados; queres
quinhentos e dez, e eu que fique com quatrocentos e noventa.
6. - "Tu não tens sentimentos morais?
não sabes o que é justiça? não vês que me esbulhas descaradamente? e não
percebes que eu saberei defender o que é meu, ainda com risco de vida?
7. - "E que, se é preciso correr
sangue, o sangue há de correr já e já,
8. - "Para te castigar a soberba e
lavar a tua iniqüidade?"
9. - Então Sem avançou para Jafé; mas Cam
interpôs-se, pondo uma das mãos no peito de cada um;
10. - Enquanto o lobo e o cordeiro, que
durante os dias do dilúvio, tinham vivido na mais doce concórdia, ouvindo o
rumor das vozes, vieram espreitar a briga dos dois irmãos, e começaram a
vigiar-se um ao outro.
11. - E disse Cam: - "Ora, pois, tenho
uma idéia maravilhosa, que há de acomodar tudo;
12. - "A qual me é inspirada pelo
amor, que tenho a meus irmãos. Sacrificarei pois a terra que me couber ao lado
de meu pai, e ficarei com o rio e as duas margens, dando-me vós uns vinte
côvados cada um."
13. - E Sem e Jafé riram com desprezo e
sarcasmo, dizendo: "Vai plantar tâmaras! Guarda a tua idéia para os dias
da velhice." E puxaram as orelhas e o nariz de Cam; e Jafé, metendo dois
dedos na boca, imitou o silvo da serpente, em ar de surriada.
14. - Ora, Cam, envergonhado e irritado,
espalmou a mão dizendo: - "Deixa estar!" e foi dali ter com o pai e
as mulheres dos dois irmãos.
15. - Jafé porém disse a Sem: - "Agora
que estamos sós, vamos decidir este grave caso, ou seja de língua ou de punho.
Ou tu me cedes as duas margens, ou eu te quebro uma costela."
16. - Dizendo isto, Jafé ameaçou a Sem com
os punhos fechados, enquanto Sem, derreando o corpo, disse com voz irada:
"Não te cedo nada, gatuno!"
17. - Ao que Jafé retorquiu irado:
"Gatuno és tu!"
18. - Isto dito, avançaram um para o outro
e atracaram-se. Jafé tinha o braço rijo e adestrado; Sem era forte na
resistência.
Então Jafé, segurando o irmão pela cinta,
apertou-o fortemente, bradando: "De quem é o rio?"
19. - E respondendo Sem: - "É
meu!" Jafé fez um gesto para derrubá-lo; mas Sem, que era forte, sacudiu o
corpo e atirou o
irmão para longe; Jafé, porém, espumando de
cólera, tornou a apertar o irmão, e os dois lutaram braço a braço,
20. - Suando e bufando como touros.
21. - Na luta, caíram e rolaram,
esmurrando-se um ao outro; o sangue saía dos narizes, dos beiços, das faces;
ora vencia Jafé,
22. - Ora vencia Sem; porque a raiva
animava-os igualmente, e eles lutavam com as mãos, os pés, os dentes e as
unhas; e a arca estremecia como se de novo se houvessem aberto as cataratas do
céu.
23. - Então as vozes e brados chegaram aos
ouvidos de Noé, ao mesmo tempo que seu filho Cam, que lhe apareceu clamando:
"Meu pai, meu pai, se de Caim se tomará vingança sete vezes, e de Lamech
setenta vezes sete, o que será de Jafé e Sem?"
24. - E pedindo Noé que explicasse o dito,
Cam referiu a discórdia dos dois irmãos, e a ira que os animava, e disse: -
"Correi a aquietá-los." Noé disse: - "Vamos."
25. - A arca, porém, boiava sobre as águas
do abismo.
Capítulo C
1. - Eis aqui chegou Noé ao lugar onde
lutavam os dois filhos,
2. - E achou-os ainda agarrados um ao
outro, e Sem debaixo do joelho de Jafé, que com o punho cerrado lhe batia na
cara, a qual estava roxa e sangrenta.
3. - Entretanto, Sem, alçando as mãos,
conseguiu apertar o pescoço do irmão, e este começou a bradar: "Larga-me,
larga-me!"
4. - Ouvindo os brados, às mulheres de Jafé
e Sem acudiram também ao lugar da luta, e, vendo-os assim, entraram a soluçar e
a dizer: "O que será de nós? A maldição caiu sobre nós e nossos
maridos."
5. - Noé, porém, lhes disse:
"Calai-vos, mulheres de meus filhos, eu verei de que se trata, e ordenarei
o que for justo." E caminhando para os dois combatentes,
6. - Bradou: "Cessai a briga. Eu, Noé,
vosso pai, o ordeno e mando." E ouvindo os dois irmãos o pai, detiveram-se
subitamente, e ficaram longo tempo atalhados e mudos, não se levantando nenhum
deles.
7. - Noé continuou: "Erguei-vos,
homens indignos da salvação e merecedores do castigo que feriu os outros
homens."
8. - Jafé e Sem ergueram-se. Ambos tinham
feridos o rosto, o pescoço e as mãos, e as roupas salpicadas de sangue, porque
tinham lutado com unhas e dentes, instigados de ódio mortal.
9. - O chão também estava alagado de
sangue, e as sandálias de um e outro, e os cabelos de um e outro,
10. - Como se o pecado os quisera marcar
com o selo da iniqüidade.
11. - As duas mulheres, porém, chegaram-se
a eles, chorando e acariciando-os, e via-se-lhes a dor do coração. Jafé e Sem
não atendiam a nada, e estavam com os olhos no chão, medrosos de encarar seu
pai.
12. - O qual disse: "Ora, pois, quero
saber o motivo da briga."
13. - Esta palavra acendeu o ódio no
coração de ambos. Jafé, porém, foi o primeiro que falou e disse:
14. - "Sem invadiu a minha terra, a
terra que eu havia escolhido para levantar a minha tenda, quando as águas
houverem desaparecido e a arca descer, segundo a promessa do Senhor;
15. - "E eu, que não tolero o esbulho,
disse a meu irmão: "Não te contentas com quinhentos côvados e queres mais
dez?" E ele me respondeu: "Quero mais dez e as duas margens do rio
que há de dividir a minha terra da tua terra."
16. - Noé, ouvindo o filho, tinha os olhos
em Sem; e acabando Jafé, perguntou ao irmão: "Que respondes?"
17. - E Sem disse: - "Jafé mente,
porque eu só lhe tomei os dez côvados de terra, depois que ele recusou dividir
o rio em duas partes; e propondo-lhe ficar com as duas margens, ainda consenti
que ele medisse outros dez côvados nos fundos das terras dele.
18. - "Para compensar o que perdia;
mas a iniqüidade de Caim falou nele, e ele me feriu a cabeça, a cara e as
mãos."
19. - E Jafé interrompeu-o dizendo:
"Porventura não me feriste também? Não estou ensangüentado como tu? Olha a
minha cara e o meu pescoço; olha as minhas faces, que rasgaste com as tuas
unhas de tigre."
20. - Indo Noé falar, notou que os dois
filhos de novo pareciam desafiar-se com os olhos. Então disse:
"Ouvi!" Mas os dois irmãos, cegos de raiva, outra vez se
engalfinharam, bradando: - "De quem é o rio?" - "O rio é
meu."
21. - E só a muito custo puderam Noé, Cam e
as mulheres de Sem e Jafé, conter os dois combatentes, cujo sangue entrou a
jorrar em grande cópia.
22. - Noé, porém, alçando a voz, bradou: -
"Maldito seja o que me não obedecer. Ele será maldito, não sete vezes, não
setenta vezes sete, mas setecentas vezes setenta.
23. - "Ora, pois, vos digo que, antes
de descer a arca, não quero nenhum ajuste a respeito do lugar em que
levantareis as tendas."
24. - Depois ficou meditabundo.
25. - E alçando os olhos ao céu, porque a
portinhola do teto estava levantada, bradou com tristeza:
26. - "Eles ainda não possuem a terra
e já estão brigando por causa dos limites. O que será quando vierem a Turquia e
a Rússia?"
27. - E nenhum dos filhos de Noé pôde
entender esta palavra de seu pai.
28. - A arca, porém, continuava a boiar
sobre as águas do abismo.
D.
Benedita[54]
Um
retrato
Capítulo Primeiro
A
coisa mais árdua do mundo, depois do ofício de governar, seria dizer a idade
exata de D. Benedita[55]. Uns davam-lhe
quarenta anos, outros quarenta e cinco, alguns trinta e seis. Um corretor de fundos descia aos vinte e
nove; mas esta opinião, eivada de intenções ocultas[56],
carecia daquele cunho de sinceridade que todos gostamos de achar nos conceitos
humanos. Nem eu a cito, senão para dizer, desde logo, que D. Benedita foi
sempre um padrão de bons costumes. A astúcia do corretor não fez mais do
que indigná-la, embora momentaneamente; digo momentaneamente. Quanto às outras
conjeturas, oscilando entre os trinta e seis e os quarenta e cinco, não
desdiziam das feições de D. Benedita, que eram maduramente graves e
juvenilmente graciosas. Mas, se alguma
coisa admira é que houvesse suposições neste negócio, quando bastava
interrogá-la para saber a verdade verdadeira[57].
D. Benedita fez quarenta e dois anos no
domingo, dezenove de setembro de 1869. São seis horas da tarde; a mesa da
família está ladeada de parentes e amigos, em número de vinte ou vinte e cinco
pessoas. Muitas dessas estiveram no jantar de 1868, no de 1867 e no de 1866, e
ouviram sempre aludir francamente à idade da dona da casa. Além disso, vêem-se
ali, à mesa, uma moça e um rapaz, seus filhos; este é, decerto, no tamanho e
nas maneiras, um tanto menino; mas a moça, Eulália, contando dezoito anos,
parece ter vinte e um, tal é a severidade dos modos e das feições.
A alegria dos convivas, a excelência do
jantar, certas negociações matrimoniais incumbidas ao cônego Roxo, aqui
presente, e das quais se falará mais abaixo, as boas qualidades da dona da
casa, tudo isso dá à festa um caráter íntimo e feliz. O cônego levanta-se para
trinchar o peru. D. Benedita acatava esse uso nacional das casas modestas de
confiar o peru a um dos convivas, em vez de o fazer retalhar fora da mesa por
mãos servis, e o cônego era o pianista daquelas ocasiões solenes. Ninguém
conhecia melhor a anatomia do animal, nem sabia operar com mais presteza.
Talvez, - e este fenômeno fica para os entendidos, - talvez a circunstância do
canonicato aumentasse ao trinchante, no espírito dos convivas, uma certa soma
de prestígio, que ele não teria, por exemplo, se fosse um simples estudante de
matemáticas, ou um amanuense de secretaria. Mas, por outro lado, um estudante
ou um amanuense, sem a lição do longo uso, poderia dispor da arte consumada do
cônego? É outra questão importante.
Venhamos, porém, aos demais convivas, que
estão parados, conversando; reina o burburinho próprio dos estômagos meio
regalados, o riso da natureza que caminha para a repleção; é um instante de
repouso.
D.
Benedita fala, como as suas visitas, mas não fala para todas, senão para uma,
que está sentada ao pé dela. Essa é uma senhora gorda, simpática, muito
risonha, mãe de um bacharel de vinte e dois anos, o Leandrinho, que está
sentado defronte delas. D. Benedita não se contenta de falar à senhora gorda,
tem uma das mãos desta entre as suas; e não se contenta de lhe ter presa a mão,
fita-lhe uns olhos namorados, vivamente namorados. Não os fita, note-se bem, de
um modo persistente e longo, mas inquieto, miúdo, repetido, instantâneo. Em
todo caso, há muita ternura naquele gesto; e, dado que não a houvesse, não se
perderia nada, porque D. Benedita repete com a boca a D. Maria dos Anjos tudo o que com os olhos lhe tem dito: - que está
encantada, que considera uma fortuna conhecê-la, que é muito simpática, muito
digna, que traz o coração nos olhos, etc., etc., etc. Uma de suas amigas
diz-lhe, rindo, que está com ciúmes.
- Que arrebente! responde ela, rindo
também.
E voltando-se para a outra:
- Não acha? ninguém deve meter-se com a
nossa vida.
E aí tornavam as finezas, os
encarecimentos, os risos, as ofertas, mais isto, mais aquilo, - um projeto de
passeio, outro de teatro, e promessas de muitas visitas, tudo com tamanha
expansão e calor, que a outra palpitava de alegria e reconhecimento.
O peru está comido. D. Maria dos Anjos faz
um sinal ao filho; este levanta-se e pede que o acompanhem em um brinde:
- Meus senhores, é preciso desmentir esta
máxima dos franceses: - les absents ont tort. Bebamos a alguém que está longe,
muito longe, no espaço, mas perto, muito perto, no coração de sua digna esposa:
- bebamos ao ilustre desembargador Proença.
A assembléia não correspondeu vivamente ao
brinde; e para compreendê-lo basta ver o rosto triste da dona da casa. Os
parentes e os mais íntimos disseram baixinho entre si que o Leandrinho fora
estouvado; enfim, bebeu-se, mas sem estrépito; ao que parece, para não avivar a
dor de D. Benedita. Vã precaução! D. Benedita, não podendo conter-se, deixou
rebentarem-lhe as lágrimas, levantou-se da mesa, retirou-se da sala. D. Maria
dos Anjos acompanhou-a. Sucedeu um silêncio mortal entre os convivas. Eulália
pediu a todos que continuassem, que a mãe voltava já.
- Mamãe é muito sensível, disse ela, e a
idéia de que papai está longe de nós...
O Leandrinho, consternado, pediu desculpa a
Eulália. Um sujeito, ao lado dele, explicou-lhe que D. Benedita não podia ouvir
falar do marido sem receber um golpe no coração - e chorar logo; ao que o
Leandrinho acudiu dizendo que sabia da tristeza dela, mas estava longe de supor
que o seu brinde tivesse tão mau efeito.
- Pois era a coisa mais natural, explicou o
sujeito, porque ela morre pelo marido.
- O cônego, acudiu Leandrinho, disse-me que
ele foi para o Pará há uns dois anos...
- Dois anos e meio; foi nomeado
desembargador pelo ministério Zacarias. Ele queria a relação de São Paulo, ou
da Bahia; mas não pôde ser e aceitou a do Pará.
- Não voltou mais?
- Não voltou.
- D. Benedita naturalmente tem medo de
embarcar...
- Creio que não. Já foi uma vez à Europa.
Se bem me lembro, ela ficou para arranjar alguns negócios de família; mas foi
ficando, ficando, e agora...
- Mas era muito melhor ter ido em vez de
padecer assim... Conhece o marido?
- Conheço; um homem muito distinto, e ainda
moço, forte; não terá mais de quarenta e cinco anos. Alto, barbado, bonito.
Aqui há tempos disse-se que ele não teimava com a mulher, porque estava lá de
amores com uma viúva.
- Ah!
- E
houve até quem viesse contá-lo a ela mesma. Imagine como a pobre senhora ficou!
Chorou uma noite inteira, no dia seguinte não quis almoçar, e deu todas as
ordens para seguir no primeiro vapor.
- Mas
não foi?
- Não
foi; desfez a viagem daí a três dias. [58]
D. Benedita voltou nesse momento, pelo
braço de D. Maria dos Anjos. Trazia um sorriso envergonhado; pediu desculpa da
interrupção, e sentou-se com a recente amiga ao lado, agradecendo os cuidados
que lhe deu, pegando-lhe outra vez na mão:
- Vejo que me quer bem, disse ela.
- A senhora merece, disse D. Maria dos
Anjos.
- Mereço? inquiriu ela entre desvanecida e
modesta.
E declarou que não, que a outra é que era
boa, um anjo, um verdadeiro anjo; palavra que ela sublinhou com o mesmo olhar
namorado, não persistente e longo, mas inquieto e repetido. O cônego, pela sua
parte, com o fim de apagar a lembrança do incidente, procurou generalizar a
conversa, dando-lhe por assunto a eleição do melhor doce. Os pareceres
divergiram muito. Uns acharam que era o de coco, outros o de caju, alguns o de
laranja, etc. Um dos convivas, o
Leandrinho, autor do brinde, dizia com os olhos, - não com a boca, - e dizia-o
de um modo astucioso, que o melhor doce eram as faces de Eulália, um doce
moreno, corado; dito que a mãe dele interiormente aprovava, e que a mãe dela
não podia ver, tão entregue estava à contemplação da recente amiga. Um anjo, um
verdadeiro anjo! [59]
Capítulo II
D. Benedita levantou-se, no dia seguinte,
com a idéia de escrever uma carta ao marido, uma longa carta em que lhe
narrasse a festa da véspera, nomeasse os convivas e os pratos, descrevesse a
recepção noturna, e, principalmente, desse notícia das novas relações com D.
Maria dos Anjos. A mala fechava-se às duas horas da tarde, D. Benedita acordara
às nove, e, não morando longe (morava no Campo da Aclamação), um escravo
levaria a carta ao correio muito a tempo. Demais, chovia; D. Benedita arredou a
cortina da janela, deu com os vidros molhados; era uma chuvinha teimosa, o céu
estava todo brochado de uma cor pardo-escura, malhada de grossas nuvens negras.
Ao longe, viu flutuar e voar o pano que cobria o balaio que uma preta levava à
cabeça: concluiu que ventava. Magnífico dia para não sair, e, portanto,
escrever uma carta, duas cartas, todas as cartas de uma esposa ao marido
ausente. Ninguém viria tentá-la.
Enquanto ela compõe os babadinhos e rendas
do roupão branco, um roupão de cambraia que o desembargador lhe dera em 1862,
no mesmo dia aniversário, 19 de setembro, convido a leitora a observar-lhe as
feições. Vê que não lhe dou Vênus;
também não lhe dou Medusa. Ao contrário de Medusa, nota-se-lhe o alisado
simples do cabelo, preso sobre a nuca. Os olhos são vulgares, mas têm uma expressão
bonachã. A boca é daquelas que, ainda não sorrindo, são risonhas, e tem esta
outra particularidade, que é uma boca sem remorsos nem saudades: podia dizer
sem desejos, mas eu só digo o que quero, e só quero falar das saudades e dos
remorsos. Toda essa cabeça, que não entusiasma, nem repele, assenta sobre um
corpo antes alto do que baixo, e não magro nem gordo, mas fornido na proporção
da estatura. Para que falar-lhe das mãos? Há de admirá-las logo, ao travar da
pena e do papel, com os dedos afilados e vadios, dois deles ornados de cinco ou
seis anéis.[60]
Creio que é bastante ver o modo por que ela
compõe as rendas e os babadinhos do roupão para compreender que é uma senhora
pichosa, amiga do arranjo das coisas e de si mesma. Noto que rasgou agora o
babadinho do punho esquerdo, mas é porque, sendo também impaciente, não podia
mais "com a vida deste diabo". Essa foi a sua expressão, acompanhada
logo de um "Deus me perdoe!" que inteiramente lhe extraiu o veneno.
Não digo que ela bateu com o pé, mas adivinha-se, por ser um gesto natural de
algumas senhoras irritadas. Em todo caso, a cólera durou pouco mais de meio
minuto. D. Benedita foi à caixinha de costura para dar um ponto no rasgão, e
contentou-se com um alfinete. O alfinete caiu no chão, ela abaixou-se a
apanhá-lo. Tinha outros, é verdade, muitos outros, mas não achava prudente
deixar alfinetes no chão. Abaixando-se, aconteceu-lhe ver a ponta da chinela,
na qual pareceu-lhe descobrir um sinal branco; sentou-se na cadeira que tinha
perto, tirou a chinela, e viu o que era: era um roidinho de barata. Outra raiva
de D. Benedita, porque a chinela era muito galante, e fora-lhe dada por uma
amiga do ano passado. Um anjo, um verdadeiro anjo! D. Benedita fitou os olhos
irritados no sinal branco; felizmente a expressão bonachã deles não era tão
bonachã que se deixasse eliminar de todo por outras expressões menos passivas,
e retomou o seu lugar. D. Benedita entrou a virar e revirar a chinela, e a
passá-la de uma para outra mão, a princípio com amor, logo depois maquinalmente,
até que as mãos pararam de todo, a chinela caiu no regaço, e D. Benedita ficou
a olhar para o ar, parada, fixa. Nisto o relógio da sala de jantar começou a
bater horas. D. Benedita, logo às primeiras duas, estremeceu:
- Jesus! Dez horas!
E, rápida, calçou a chinela, concertou
depressa o punho do roupão, e dirigiu-se à escrivaninha, para começar a carta.
Escreveu, com efeito, a data, e um: - "Meu ingrato marido"; enfim,
mal traçara estas linhas: - "Você lembrou-se ontem de mim? Eu...",
quando Eulália lhe bateu à porta, bradando:
- Mamãe, mamãe, são horas de almoçar.
D. Benedita abriu a porta, Eulália
beijou-lhe a mão, depois levantou as suas ao céu:
- Meu Deus! que dorminhoca!
- O almoço está pronto?
- Há que séculos!
- Mas eu tinha dito que hoje o almoço era
mais tarde... Estava escrevendo a teu pai.
Olhou alguns instantes para a filha, como
desejosa de lhe dizer alguma coisa grave, ao menos difícil, tal era a expressão
indecisa e séria dos olhos. Mas não chegou a dizer nada; a filha repetiu que o
almoço estava na mesa, pegou-lhe do braço e levou-a.
Deixemo-las
almoçar à vontade; descansemos nessa outra sala, a de visitas, sem aliás
inventariar os móveis dela, como o não fizemos em nenhuma outra sala ou quarto.
Não é que eles não prestem, ou sejam de mau gosto; ao contrário, são bons.[61]
Mas a impressão geral que se recebe é esquisita, como se ao trastejar daquela
casa houvesse presidido um plano truncado, ou uma sucessão de planos truncados.
Mãe, filha e filho almoçaram. Deixemos o filho, que nos não importa, um
pirralho de doze anos, que parece ter oito, tão mofino é ele. Eulália
interessa-nos, não só pelo que vimos de relance no capítulo passado, como
porque, ouvindo a mãe falar em D. Maria dos Anjos e no Leandrinho, ficou muito
séria e, talvez, um pouco amuada. D. Benedita percebeu que o assunto não era
aprazível à filha, e recuou da conversa, como alguém que desanda uma rua para
evitar um importuno; recuou e ergueu-se; a filha veio com ela para a sala de
visitas.
Eram onze horas menos um quarto. D.
Benedita conversou com a filha até depois do meio-dia, para ter tempo de
descansar o almoço e escrever a carta. Sabem que a mala fecha às duas horas. De
fato, alguns minutos, poucos, depois do meio-dia, D.
Benedita disse à filha que fosse estudar
piano, porque ela ia acabar a carta[62].
Saiu da sala; Eulália foi à janela, relanceou a vista pelo Campo, e, se lhes
disser que com uma pontazinha de tristeza nos olhos, podem crer que é a pura
verdade. Não era, todavia, a tristeza dos débeis ou dos indecisos; era a
tristeza dos resolutos, a quem dói de antemão um ato pela mortificação que há
de trazer a outros, e que, não obstante, juram a si mesmos praticá-lo, e
praticam. Convenho que nem todas essas
particularidades podiam estar nos olhos de Eulália, mas por isso mesmo é que as
histórias são contadas por alguém, que se incumbe de preencher as lacunas e
divulgar o escondido. Que era uma tristeza máscula, era; - e que daí a pouco os
olhos sorriam de um sinal de esperança, também não é mentira.
- Isto acaba, murmurou ela, vindo para
dentro.
Justamente nessa ocasião parava um carro à
porta, apeava-se uma senhora, ouvia-se a campainha da escada, descia um
moleque
a abrir a cancela, e subia as escadas D. Maria dos Anjos. D. Benedita, quando
lhe disseram quem era, largou a pena, alvoroçada; vestiu-se à pressa,
calçou-se, e foi à sala.
- Com este tempo! exclamou. Ah! isto é que
é querer bem à gente!
- Vim sem esperar pela sua visita, só para
mostrar que não gosto de cerimônias, e que entre nós deve haver a maior
liberdade.
Vieram os cumprimentos de estilo, as
palavrinhas doces, os afagos da véspera. D. Benedita não se fartava de dizer
que a visita naquele dia era uma grande fineza, uma prova de verdadeira
amizade; mas queria outra, acrescentou daí a um instante, que D. Maria dos
Anjos ficasse para jantar. Esta desculpou-se alegando que tinha de ir a outras
partes; demais, essa era a prova que lhe pedia, - a de ir jantar à casa dela
primeiro. D. Benedita não hesitou, prometeu que sim, naquela mesma semana.
- Estava agora mesmo escrevendo o seu nome,
continuou.
- Sim?
- Estou escrevendo a meu marido, e falo da
senhora. Não lhe repito o que escrevi, mas imagine que falei muito mal da
senhora, que era antipática, insuportável, maçante, aborrecida... Imagine!
- Imagino, imagino. Pode acrescentar que,
apesar de ser tudo isso, e mais alguma coisa, apresento-lhe os meus respeitos.
- Como ela tem graça para dizer as coisas!
Comentou D. Benedita olhando para a filha.
Eulália sorriu sem convicção. Sentada na
cadeira fronteira à mãe, ao pé da outra ponta do sofá em que estava D. Maria
dos Anjos, Eulália dava à conversação das duas a soma de atenção que a cortesia
lhe impunha, e nada mais. Chegava a parecer aborrecida; cada sorriso que lhe
abria a boca era de um amarelo pálido, um sorriso de favor. Uma das tranças, -
era de manhã, trazia o cabelo em duas tranças caídas pelas costas abaixo, - uma
delas servia-lhe de pretexto a alheiar-se de quando em quando, porque puxava-a
para a frente e contava-lhe os fios do cabelo, - ou parecia contá-los. Assim o
creu D. Maria dos Anjos, quando lhe lançou uma ou duas vezes os olhos, curiosa,
desconfiada. D. Benedita é que não via nada; via a amiga, a
feiticeira,
como lhe chamou duas ou três vezes, - "feiticeira como ela só".
- Já?
D. Maria dos Anjos explicou que tinha de ir
a outras visitas; mas foi obrigada a ficar ainda alguns minutos, a pedido da
amiga.
Como trouxesse um mantelete de renda preta,
muito elegante, D. Benedita disse que tinha um igual e mandou buscá-lo. Tudo
demoras. Mas a mãe do Leandrinho estava tão contente! D. Benedita enchia-lhe o
coração; achava nela todas as qualidades que melhor se ajustavam à sua alma e
aos seus costumes, ternura, confiança, entusiasmo, simplicidade, uma
familiaridade cordial e pronta. Veio o mantelete; vieram oferecimentos de
alguma coisa, um doce, um licor, um refresco; D. Maria dos Anjos não aceitou
nada mais do que um beijo e a promessa de que iriam jantar com ela naquela
semana.
- Quinta-feira, disse D. Benedita.
- Palavra?
- Palavra.
- Que quer que lhe faça se não for? Há de
ser um castigo bem forte.
- Bem forte? Não me fale mais.
D. Maria dos Anjos beijou com muita ternura
a amiga; depois abraçou e beijou também a Eulália, mas a efusão era muito menor
de parte a parte. Uma e outra mediam-se, estudavam-se, começavam a
compreender-se. D. Benedita levou a amiga até o patamar da escada, depois foi à
janela para vê-la entrar no carro; a amiga, depois de entrar no carro, pôs a
cabeça de fora, olhou para cima, e disse-lhe adeus, com a mão.
- Não falte, ouviu?
- Quinta-feira.
Eulália já não estava na sala; D. Benedita
correu a acabar a carta. Era tarde: não relatara o jantar da véspera, nem já
agora podia fazê-lo. Resumiu tudo; encareceu muito as novas relações; enfim,
escreveu estas palavras:
"O cônego Roxo falou-me em casar
Eulália com o filho de D. Maria dos Anjos; é um moço formado em direito este
ano; é conservador, e espera uma promotoria, agora, se o Itaboraí não deixar o
ministério. Eu acho que o casamento é o melhor possível. O Dr. Leandrinho (é o
nome dele) é muito bem educado; fez um brinde a você, cheio de palavras tão
bonitas, que eu chorei. Eu não sei se Eulália quererá ou não; desconfio de
outro sujeito que outro dia esteve conosco nas Laranjeiras. Mas você que pensa?
Devo limitar-me a aconselhá-la, ou impor-lhe a nossa vontade? Eu acho que devo
usar um pouco da minha autoridade; mas não quero fazer nada sem que você me
diga. O melhor seria se você viesse cá."
Acabou e fechou a carta; Eulália entrou
nessa ocasião, ela deu-lha para mandar, sem demora, ao correio; e a filha saiu
com a carta sem saber que tratava dela e do seu futuro. D. Benedita deixou-se
cair no sofá, cansada, exausta. A carta
era muito comprida apesar de não dizer tudo; e era-lhe tão enfadonho escrever
cartas compridas!
Capítulo III
Era-lhe
tão enfadonho escrever cartas compridas! Esta palavra, fecho do capítulo passado,
explica a longa prostração de D. Benedita. Meia hora depois de cair no sofá,
ergueu-se um pouco, e percorreu o gabinete com os olhos, como procurando alguma
coisa. Essa coisa era um livro. Achou o livro, e podia dizer achou os livros,
pois nada menos de três estavam ali, dois abertos, um marcado em certa página,
todos em cadeiras. Eram três romances que D. Benedita lia ao mesmo tempo. Um deles,
note-se, custou-lhe não pouco trabalho. Deram-lhe notícia na rua, perto de
casa, com muitos elogios; chegara da Europa na véspera. D. Benedita ficou tão
entusiasmada, que, apesar de ser longe e tarde, arrepiou caminho e foi ela
mesmo comprá-lo, correndo nada menos de três livrarias. Voltou ansiosa,
namorada do livro, tão namorada que abriu as folhas, jantando, e leu os cinco
primeiros capítulos naquela mesma noite. Sendo preciso dormir, dormiu; no dia
seguinte não pôde continuar, depois esqueceu-o. Agora, porém, passados oito
dias, querendo ler alguma coisa, aconteceu-lhe justamente achá-lo à mão.
- Ah!
E
ei-la que torna ao sofá, que abre o livro com amor, que mergulha o espírito, os
olhos e o coração na leitura tão desastradamente interrompida. D. Benedita ama
os romances, é natural; e adora os romances bonitos, é naturalíssimo. Não
admira que esqueça tudo para ler este; tudo, até a lição de piano da filha,
cujo professor chegou e saiu, sem que ela fosse à sala. Eulália despediu-se do
professor; depois foi ao gabinete, abriu a porta, caminhou pé ante pé até o
sofá, e acordou a mãe com um beijo. [63]
- Dorminhoca!
- Ainda chove?
- Não, senhora; agora parou.
- A carta foi?
- Foi; mandei o José a toda a pressa.
Aposto que mamãe esqueceu-se de dar lembranças a papai? Pois olhe, eu não me
esqueço nunca.
D. Benedita bocejou. Já não pensava na
carta; pensava no colete que encomendara à Charavel, um colete de barbatanas
mais
moles do que o último. Não gostava de
barbatanas duras; tinha o corpo mui sensível. Eulália falou ainda algum tempo
do pai, mas calou-se logo, e vendo no chão o livro aberto, o famoso romance,
apanhou-o, fechou-o, pô-lo em cima da mesa. Nesse
momento
vieram trazer uma carta a D. Benedita; era do cônego Roxo, que mandava
perguntar se estavam em casa naquele dia, porque iria ao enterro dos ossos.
- Pois não! bradou D. Benedita; estamos em
casa, venha, pode vir.
Eulália escreveu o bilhetinho de resposta.
Daí a três quartos de hora fazia o cônego a sua entrada na sala de D. Benedita.
Era um bom homem o cônego, velho amigo daquela casa, na qual, além de trinchar
o peru nos dias solenes, como vimos, exercia o papel de conselheiro, e
exercia-o com lealdade e amor. Eulália, principalmente, merecia-lhe muito;
vira-a pequena, galante, travessa, amiga dele, e criou-lhe uma afeição
paternal, tão paternal que tomara a peito casá-la bem, e nenhum noivo melhor do
que o Leandrinho, pensava o cônego. Naquele dia, a idéia de ir jantar com elas
era antes um pretexto; o cônego queria tratar o negócio diretamente com a filha
do desembargador. Eulália, ou porque adivinhasse isso mesmo, ou porque a pessoa
do cônego lhe lembrasse o Leandrinho, ficou logo preocupada, aborrecida.
Mas, preocupada ou aborrecida, não quer
dizer triste ou desconsolada. Era resoluta, tinha têmpera, podia resistir, e
resistiu, declarando ao cônego, quando ele naquela noite lhe falou do
Leandrinho, que absolutamente não queria casar.
- Palavra de moça bonita?
- Palavra de moça feia.
- Mas, por quê?
- Porque não quero.
- E se mamãe quiser?
- Não quero eu.
- Mau! isso não é bonito, Eulália.
Eulália deixou-se estar. O cônego ainda
tornou ao assunto, louvou as qualidades do candidato, as esperanças da família,
as vantagens do casamento; ela ouvia tudo, sem contestar nada. Mas quando o
cônego formulava de um modo direto a questão, a resposta invariável era esta:
- Já disse tudo.
- Não quer?
- Não.
O desconsolo do bom cônego era profundo e
sincero. Queria casá-la bem, e não achava melhor noivo. Chegou a interrogá-la
discretamente, sobre se tinha alguma preferência em outra parte. Mas Eulália,
não menos discretamente, respondia que não, que não tinha nada; não queria
nada; não queria casar. Ele creu que era assim, mas receou também que não fosse
assim; faltava-lhe o trato suficiente das mulheres para ler através de uma
negativa. Quando referiu tudo a D. Benedita, esta ficou assombrada com os
termos da recusa; mas tornou logo a si, e declarou ao padre que a filha não
tinha vontade, faria o que ela quisesse, e ela queria o casamento.
- Já agora nem espero resposta do pai,
concluiu; declaro-lhe que ela há de casar. Quinta-feira vou jantar com D. Maria
dos
Anjos, e combinaremos as coisas.
- Devo dizer-lhe, ponderou o cônego, que D.
Maria dos Anjos não deseja que se faça nada à força.
- Qual força! Não é preciso força.
O cônego refletiu um instante:
- Em todo caso, não violentaremos qualquer
outra afeição que ela possa ter, disse ele.
D. Benedita não respondeu nada; mas
consigo, no mais fundo de si mesma, jurou que, houvesse o que houvesse,
acontecesse o que acontecesse, a filha seria nora de D. Maria dos Anjos. E
ainda consigo, depois de sair o cônego: - Tinha que ver! um tico de gente, com
fumaças de governar a casa!
A quinta-feira raiou. Eulália, - o tico de
gente, levantou-se fresca, lépida, loquaz, com todas as janelas da alma abertas
ao sopro azul da manhã. A mãe acordou ouvindo um trecho italiano, cheio de
melodia; era ela que cantava, alegre, sem afetação, com a indiferença das aves
que cantam para si ou para os seus, e não para o poeta, que as ouve e traduz na
língua imortal dos homens. D. Benedita afagara muito a idéia de a ver abatida,
carrancuda, e gastara uma certa soma de imaginação em compor os seus modos,
delinear os seus atos, ostentar energia e força. E nada! Em vez de uma filha
rebelde, uma criatura gárrula e submissa. Era
começar mal o dia; era sair aparelhada para destruir uma fortaleza, e dar com
uma cidade aberta, pacífica, hospedeira, que lhe pedia o favor de entrar e
partir o pão da alegria e da concórdia. Era começar o dia muito mal.[64]
A segunda causa do tédio de D. Benedita foi
um ameaço de enxaqueca, às três horas da tarde; um ameaço, ou uma suspeita de
possibilidade de ameaço. Chegou a transferir a visita, mas a filha ponderou que
talvez a visita lhe fizesse bem, e em todo caso, era tarde para deixar de ir.
D. Benedita não teve remédio, aceitou o reparo. Ao espelho, penteando-se,
esteve quase a dizer que definitivamente ficava; chegou a insinuá-lo à filha.
- Mamãe veja que D. Maria dos Anjos conta
com a senhora, disse-lhe Eulália.
- Pois sim, redargüiu a mãe, mas não
prometi ir doente.
Enfim, vestiu-se, calçou as luvas, deu as
últimas ordens; e devia doer-lhe muito a cabeça, porque os modos eram
arrebitados, uns modos de pessoa constrangida ao que não quer. A filha
animava-a muito, lembrava-lhe o vidrinho dos sais, instava que saíssem,
descrevia a ansiedade de D. Maria dos Anjos, consultava de dois em dois minutos
o pequenino relógio, que trazia na cintura, etc. Uma amofinação, realmente.
- O que tu estás é me amofinando, disse-lhe
a mãe.
E saiu, saiu exasperada, com uma grande
vontade de esganar a filha, dizendo consigo que a pior coisa do mundo era ter
filhas. Os filhos ainda vá: criam-se, fazem carreira por si; mas as filhas!
Felizmente, o jantar de D. Maria dos Anjos
aquietou-a; e não digo que a enchesse de grande satisfação, porque não foi
assim.
Os modos de D. Benedita não eram os do
costume; eram frios, secos, ou quase secos; ela, porém, explicou de si mesma a
diferença, noticiando o ameaço da enxaqueca, notícia mais triste do que alegre,
e que, aliás, alegrou a alma de D. Maria dos Anjos, por esta razão fina e
profunda: antes a frieza da amiga fosse originada na doença do que na quebra do
afeto. Demais, a doença não era grave. E que fosse grave! Não houve naquele dia
mãos presas, olhos nos olhos, manjares comidos entre carícias mútuas; não houve
nada do jantar de domingo. Um jantar apenas conversado; não alegre, conversado;
foi o mais que alcançou o cônego. Amável cônego! As disposições de Eulália, naquele
dia, cumularam-no de esperanças; o riso que brincava nela, a maneira expansiva
da conversa, a docilidade com que se prestava a tudo, a tocar, a cantar, e o
rosto afável, meigo, com que ouvia e falava ao Leandrinho, tudo isso foi para a
alma do cônego uma renovação de esperanças. Logo hoje é que D. Benedita estava
doente! Realmente, era caiporismo.
D. Benedita reanimou-se um pouco, à noite,
depois do jantar. Conversou mais, discutiu um projeto de passeio ao Jardim
Botânico, chegou mesmo a propor que fosse logo no dia seguinte; mas Eulália
advertiu que era prudente esperar um ou dois dias até que os efeitos da
enxaqueca desaparecessem de todo; e o olhar que mereceu à mãe, em troca do
conselho, tinha a ponta aguda de um punhal. Mas a filha não tinha medo dos
olhos matemos. De noite, ao despentear-se, recapitulando o dia, Eulália repetiu
consigo a palavra que lhe ouvimos, dias antes, à janela:
- Isto acaba.
E, satisfeita de si, antes de dormir, puxou
uma certa gaveta, tirou uma caixinha, abriu-a, aventou um cartão de alguns
centímetros de altura, - um retrato. Não era retrato de mulher, não só por ter
bigodes, como por estar fardado; era, quando muito, um oficial de marinha. Se
bonito ou feio, é matéria de opinião. Eulália achava-o bonito; a prova é que o beijou,
não digo uma vez, mas três. Depois mirou-o, com saudade, tornou a fechá-lo e
guardá-lo.
Que
fazias tu, mãe cautelosa e ríspida, que não vinhas arrancar às mãos e à boca da
filha um veneno tão sutil e mortal? D. Benedita, à janela, olhava a noite, entre
as estrelas e os lampiões de gás, com a imaginação vagabunda, inquieta, roída
de saudades e desejos. O dia tinha-lhe saído mal, desde manhã. D. Benedita
confessava, naquela doce intimidade da alma consigo mesma, que o jantar de D.
Maria dos Anjos não prestara para nada, e que a própria amiga não estava
provavelmente nos seus dias de costume. Tinha saudades, não sabia bem de quê, e
desejos, que ignorava. De quando em quando, bocejava ao modo preguiçoso e
arrastado dos que caem de sono; mas se alguma coisa tinha era fastio, - fastio,
impaciência, curiosidade. D.Benedita cogitou seriamente em ir ter com o marido;
e tão depressa a idéia do mando lhe penetrou no cérebro, como se lhe apertou o
coração de saudades e remorsos, e o sangue pulou-lhe num tal ímpeto de ir ver o
desembargador que, se o paquete do Norte estivesse na esquina da rua e as malas
prontas, ela embarcaria logo e logo. Não importa; o paquete devia estar prestes
a sair, oito ou dez dias; era o tempo de arranjar as malas. Iria por três meses
somente, não era preciso levar muita coisa.
Ei-la que se consola da grande cidade
fluminense, da similitude dos dias, da escassez das coisas, da persistência das
caras, da mesma fixidez das modas, que era um dos seus árduos problemas: - por
que é que as modas hão de durar mais de quinze dias?
- Vou, não há que ver, vou ao Pará, disse
ela a meia voz.
Com efeito, no dia seguinte, logo de manhã,
comunicou a resolução à filha, que a recebeu sem abalo. Mandou ver as malas que
tinha, achou que era preciso mais uma, calculou o tamanho, e determinou
comprá-la. Eulália, por uma inspiração súbita:
- Mas, mamãe, nós não vamos por três meses?
- Três... ou dois.
- Pois, então, não vale a pena. As duas
malas chegam.
- Não chegam.
- Bem; se não chegarem, pode-se comprar na
véspera. E mamãe mesmo escolhe; é melhor do que mandar esta gente que não
sabe nada.
D. Benedita achou a reflexão judiciosa, e
guardou o dinheiro. A filha sorriu para dentro. Talvez repetisse consigo a
famosa palavra da janela: - Isto acaba. A mãe foi cuidar dos arranjos, escolha
de roupas, lista das coisas que precisava comprar, um presente para o marido,
etc. Ah! que alegria que ele ia ter! Depois do meio-dia saíram para fazer
encomendas, visitas, comprar as passagens, quatro passagens; levavam uma
escrava consigo. Eulália ainda tentou arredá-la da idéia, propondo a
transferência da viagem; mas D. Benedita declarou peremptoriamente que não. No
escritório da Companhia de Paquetes disseram-lhe que o do Norte saía na
sexta-feira da outra semana. Ela pediu as quatro passagens; abriu a
carteirinha, tirou uma nota, depois duas, refletiu um instante.
- Basta vir na véspera, não?
- Basta, mas pode não achar mais.
- Bem; o senhor guarde os bilhetes: eu
mando buscar.
- O seu nome?
- O nome? O melhor é não tomar o nome; nós
viremos três dias antes de sair o vapor. Naturalmente ainda haverá bilhetes.
- Pode ser.
- Há de haver.
Na rua, Eulália observou que era melhor ter
comprado logo os bilhetes; e, sabendo-se que ela não desejava ir para o Norte
nem para o Sul, salvo na fragata em que embarcasse o original do retrato da
véspera, há de supor-se que a reflexão da moça era profundamente maquiavélica.
Não digo que não. D. Benedita, entretanto, noticiou a viagem aos amigos e
conhecidos, nenhum dos quais a ouviu espantado. Um chegou a perguntar-lhe se,
enfim, daquela vez era certo. D. Maria dos Anjos, que sabia da viagem pelo
cônego, se alguma coisa a assombrou, quando a amiga se despediu dela, foram as
atitudes geladas, o olhar fixo no chão, o silêncio, a indiferença. Uma visita
de dez minutos apenas, durante os quais D. Benedita disse quatro palavras no
princípio: - Vamos para o Norte. E duas no fim: - Passe bem. E os beijos? Dois
tristes beijos de pessoa morta.
Capítulo IV
A viagem não se fez por um motivo
supersticioso. D. Benedita, no domingo à noite, advertiu que o paquete seguia
na sexta-feira, e achou que o dia era mau. Iriam no outro paquete. Não foram no
outro; mas desta vez os motivos escapam inteiramente ao alcance do olhar
humano, e o melhor alvitre em tais casos é não teimar com o impenetrável. A
verdade é que D. Benedita não foi, mas iria no terceiro paquete, a não ser um
incidente que lhe trocou os planos.
Tinha
a filha inventado uma festa e uma amizade nova. A nova amizade era uma família
do Andaraí; a festa não se sabe a que propósito foi, mas deve ter sido
esplêndida, porque D. Benedita ainda falava dela três dias depois. Três dias!
Realmente, era demais. Quanto à família, era impossível ser mais amável; ao
menos, a impressão que deixou na alma de D. Benedita foi intensíssima. Uso este
superlativo, porque ela mesma o empregou: é um documento humano. [65]
- Aquela gente? Oh! deixou-me uma impressão
intensíssima.
E toca a andar para Andaraí, namorada de D.
Petronilha, esposa do conselheiro Beltrão, e de uma irmã dela, D. Maricota, que
ia casar com um oficial de marinha, irmão de outro oficial de marinha, cujos
bigodes, olhos, cara, porte, cabelos, são os mesmos do retrato que o leitor
entreviu há tempos na gavetinha de Eulália. A irmã casada tinha trinta e dois
anos, e uma seriedade, umas maneiras tão bonitas, que deixaram encantada a
esposa do desembargador. Quanto à irmã solteira era uma flor, uma flor de cera,
outra expressão de D. Benedita, que não altero com receio de entibiar a
verdade.
Um dos pontos mais obscuros desta curiosa
história é a pressa com que as relações se travaram, e os acontecimentos se
sucederam. Por exemplo, uma das pessoas que estiveram em Andaraí, com D.
Benedita, foi o oficial de marinha retratado no cartão particular de Eulália,
1º tenente Mascarenhas, que o conselheiro Beltrão proclamou futuro almirante.
Vede, porém, a perfídia do oficial: vinha fardado; e D. Benedita, que amava os
espetáculos novos, achou-o tão distinto, tão bonito, entre os outros moços à
paisana, que o preferiu a todos, e lho disse. O oficial agradeceu comovido. Ela
ofereceu-lhe a casa; ele pediu-lhe licença para fazer uma visita.
- Uma visita? Vá jantar conosco.
Mascarenhas fez uma cortesia de
aquiescência.
- Olhe, disse D. Benedita, vá amanhã.
Mascarenhas foi, e foi mais cedo. D.
Benedita falou-lhe da vida do mar; ele pediu-lhe a filha em casamento. D.
Benedita ficou sem voz, pasmada. Lembrou-se, é verdade, que desconfiara dele,
um dia, nas Laranjeiras; mas a suspeita acabara. Agora não os vira conversar
nem olhar uma só vez. Em casamento! Mas seria mesmo em casamento? Não podia ser
outra coisa; a atitude séria, respeitosa, implorativa do rapaz dizia bem que se
tratava de um casamento. Que sonho! Convidar um amigo, e abrir a porta a um
genro: era o cúmulo do inesperado. Mas o sonho era bonito; o oficial de marinha
era um galhardo rapaz, forte, elegante, simpático, metia toda a gente no
coração, e principalmente parecia adorá-la, a ela, D. Benedita. Que magnífico
sonho! D. Benedita voltou do pasmo, e respondeu que sim, que Eulália era sua.
Mascarenhas pegou-lhe na mão e beijou-a filialmente.
- Mas o desembargador? disse ele.
- O desembargador concordará comigo.
Tudo andou assim depressa. Certidões
passadas, banhos corridos, marcou-se o dia do casamento; seria vinte e quatro
horas depois de recebida a resposta do desembargador. Que alegria a da boa mãe!
que atividade no preparo do enxoval, no plano e nas encomendas da festa, na
escolha dos convidados, etc.! Ela ia de um lado para outro, ora a pé, ora de
carro, fizesse chuva ou sol. Não se detinha no mesmo objeto muito tempo; a
semana do enxoval não era a do preparo da festa, nem a das visitas; alternava
as coisas, voltava atrás, com certa confusão, é verdade. Mas aí estava a filha
para suprir as faltas, corrigir os defeitos, cercear as demasias, tudo com a
sua habilidade natural. Ao contrário de todos os noivos, este não as
importunava; não jantava todos os dias com elas, segundo lhe pedia a dona da
casa; jantava aos domingos, e visitava-as uma vez por semana. Matava as
saudades por meio de cartas, que eram contínuas, longas e secretas, como no
tempo do namoro. D. Benedita não podia explicar uma tal esquivança, quando ela
morria por ele; e então vingava-se da esquisitice, morrendo ainda mais, e
dizendo dele por toda a parte as mais belas coisas do mundo.
- Uma pérola! uma pérola!
- E um bonito rapaz, acrescentavam.
- Não é? De truz.
A mesma coisa repetia ao marido nas cartas
que lhe mandava, antes e depois de receber a resposta da primeira. A resposta
veio; o desembargador deu o seu consentimento, acrescentando que lhe doía muito
não poder vir assistir às bodas, por achar-se um tanto adoentado; mas abençoava
de longe os filhos, e pedia o retrato do genro.
Cumpriu-se o acordo à risca. Vinte e quatro
horas depois de recebida a resposta do Pará efetuou-se o casamento, que foi uma
festa admirável, esplêndida, no dizer de D. Benedita, quando a contou a algumas
amigas. Oficiou o cônego Roxo, e claro é que D. Maria dos Anjos não esteve
presente, e menos ainda o filho. Ela esperou, note-se, até à última hora um
bilhete de participação, um convite, uma visita, embora se abstivesse de
comparecer; mas não recebeu nada. Estava atônita, revolvia a memória a ver se
descobria alguma inadvertência sua que pudesse explicar a frieza das relações;
não achando nada, supôs alguma intriga. E supôs mal, pois foi um simples
esquecimento. D. Benedita, no dia do consórcio, de manhã, teve idéia de que D.
Maria dos Anjos não recebera participação.
- Eulália, parece que não mandamos
participação a D Maria dos Anjos, disse ela à filha, almoçando.
- Não sei; mamãe é quem se incumbiu dos
convites.
- Parece que não, confirmou D. Benedita.
João, dá cá mais açúcar.
O copeiro deu-lhe o açúcar; ela, mexendo o
chá, lembrou-se do carro que iria buscar o cônego e reiterou uma ordem da
véspera.
Mas a fortuna é caprichosa. Quinze dias
depois do casamento, chegou a notícia do óbito do desembargador. Não descrevo a
dor de D. Benedita; foi dilacerante e sincera. Os noivos, que devaneavam na
Tijuca, vieram ter com ela; D. Benedita chorou todas as lágrimas de uma esposa
austera e fidelíssima. Depois da missa do sétimo dia, consultou a filha e o
genro acerca da idéia de ir ao Pará, erigir um túmulo ao marido, e beijar a
terra em que ele repousava. Mascarenhas trocou um olhar com a mulher; depois
disse à sogra que era melhor irem juntos, porque ele devia seguir para o Norte
daí a três meses em comissão do governo. D. Benedita recalcitrou um pouco, mas
aceitou o prazo, dando desde logo todas as ordens necessárias à construção do
túmulo. O túmulo fez-se; mas a comissão não veio, e D. Benedita não pôde ir.
Cinco meses depois, deu-se um pequeno
incidente na família. D. Benedita mandara construir uma casa no caminho da
Tijuca, e o genro, com o pretexto de uma interrupção na obra, propôs acabá-la.
D. Benedita consentiu, e o ato era tanto mais honroso para ela, quanto que o
genro começava a parecer-lhe insuportável com a sua excessiva disciplina, com
as suas teimas, impertinências, etc. Verdadeiramente, não havia teimas; nesse
particular, o genro de D. Benedita contava tanto com a sinceridade da sogra que
nunca teimava; deixava que ela própria se desmentisse dias depois. Mas pode ser
que isto mesmo a mortificasse. Felizmente, o governo lembrou-se de o mandar ao
Sul; Eulália, grávida, ficou com a mãe.
Foi por esse tempo que um negociante,
viúvo, teve idéia de cortejar D. Benedita. O primeiro ano da viuvez estava
passado. D. Benedita acolheu a idéia com muita simpatia, embora sem alvoroço.
Defendia-se consigo; alegava a idade e os estudos do filho, que em breve
estaria a caminho de São Paulo, deixando-a só, sozinha no mundo. O casamento
seria uma consolação, uma companhia. E consigo, na rua ou em casa, nas horas
disponíveis, aprimorava o plano com todos os floreios da imaginação vivaz e
súbita; era uma vida nova, pois desde muito, antes mesmo da morte do marido,
pode-se dizer que era viúva. O negociante gozava do melhor conceito: a escolha
era excelente.
Não casou. O genro tornou do Sul, a filha
deu à luz um menino robusto e lindo, que foi a paixão da avó durante os
primeiros meses. Depois, o genro, a filha e o neto foram para o Norte. D.
Benedita achou-se só e triste; o filho não bastava aos seus afetos. A idéia de
viajar tornou a rutilar-lhe na mente, mas como um fósforo, que se apaga logo.
Viajar sozinha era cansar e aborrecer-se ao mesmo tempo; achou melhor ficar.
Uma companhia lírica, adventícia,
sacudiu-lhe o torpor, e restituiu-a à sociedade. A sociedade incutiu-lhe outra
vez a idéia do casamento, e apontou-lhe logo um pretendente, desta vez um
advogado, também viúvo.
- Casarei? não casarei?
Uma noite, volvendo D. Benedita este
problema, à janela da casa de Botafogo, para onde se mudara desde alguns meses,
viu um singular espetáculo. Primeiramente
uma claridade opaca, espécie de luz coada por um vidro fosco, vestia o espaço
da enseada, fronteira à janela. Nesse quadro apareceu-lhe uma figura vaga e
transparente, trajada de nevoas, toucada de reflexos, sem contornos definidos,
porque morriam todos no ar. A figura veio até ao peitoril da janela de D.
Benedita; e de um gesto sonolento, com uma voz de criança, disse-lhe estas
palavras sem sentido:
- Casa... não casarás... se casas...
casarás... não casarás... e casas... casando ...
D. Benedita ficou aterrada, sem poder,
mexer-se; mas ainda teve a força de perguntar à figura quem era. A figura achou
um princípio de riso, mas perdeu-o logo; depois respondeu que era a fada que
presidira ao nascimento de D. Benedita: Meu nome é Veleidade, concluiu; e, como
um suspiro, dispersou-se na noite e no silêncio.
O
segredo do bonzo
Capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto
Atrás
deixei narrado[66] o que se passou
nesta cidade Fuchéu, capital do reino de Bungo, com o padre-mestre Francisco, e
de como el-rei se houve com o Fucarandono e outros bonzos, que tiveram por
acertado disputar ao padre as primazias da nossa santa religião. Agora direi de uma doutrina não menos
curiosa que saudável ao espírito, e digna de ser divulgada a todas as
repúblicas da cristandade.
Um dia, andando a passeio com Diogo
Meireles, nesta mesma cidade Fuchéu, naquele ano de 1552, sucedeu
deparar-se-nos um ajuntamento de povo, à esquina de uma rua, em torno a um
homem da terra, que discorria com grande abundância de gestos e vozes. O povo,
segundo o esmo mais baixo, seria passante de cem pessoas, varões somente, e
todos embasbacados. Diogo Meireles, que melhor conhecia a língua da terra, pois
ali estivera muitos meses, quando andou com bandeira de veniaga (agora
ocupava-se no exercício da medicina, que estudara convenientemente, e em que
era exímio) ia-me repetindo pelo nosso idioma o que ouvia ao orador, e que, em
resumo, era o seguinte: - Que ele não queria outra coisa mais do que afirmar a
origem dos grilos, os quais procediam do ar e das folhas de coqueiro, na
conjunção da lua nova; que este descobrimento, impossível a quem não fosse,
como ele, matemático, físico e filósofo, era fruto de dilatados anos de
aplicação, experiência e estudo, trabalhos e até perigos de vida; mas enfim,
estava feito, e todo redundava em glória do reino de Bungo, e especialmente da
cidade Fuchéu, cuja filho era; e, se por ter aventado tão sublime verdade,
fosse necessário aceitar a morte, ele a aceitaria ali mesmo, tão certo era que a ciência valia mais do que a vida e seus
deleites. [67]
A multidão, tanto que ele acabou, levantou
um tumulto de aclamações, que esteve a ponto de ensurdecer-nos, e alçou nos
braços o homem, bradando: Patimau, Patimau, viva Patimau que descobriu a origem
dos grilos! E todos se foram com ele ao
alpendre de um mercador, onde lhe deram refrescos e lhe fizeram muitas
saudações e reverências, à maneira deste gentio, que é em extremo obsequioso e
cortesão.
Desandando o caminho, vínhamos nós, Diogo
Meireles e eu, falando do singular
achado da origem dos grilos,[68] quando,
a pouca distância daquele alpendre, obra de seis credos, não mais, achamos
outra multidão de gente, em outra esquina, escutando a outro homem. Ficamos
espantados com a semelhança do caso, e Diogo Meireles, visto que também este
falava apressado, repetiu-me na mesma maneira o teor da oração. E dizia este
outro, com grande admiração e aplauso da gente que o cercava, que enfim descobrira o princípio da vida
futura, quando a terra houvesse de ser inteiramente destruída, e era nada menos
que uma certa gota de sangue de vaca; daí provinha a excelência da vaca
para habitação das almas humanas, e o ardor com que esse distinto animal era
procurado por muitos homens à hora de morrer; descobrimento que ele podia
afirmar com fé e verdade, por ser obra de experiências repetidas e profunda
cogitação, não desejando nem pedindo outro galardão mais que dar glória ao
reino de Bungo e receber dele a estimação que os bons filhos merecem. O povo,
que escutara esta fala com muita veneração, fez o mesmo alarido e levou o homem
ao dito alpendre, com a diferença que o trepou a uma charola; ali chegando, foi
regalado com obséquios iguais aos que faziam a Patimau, não havendo nenhuma
distinção entre eles, nem outra competência nos banqueteadores, que não fosse a
de dar graças a ambos os banqueteados.
Ficamos
sem saber nada daquilo, porque nem nos parecia casual a semelhança exata dos
dois encontros, nem racional ou crível a origem dos grilos, dada por Patimau,
ou o princípio da vida futura, descoberto por Languru, que assim se chamava o
outro.
Sucedeu, porém, costearmos a casa de um certo Titané, alparqueiro, o qual
correu a falar a Diogo Meireles, de quem era amigo. E, feitos os cumprimentos,
em que o alparqueiro chamou as mais galantes coisas a Diogo Meireles, tais como
- ouro da verdade e sol do pensamento, - contou-lhe este o que víramos e
ouvíramos pouco antes. Ao que Titané acudiu com grande alvoroço: - Pode ser que
eles andem cumprindo uma nova doutrina, dizem que inventada por um bonzo de
muito saber, morador em umas casas pegadas ao monte Coral. E porque ficássemos
cobiçosos de ter alguma notícia da doutrina, consentiu Titané em ir conosco no
dia seguinte às casas do bonzo, e acrescentou: - Dizem que ele não a confia a nenhuma pessoa, senão às que de coração
se quiserem filiar a ela; e, sendo assim, podemos simular que o queremos
unicamente com o fim de a ouvir; e se for boa, chegaremos a praticá-la à nossa
vontade.
No dia seguinte, ao modo concertado, fomos
às casas do dito bonzo, por nome Pomada, um ancião de cento e oito anos, muito
lido e sabido nas letras divinas e humanas, e grandemente aceito a toda aquela
gentilidade, e por isso mesmo malvisto de outros bonzos, que se finavam de puro
ciúme. E tendo ouvido o dito bonzo a Titané quem éramos e o que queríamos,
iniciou-nos primeiro com várias cerimônias e bugiarias necessárias à recepção
da doutrina, e só depois dela é que alçou a voz para confiá-la e
explicá-la.
-
Haveis de entender, começou ele, que a virtude e o saber, têm duas existências
paralelas, uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos que o ouvem ou
contemplam. Se puserdes as mais sublimes virtudes e os mais profundos
conhecimentos em um sujeito solitário, remoto de todo contacto com outros
homens, é como se eles não existissem. Os frutos de uma laranjeira, se ninguém
os gostar, valem tanto como as urzes e plantas bravias, e, se ninguém os vir,
não valem nada; ou, por outras palavras mais enérgicas, não há espetáculo sem
espectador. Um dia, estando a cuidar nestas coisas, considerei que, para o fim
de alumiar um pouco o entendimento, tinha consumido os meus longos anos, e,
aliás, nada chegaria a valer sem a existência de outros homens que me vissem e
honrassem; então cogitei se não haveria um modo de obter o mesmo efeito,
poupando tais trabalhos, e esse dia posso agora dizer que foi o da regeneração
dos homens, pois me deu a doutrina salvadora.
Neste ponto, afiamos os ouvidos e ficamos
pendurados da boca do bonzo, o qual, como lhe dissesse Diogo Meireles que a
língua da terra me não era familiar, ia falando com grande pausa, porque eu
nada perdesse. E continuou dizendo:
- Mal podeis adivinhar o que me deu idéia
da nova doutrina; foi nada menos que a pedra da lua, essa insigne pedra tão
luminosa que, posta no cabeço de uma montanha ou no píncaro de uma torre, dá
claridade a uma campina inteira, ainda a mais dilatada. Uma tal pedra, com tais
quilates de luz, não existiu nunca, e ninguém jamais a viu; mas muita gente crê
que existe e mais de um dirá que a viu com os seus próprio olhos. Considerei o caso, e entendi que, se uma
coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na
realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências
paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas
conveniente.[69]
Tão depressa fiz este achado especulativo, como dei graças a Deus do favor
especial, e determinei-me a verificá-lo por experiências; o que alcancei, em
mais de um caso, que não relato, por vos não tomar o tempo. Para compreender a
eficácia do meu sistema, basta advertir que os grilos não podem nascer do ar e
das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova, e por outro lado, o princípio
da vida futura não está em uma certa gota de sangue de vaca; mas Patimau e
Languru, varões astutos, com tal arte souberam meter estas duas idéias no ânimo
da multidão, que hoje desfrutam a nomeada de grandes físicos e maiores
filósofos, e têm consigo pessoas capazes de dar a vida por eles.
Não sabíamos em que maneira déssemos ao
bonzo, as mostras do nosso vivo contentamento e admiração. Ele interrogou-nos
ainda algum tempo, compridamente, acerca da doutrina e dos fundamentos dela, e
depois de reconhecer que a entendíamos, incitou-nos a praticá-la, a divulgá-la
cautelosamente, não porque houvesse nada contrário às leis divinas ou humanas,
mas porque a má compreensão dela podia daná-la e perdê-la em seus primeiros
passos; enfim, despediu-se de nós com a certeza (são palavras suas) de que
abalávamos dali com a verdadeira alma de pomadistas; denominação esta que, por
se derivar do nome dele, lhe era em extremo agradável.
Com efeito, antes de cair a tarde, tínhamos
os três combinado em pôr por obra uma idéia tão judiciosa quão lucrativa, pois não é só lucro o que se pode haver em
moeda, senão também o que traz consideração e louvor, que é outra e melhor
espécie de moeda, conquanto não dê para comprar damascos ou chaparias de ouro. Combinamos,
pois, à guisa de experiência, meter cada um de nós, no ânimo da cidade Fuchéu,
uma certa convicção, mediante a qual houvéssemos os mesmos benefícios que
desfrutavam Patimau e Languru; mas, tão certo é que o homem não olvida o seu
interesse, entendeu Titané que lhe cumpria lucrar de duas maneiras, cobrando da
experiência ambas as moedas, isto é, vendendo também as suas alparcas: ao que nos
não opusemos, por nos parecer que nada tinha isso com o essencial da doutrina.
Consistiu a experiência de Titané em uma
coisa que não sei como diga para que a entendam. Usam neste reino de Bungo, e
em outros destas remotas partes, um papel feito de casca de canela moída e
goma, obra mui prima, que eles talham depois em pedaços de dois palmos de
comprimento, e meio de largura, nos quais desenham com vivas e variadas cores,
e pela língua do país, as notícias da semana, políticas, religiosas, mercantis e
outras, as novas leis do reino, os nomes das fustas, lancharas, balões e toda a
casta de barcos que navegam estes mares, ou em guerra, que a há freqüente, ou
de veniaga. E digo as notícias da semana, porque as ditas folhas são feitas de
oito em oito dias, em grande cópia, e distribuídas ao gentio da terra, a troco
de uma espórtula, que cada um dá de bom grado para ter as notícias primeiro que
os demais moradores. Ora, o nosso Titané não quis melhor esquina que este
papel, chamado pela nossa língua Vida e claridade das coisas mundanas e
celestes, título expressivo, ainda que um tanto derramado. E, pois, fez inserir
no dito papel que acabavam de chegar notícias frescas de toda a costa de
Malabar e da China, conforme as quais não havia outro cuidado que não fossem as
famosas alparcas dele Titané; que estas alparcas eram chamadas as primeiras do
mundo, por serem mui sólidas e graciosas; que nada menos de vinte e dois
mandarins iam requerer ao imperador para que, em vista do esplendor das famosas
alparcas de Titané, as primeiras do universo, fosse criado o título honorífico
de "alparca do Estado", para recompensa dos que se distinguissem em
qualquer disciplina do entendimento; que eram grossíssimas as encomendas feitas
de todas as partes, às quais ele Titané ia acudir, menos por amor ao lucro do
que pela glória que dali provinha à nação; não recuando, todavia, do propósito
em que estava e ficava de dar de graça aos pobres do reino umas cinqüenta
corjas das ditas alparcas, conforme já fizera declarar a el-rei e o repetia
agora; enfim, que apesar da primazia no fabrico das alparcas assim reconhecida
em toda a terra, ele sabia os deveres da moderação, e nunca se julgaria mais do
que um obreiro diligente e amigo da glória do reino de Bungo.
A leitura desta notícia comoveu
naturalmente a toda a cidade Fuchéu, não se falando em outra coisa durante toda
aquela semana. As alparcas de Titané, apenas estimadas, começaram de ser
buscadas com muita curiosidade e ardor, e ainda mais nas semanas seguintes,
pois não deixou ele de entreter a cidade, durante algum tempo, com muitas e
extraordinárias anedotas acerca da sua mercadoria. E dizia-nos com muita graça:
- Vede
que obedeço ao principal da nossa doutrina, pois não estou persuadido da
superioridade das tais alparcas, antes as tenho por obra vulgar, mas fi-lo crer
ao povo, que as vem comprar agora, pelo preço que lhes taxo.
- Não me parece, atalhei, que tenhais
cumprido a doutrina em seu rigor e substância, pois não nos cabe inculcar aos
outros uma opinião que não temos, e sim a opinião de uma qualidade que não
possuímos; este é, ao certo, o essencial dela.
Dito isto, assentaram os dois que era a
minha vez de tentar a experiência, o que imediatamente fiz; mas deixo de a
relatar em todas as suas partes, por não demorar a narração da experiência de
Diogo Meireles, que foi a mais decisiva das três, e a melhor prova desta
deliciosa invenção do bonzo. Direi somente que, por algumas luzes que tinha de
música e charamela, em que aliás era mediano, lembrou-me congregar os
principais de Fuchéu para que me ouvissem tanger o instrumento; os quais
vieram, escutaram e foram-se repetindo que nunca antes tinham ouvido coisa tão
extraordinária. E confesso que alcancei um tal resultado com o só recurso dos
ademanes, da graça em arquear os braços para tomar a charamela, que me foi
trazida em uma bandeja de prata, da rigidez do busto, da unção com que alcei os
olhos ao ar, e do desdém e ufania com que os baixei à mesma assembléia, a qual
neste ponto rompeu em um tal concerto de vozes e exclamações de entusiasmo, que
quase me persuadiu do meu merecimento.
Mas, como digo, a mais engenhosa de todas
as nossas experiências, foi a de Diogo Meireles. Lavrava então na cidade uma
singular doença, que consistia em fazer inchar os narizes, tanto e tanto, que
tomavam metade e mais da cara ao paciente, e não só a punham horrenda, senão
que era molesto carregar tamanho peso. Conquanto os físicos da terra
propusessem extrair os narizes inchados, para alívio e melhoria dos enfermos,
nenhum destes consentia em prestar-se ao curativo, preferindo o excesso à
lacuna, e tendo por mais aborrecível que nenhuma outra coisa a ausência daquele
órgão. Neste apertado lance, mais de um recorria à morte voluntária, como um
remédio, e a tristeza era muita em toda a cidade Fuchéu. Diogo Meireles, que
desde algum tempo praticava a medicina, segundo ficou dito atrás, estudou a
moléstia e reconheceu que não havia perigo em desnarigar os doentes, antes era
vantajoso por lhes levar o mal, sem trazer fealdade, pois tanto valia um nariz
disforme e pesado como nenhum; não alcançou, todavia, persuadir os infelizes ao
sacrifício. Então ocorreu-lhe uma
graciosa invenção. Assim foi que, reunindo muitos físicos, filósofos, bonzos,
autoridades e povo, comunicou-lhes que tinha um segredo para eliminar o órgão;
e esse segredo era nada menos que substituir o nariz achacado por um nariz são,
mas de pura natureza metafísica, isto é, inacessível aos sentidos humanos, e
contudo tão verdadeiro ou ainda mais do que o cortado; cura esta praticada por
ele em várias partes, e muito aceita aos físicos de Malabar. O assombro da
assembléia foi imenso, e não menor a incredulidade de alguns, não digo de
todos, sendo que a maioria não sabia que acreditasse, pois se lhe repugnava a
metafísica do nariz, cedia entretanto à energia das palavras de Diogo Meireles,
ao tom alto e convencido com que ele expôs e definiu o seu remédio. Foi então
que alguns filósofos, ali presentes, um tanto envergonhados do saber de Diogo
Meireles, não quiseram ficar-lhe atrás, e declararam que havia bons fundamentos
para uma tal invenção, visto não ser o homem todo outra coisa mais do que um
produto da idealidade transcendental; donde resultava que podia trazer, com
toda a verossimilhança, um nariz metafísico, e juravam ao povo que o efeito era
o mesmo. [70]
A assembléia aclamou a Diogo Meireles; e os
doentes começaram de buscá-lo, em tanta cópia, que ele não tinha mãos a medir.
Diogo Meireles desnarigava-os com muitíssima arte; depois estendia
delicadamente os dedos a uma caixa, onde fingia ter os narizes substitutos,
colhia um e aplicava-o ao lugar vazio. Os enfermos, assim curados e supridos,
olhavam uns para os outros, e não viam nada no lugar do órgão cortado; mas,
certos e certíssimos de que ali estava o órgão substituto, e que este era
inacessível aos sentidos humanos, não se davam por defraudados, e tornavam aos
seus ofícios. Nenhuma outra prova quero da eficácia da doutrina e do fruto
dessa experiência, senão o fato de que todos os desnarigados de Diogo Meireles
continuaram a prover-se dos mesmos lenços de assoar. O que tudo deixo relatado
para glória do bonzo e benefício do mundo. [71]
O
anel de Polícrates[72]
A - Lá vai o Xavier.
Z - Conhece o Xavier?
A - Há que anos! Era um nababo, rico, podre
de rico, mas pródigo...
Z - Que rico? que pródigo?
A -
Rico e pródigo, digo-lhe eu. Bebia pérolas diluídas em néctar. Comia línguas de
rouxinol. Nunca usou papel mata-borrão, por achá-lo vulgar e mercantil;
empregava areia nas cartas, mas uma certa areia feita de pó de diamante. E
mulheres! Nem toda a pompa de Salomão pode dar idéia do que era o Xavier nesse
particular. Tinha um serralho: a linha grega, a tez romana, a exuberância
turca, todas as perfeições de uma raça, todas as prendas de um clima, tudo era
admitido no harém do Xavier. Um dia enamorou-se loucamente de uma senhora de
alto coturno, e enviou-lhe de mimo três estrelas do Cruzeiro, que então contava
sete, e não pense que o portador foi aí qualquer pé-rapado. Não, senhor. O
portador foi um dos arcanjos de Milton, que o Xavier chamou na ocasião em que
ele cortava o azul para levar a admiração dos homens ao seu velho pai inglês.
Era assim o Xavier. Capeava os cigarros com um papel de cristal, obra
finíssima, e, para acendê-los, trazia consigo uma caixinha de raios do sol. As
colchas da cama eram nuvens purpúreas, e assim também a esteira que forrava o
sofá de repouso, a poltrona da secretária e a rede. Sabe quem lhe fazia o café,
de manhã? A Aurora, com aqueles mesmos dedos cor-de-rosa, que Homero lhe pôs.
Pobre Xavier! Tudo o que o capricho e a riqueza podem dar, o raro, o esquisito,
o maravilhoso, o indescritível, o inimaginável, tudo teve e devia ter, porque
era um galhardo rapaz, e um bom coração. Ah! fortuna, fortuna! Onde estão agora
as pérolas, os diamantes, as estrelas, as nuvens purpúreas? Tudo perdeu, tudo
deixou ir por água abaixo; o néctar virou zurrapa, os coxins são a pedra dura
da rua, não manda estrelas às senhoras, nem tem arcanjos às suas ordens ...[73]
Z - Você está enganado. O Xavier? Esse
Xavier há de ser outro. O Xavier nababo! Mas o Xavier que ali vai nunca teve
mais de duzentos mil-réis mensais; é um homem poupado, sóbrio, deita-se com as
galinhas, acorda com os galos, e não escreve cartas a namoradas, porque não as tem.
Se alguma expede aos amigos é pelo correio. Não é mendigo, nunca foi nababo.
A - Creio; esse é o Xavier exterior. Mas
nem só de pão vive o homem. Você fala de Marta, eu falo-lhe de Maria; falo do
Xavier especulativo...
Z - Ah! - Mas ainda assim, não acho
explicação; não me consta nada dele. Que livro, que poema, que quadro...
A - Desde quando o conhece?
Z - Há uns quinze anos.
A - Upa! Conheço-o há muito mais tempo,
desde que ele estreou na Rua do Ouvidor, em pleno Marquês de Paraná. Era um
endiabrado, um derramado, planeava todas as cousas possíveis, e até contrárias,
um livro, um discurso, um medicamento, um jornal, um poema, um romance, uma
história, um libelo político, uma viagem à Europa, outra ao sertão de Minas,
outra à lua, em certo balão que inventara, uma candidatura política, e
arqueologia, e filosofia, e teatro, etc., etc., etc. Era um saco de espantos.
Quem conversava com ele sentia vertigens. Imagine uma cachoeira de idéias e
imagens, qual mais original, qual mais bela, às vezes extravagante, às vezes
sublime. Note que ele tinha a convicção dos seus mesmos inventos. Um dia, por
exemplo, acordou com o plano de arrasar o morro do Castelo, a troco das
riquezas que os jesuítas ali deixaram, segundo o povo crê. Calculou-as logo em
mil contos, inventariou-as com muito cuidado, separou o que era moeda, mil
contos, do que eram obras de arte e pedrarias; descreveu minuciosamente os
objetos, deu-me dous tocheiros de ouro...
Z - Realmente...
A - Ah! impagável. Quer saber de outra?
Tinha lido as cartas do Cônego Benigno, e resolveu ir logo ao sertão da Bahia,
procurar a cidade misteriosa. Expôs-me o plano, descreveu-me a arquitetura
provável da cidade, os templos, os palácios, gênero etrusco, os ritos, os
vasos, as roupas, os costumes...
Z - Era então doudo?
A - Originalão apenas. Odeio os carneiros
de Panúrgio, dizia ele, citando Rabelais: Comme vous savez estre du mouton le naturel,
toujours suivre le premier, quelque part qu'il aille. Comparava a trivialidade
a uma mesa redonda de hospedaria, e jurava que antes comer um mau bife em mesa
separada.
Z - Entretanto, gostava da sociedade.
A - Gostava da sociedade, mas não amava os
sócios. Um amigo nosso, o Pires, fez-lhe um dia esse reparo; e sabe o que é que
ele respondeu? Respondeu com um apólogo, em que cada sócio figurava ser uma
cuia d'água, e a sociedade uma banheira. - Ora, eu não posso lavar-me em cuias
d'água, foi a sua conclusão.
Z - Nada modesto. Que lhe disse o Pires?
A - O Pires achou o apólogo tão bonito que
o meteu numa comédia, daí a tempos. Engraçado é que o Xavier ouviu o apólogo no
teatro, e aplaudiu-o muito, com entusiasmo; esquecera-se da paternidade; mas a
voz do sangue... Isto leva-me à explicação da atual miséria do Xavier.
Z - É verdade, não sei como se possa
explicar que um nababo...
A - Explica-se facilmente. Ele espalhava
idéias à direita e à esquerda, como o céu chove, por uma necessidade física, e
ainda por duas razões. A primeira é que era impaciente, não sofria a gestação
indispensável à obra escrita. A segunda é que varria com os olhos uma linha tão
vasta de cousas, que mal poderia fixar-se em qualquer delas. Se não tivesse o
verbo fluente, morreria de congestão mental; a palavra era um derivativo. As
páginas que então falava, os capítulos que lhe borbotavam da boca, só
precisavam de uma arte de os imprimir no ar, e depois no papel, para serem
páginas e capítulos excelentes, alguns admiráveis. Nem tudo era límpido; mas a
porção límpida superava a porção turva, como a vigília de Homero paga os seus
cochilos. Espalhava tudo, ao acaso, as mãos cheias, sem ver onde as sementes
iam cair; algumas pegavam logo...
Z - Como a das cuias.
A - Como a das cuias. Mas, o semeador tinha
a paixão das cousas belas, e, uma vez que a árvore fosse pomposa e verde, não
lhe perguntava nunca pela semente sua mãe. Viveu assim longos anos, despendendo
à toa, sem cálculo, sem fruto, de noite e de dia, na rua e em casa, um
verdadeiro pródigo. Com tal regímen, que era a ausência de regímen, não admira
que ficasse pobre e miserável. Meu amigo, a imaginação e o espírito têm
limites; a não ser a famosa botelha dos saltimbancos e a credulidade dos
homens, nada conheço inesgotável debaixo do sol. O Xavier não só perdeu as
idéias que tinha, mas até exauriu a faculdade de as criar; ficou o que sabemos.
Que moeda rara se lhe vê hoje nas mãos? que sestércio de Horácio? que dracma de
Péricles? Nada. Gasta o seu lugar-comum, rafado das mãos dos outros, come à
mesa redonda, fez-se trivial, chocho...
Z - Cuia, enfim.
A - Justamente: cuia.
Z - Pois muito me conta. Não sabia nada
disso. Fico inteirado; adeus.
A - Vai a negócio?
Z - Vou a um negócio.
A - Dá-me dez minutos?
Z - Dou-lhe quinze.
A - Quero referir-lhe a passagem mais
interessante da vida do Xavier. Aceite o meu braço, e vamos andando. Vai para a
Praça? Vamos juntos. Um caso interessantíssimo. Foi ali por 1869 ou 70, não me
recordo; ele mesmo é que me contou. Tinha perdido tudo; trazia o cérebro gasto,
chupado, estéril, sem a sombra de um conceito, de uma imagem, nada. Basta dizer
que um dia chamou rosa a uma senhora, - "uma bonita rosa"; falava do
luar saudoso, do sacerdócio da imprensa, dos jantares opíparos, sem acrescentar
ao menos um relevo qualquer a toda essa chaparia de algibebe. Começara a ficar hipocondríaco; e, um
dia, estando à janela, triste, desabusado das cousas, vendo-se chegado a nada,
aconteceu passar na rua um taful a cavalo. De repente, o cavalo corcoveou, e o
taful veio quase ao chão; mas sustentou-se, e meteu as esporas e o chicote no
animal; este empina-se, ele teima; muita gente parada na rua e nas portas; no
fim de dez minutos de luta, o cavalo cedeu e continuou a marcha. Os
espectadores não se fartaram de admirar o garbo, a coragem, o sangue-frio, a
arte do cavaleiro. Então o Xavier, consigo, imaginou que talvez o cavaleiro não
tivesse ânimo nenhum; não quis cair diante de gente, e isso lhe deu a força de
domar o cavalo. E daí veio uma idéia:
comparou a vida a um cavalo xucro ou manhoso; e acrescentou sentenciosamente:
Quem não for cavaleiro, que o pareça. Realmente, não era uma idéia
extraordinária; mas a penúria do Xavier tocara a tal extremo, que esse cristal
pareceu-lhe um diamante. Ele repetiu-a dez ou doze vezes, formulou-a de vários
modos, ora na ordem natural, pondo primeiro a definição, depois o complemento;
ora dando-lhe a marcha inversa, trocando palavras, medindo-as, etc.; e tão
alegre, tão alegre como casa de pobre em dia de peru. De noite, sonhou que
efetivamente montava um cavalo manhoso, que este pinoteava com ele e o sacudia
a um brejo. Acordou triste; a manhã, que era de domingo e chuvosa, ainda mais o
entristeceu; meteu-se a ler e a cismar. Então lembrou-se... Conhece o caso do
anel de Polícrates?
Z - Francamente, não.
A - Nem eu; mas aqui vai o que me disse o
Xavier. Polícrates governava a ilha de Samos. Era o rei mais feliz da terra; tão feliz, que começou a recear
alguma viravolta da Fortuna, e, para aplacá-la antecipadamente, determinou
fazer um grande sacrifício: deitar ao mar o anel precioso que, segundo alguns,
lhe servia de sinete. Assim fez; mas a Fortuna andava tão apostada em cumulá-lo
de obséquios, que o anel foi engulido por um peixe, o peixe pescado e mandado
para a cozinha do rei, que assim voltou à posse do anel. Não afirmo nada a
respeito desta anedota; foi ele quem me contou, citando Plínio, citando...
Z - Não ponha mais na carta. O Xavier
naturalmente comparou a vida, não a um cavalo, mas...
A - Nada disso. Não é capaz de adivinhar o plano estrambótico do pobre-diabo.
Experimentemos a fortuna, disse ele; vejamos se a minha idéia, lançada ao mar,
pode tornar ao meu poder, como o anel de Polícrates, no bucho de algum peixe,
ou se o meu caiporismo será tal, que nunca mais lhe ponha a mão? [74]
Z - Ora essa!
A - Não é estrambótico? Polícrates
experimentara a felicidade; o Xavier quis tentar o caiporismo; intenções
diversas, ação idêntica. Saiu de casa, encontrou um amigo, travou conversa,
escolheu assunto, e acabou dizendo o que era a vida, um cavalo xucro ou
manhoso, e quem não for cavaleiro que o pareça. Dita assim, esta frase era
talvez fria; por isso o Xavier teve o cuidado de descrever primeiro a sua
tristeza, o desconsolo dos anos, o malogro dos esforços, ou antes os efeitos da
imprevidência, e quando o peixe ficou de boca aberta, digo, quando a comoção do
amigo chegou ao cume, foi que ele lhe atirou o anel, e fugiu a meter-se em
casa. Isto que lhe conto é natural, crê-se, não é impossível; mas agora começa
a juntar-se à realidade uma alta dose de imaginação. Seja o que for, repito o
que ele me disse. Cerca de três semanas depois, o Xavier jantava pacificamente
no Leão de Ouro ou no Globo, não me lembro bem, e ouviu de outra mesa a mesma
frase sua, talvez com a troca de um adjetivo. "Meu pobre anel, disse ele,
eis-te enfim no peixe de Polícrates." Mas a idéia bateu as asas e voou, sem
que ele pudesse guardá-la na memória. Resignou-se. Dias depois, foi convidado a
um baile: era um antigo companheiro dos tempos de rapaz, que celebrava a sua
recente distinção nobiliária. O Xavier aceitou o convite, e foi ao baile, e
ainda bem que foi, porque entre o sorvete e o chá ouviu de um grupo de pessoas
que louvavam a carreira do barão, a sua vida próspera, rígida, modelo, ouviu
comparar o barão a um cavaleiro emérito. Pasmo dos ouvintes, porque o barão não
montava a cavalo.
Mas o panegirista explicou que a vida não é
mais do que um cavalo xucro ou manhoso, sobre o qual ou se há de ser cavaleiro
ou parecê-lo, e o barão era-o excelente. - " Entra, meu querido anel,
disse o Xavier, entra no dedo de Polícrates". Mas de novo a idéia bateu as asas, sem querer
ouvi-lo. Dias depois...
Z - Adivinho o resto: uma série de
encontros e fugas do mesmo gênero.
A - Justo.
Z - Mas, enfim, apanhou-o um dia.
A - Um dia só, e foi então que me contou o
caso digno de memória. Tão contente que ele estava nesse dia! Jurou-me que ia
escrever, a propósito disto, um conto fantástico, à maneira de Edgar Poe, uma
página fulgurante, pontuada de mistérios, - são
as suas próprias expressões; - e pediu-me
que o fosse ver no dia seguinte. Fui; o anel fugira-lhe outra vez. "Meu
caro A, disse-me ele, com um sorriso fino e sarcástico, tens em mim o
Polícrates do caiporismo; nomeio-te meu ministro honorário e gratuito".
Daí em diante foi sempre a mesma coisa. Quando ele supunha pôr a mão em cima da
idéia, ela batia as asas, plás, plás, plás, e perdia-se no ar, como as figuras
de um sonho. Outro peixe a engolia e trazia, e sempre o mesmo desenlace. Mas
dos casos que ele me contou naquele dia, quero dizer-lhe três...
Z - Não posso; lá se vão os quinze minutos.
A - Conto-lhe só três. Um dia, o Xavier
chegou a crer que podia enfim agarrar a fugitiva, e fincá-la perpetuamente no
cérebro. Abriu um jornal de oposição, e leu estupefato estas palavras: "O
ministério parece ignorar que a política é, como a vida, um cavalo xucro ou
manhoso, e, não podendo ser bom cavaleiro, porque nunca o foi, devia ao menos
parecer que o é". - "Ah! enfim! exclamou o Xavier, cá estás engastado
no bucho do peixe; já me não podes fugir". Mas, em vão! a idéia fugia-lhe,
sem deixar outro vestígio mais do que uma confusa reminiscência. Sombrio,
desesperado, começou a andar, a andar, até que a noite caiu; passando por um
teatro, entrou; muita gente, muitas luzes, muita alegria; o coração
aquietou-se-lhe. Cúmulo de benefícios: era uma comédia do Pires, uma comédia
nova. Sentou-se ao pé do autor, aplaudiu a obra com entusiasmo, com sincero
amor de artista e de irmão. No segundo ato, cena VIII, estremeceu. "D.
Eugênia, diz o galã a uma senhora, o cavalo pode ser comparado à vida, que é
também um cavalo xucro ou manhoso; quem não for bom cavaleiro, deve cuidar de
parecer que o é". O autor, com o olhar tímido, espiava no rosto do Xavier
o efeito daquela reflexão, enquanto o Xavier repetia a mesma súplica das outras
vezes: - "Meu querido anel..."
Z - Et nunc et semper... Venha o último
encontro, que são horas.
A -
o último foi o primeiro. Já lhe disse que o Xavier transmitira a idéia a um
amigo. Uma semana depois da comédia cai o amigo doente, com tal gravidade que
em quatro dias estava à morte. O Xavier corre a vê-lo; e o infeliz ainda o pôde
conhecer, estender-lhe a mão fria e trêmula, cravar-lhe um longo olhar baço da
última hora, e, com a voz sumida, eco do sepulcro, soluçar-lhe: "Cá vou,
meu Caro Xavier, o cavalo xucro ou manhoso da vida deitou-me ao chão: se fui
mau cavaleiro, não sei; mas forcejei por parecê-lo bom". Não se ria; ele
contou-me isto com lágrimas. Contou-me também que a idéia ainda esvoaçou alguns
minutos sobre o cadáver, faiscando as belas asas de cristal, que ele cria ser
diamante depois estalou um risinho de escárnio, ingrato e parricida, e fugiu
como das outras vezes, metendo-se no cérebro de alguns sujeitos, amigos da
casa, que ali estavam, transidos de dor, e recolheram com saudade esse pio
legado do defunto. Adeus.
[1] Leia essa
advertência, mas se não entender, não se preocupe. Estudaremos juntos.
[2] Esse é um dos mais
famosos contos de Machado, antes de ler seria interessante pesquisar um pouco
sobre o tema da loucura na obra Machadiana, pois esse é o assunto central do
conto e de algumas outras obras de Machado.
[3] Machado costuma
trabalhar coma idéia do exagero da ciência como uma crítica a seu tempo.
[4] Observe o
pragmatismo na escolha da mulher contrariando o espírito romântico da escolha
feminina.
[5] Veja que Machado
não está “do lado da ciência”, veja que a previsão de Bacamarte falhou.
[6] Observe como ele
convence a sociedade de uma verdade não muito concreta e depois vai conseguindo
dessa sociedade concessões até chegar ao absurdo de trancar os sadios. Segundo
machado o poder da ciência tem uma completa relação com os “sim” que a
sociedade vai dando ao longo do seu avanço.
[7] Perceba a crítica
sutil a cobrança de impostos.
[8] Observe a
consciência de Bacamarte de agradar a sociedade onde estava. Essa é uma de suas características mais peculiares.
[9] Que leitura
você faz disso?
[10] Que leitura da
sociedade você faz?
[11] Explique o motivo
do uso do termo “finalmente”.
[12] Casa de loucos
[13] Esse conceito
“caridade como tempero” merece uma reflexão.
[14] Aqui ele deixa
claro qual é o seu objetivo com a casa. Perceba que tem uma real relação com a
ciência e a humanidade. Mas os questionamentos de Machado nesse e em outros
textos é que em nome da ciência e da humanidade deve se sacrificar tudo? Reflita também na alusão de Fernando Pessoa
no seu poema “Mar português”: “ Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.”
Você concorda?
[15] Apesar de a maioria
dos loucos não terem suas histórias reveladas, principalmente porque o conto
tem uma limitação de linhas. Machado
conta algumas histórias dos moradores da Casa Verde, essa é a primeira. Fique
atento às próximas.
[16] O que significa
essa reflexão de Bacamarte?
[17] Mais uma
característica alusiva a Bacamarte. Alguns vestibulares pedem para você
descrever seus traços propostos por
Machado no texto.
[18] Uma das mais
célebres frases machadianas. Você conseguiu entendê-la?
[19] Qual a relação
entre a história de Costa e o terror?
[20] Essa frase
sintetiza bem esse capítulo.
[21] Observe bem que o
ideólogo dessa rebelião o faz por interesses próprios e note também que perfil
de povo ou massa traça Machado nesse capítulo.
[22] Observe que a
verdade de um barbeiro será a verdade do estudioso Bacamarte no final da
história.
[23] Observe além da
alusão histórica...
[24] Bacamarte domina a
retórica.
[25] Tente perceber qual
é o elemento inesperado e se de fato ele
é inesperado.
[26] Quais são essas angústias? São dele ou da
humanidade?
[27] Quais são eles?
[28] Aqui Machado traça
o perfil do povo.
[29] Veja o avanço da
ciência da primeira fala de Bacamarte até essa.
[30] No lugar de
“demente” como você classificaria a mulher de Bacamarte?
[31] Definição de Simão
Bacamarte.
[32] Leia com atenção
esse capítulo.
[33] Veja a mudança de
perspectivas agora louco são os normais.
[34] Entendeu com
clareza isso?
[35] Costumeiramente
esse final costuma estar na prova. Leia com atenção.
[36] Ao final da leitura
você deveria saber o que significa ser um medalhão. Leia focando-se nisso.
[37] Observe que o valor
não está na escolha da profissão.
[38] Perceba o conselho
de ter mais de uma profissão e escolher pela “ambição”.
[39] Observe
atenciosamente o conceito.
[40] O que você entende
sobre a idade sugerida por Machado?
[41] Observe com cuidado
a definição de inópia mental.
[42] Você percebe uma
crítica nessas escolhas?
[43] De que maneira há
um elogio as livrarias?
[44] Leia-se lembrando
da crítica sutil de Machado.
[45] É importante você
ser capaz de dizer quais são eles.
[46] É importante
lembrar que O Príncipe de Maquiavel são conselhos. Você sabe em que circunstâncias foram dados?
[47] Observe esse
narrador. Que característica é essa?
[48] Leia todo esse
parágrafo observando que nele ele conta o que lia Lobo Alves.
[49] Em torno da Chinela
há várias afirmações no texto. Até de ser uma metáfora. É importante saber
quais são as alusões feitas a ela e qual é afinal, a verdadeira.
[50] Porque a otomana
reaviva a memória do rapaz?
[51] Utiliza-se isso em
questões sobre esse conto. Esse pensamento dele é verdadeiro?
[52] Descrição
romântica.
[53] Você entende essa
citação?
[54][54] É importante que ao
final do conto vocês sejam capazes de
perceber que D. Benedita é a representação de um tipo social. E ser capaz de
definir qual é?
[55] Percebe a
mediocridade dessa afirmação?
[56] As intenções
ocultas aqui são costumeiramente apresentadas por Machado. Segundo o autor
ninguém diz nada sem uma segunda intenção.
[57] Consegue definir o
tipo de narrador?
[58] Por essas atitudes
você seria capaz de traçar um perfil dessa mulher...
[59] A mulher era mesmo
um anjo? O que realmente estava acontecendo que a limitação de D. Benedita não
dava conta de perceber?
[60] Típica descrição
Machadiana. Tente observar o que há de peculiar e procure ler uma descrição de
figura feminina de José de Alencar como
Senhora e procure estabelecer diferenças.
[61] Preste atenção as
peculiaridades do narrador.
[62] Percebem como essa
mulher e desocupada e trabalhou um dia inteiro para escrever uma carta e no
final ainda enfadou-se? E a carta não era
das melhores!
[63] A concepção de
leitura aqui é romântica. Você considera que ela está sendo criticada?
[64] Qual o sentido
dessa metáfora?
[65] Percebe a
volubilidade da personagem Benedita?
[66] Não é uma
referência ao conto anterior.
[67] Observe que a
concepção sobre a ciência é semelhante ao conto O Alienista.
[68] Percebe a ironia.
Festejar a origem dos grilos?
[69] Perceba como
Machado, ao estabelecer esse juízo de valor, que não é dele, mas da sociedade
onde está inserindo, sugere que a base é a opinião, muito mais que a realidade.
Assim, esse conto se casa um pouco com a
Teoria do Medalhão.
[70] Trazendo para o
nosso tempo você seria capaz de dizer ou dar um exemplo de uma ação como essa?
[71] Machado em seus
manuscritos diz que esse texto trata de charlatões. Você consegue perceber
isso?
[72] Em muitos textos de
Machado ele trabalha o tema da sorte e do caiporismo (azar) e esse é um deles.
Leia buscando perceber isso.
[73] Não é muito comum
ver Machado criando imagens como essas.
[74] Essa é a teoria que
rege Xavier. Ele é o contrário de Polícrates e tem uma visão pessimista da
vida. Traço da construção de texto
Machadiana e também espírito de sua
época.
Nenhum comentário:
Postar um comentário