terça-feira, 21 de outubro de 2014

As Meninas - Las Meninas de Velásquez - Arte para a prova do Enem





O pintor está ligeiramente afastado do quadro. Lança um olhar em direção ao
modelo; talvez se trate de acrescentar um último toque, mas é possível também que
o primeiro traço não tenha ainda sido aplicado. O braço que segura o pincel está
dobrado para a esquerda, na direção da palheta; permanece imóvel, por um instante,
entre a tela e as cores. Essa mão hábil está pendente do olhar; e o olhar, em troca,
repousa sobre o gesto suspenso. Entre a fina ponta do pincel e o gume do olhar, o
espetáculo vai liberar seu volume.
Não sem um sistema sutil de evasivas. Distanciando-se um pouco, o pintor
colocou-se ao lado da obra na qual trabalha. Isso quer dizer que. para o espectador
que no momento olha, ele está à direita de seu quadro, o qual ocupa toda a extremidade
esquerda. A esse mesmo espectador o quadro volta as costas: dele só se
pode perceber o reverso, com a imensa armação que o sustenta. O pintor, em
contrapartida, é perfeitamente visível em toda a sua estatura; de todo modo, ele não
[pág. 03] está encoberto pela alta tela que, talvez, irá absorvê-lo logo em seguida,
quando, dando um passo em sua direção, se entregará novamente a seu trabalho; sem
dúvida, nesse mesmo instante, ele acaba de aparecer aos olhos do espectador, surgindo
dessa espécie de grande gaiola virtual que a superfície que ele está pintando
projeta para trás. Podemos vê-lo agora, num instante de pausa, no centro neutro
dessa oscilação. Seu talhe escuro, seu rosto claro são meios-termos entre o visível e
o invisível: saindo dessa tela que nos escapa, ele emerge aos nossos olhos; mas
quando, dentro em pouco, der um passo para a direita, furtando-se aos nossos
olhares, achar-se-á colocado bem em face da tela que está pintando; entrará nessa região
onde seu quadro, negligenciado por um instante, se lhe vai tornar de novo
visível, sem sombra nem reticência. Como se o pintor não pudesse ser ao mesmo
tempo visto no quadro em que está representado e ver aquele em que se aplica a representar
alguma coisa. Ele reina no limiar dessas duas visibilidades incompatíveis.
O pintor olha, o rosto ligeiramente virado e a cabeça inclinada para o ombro.
Fixa um ponto invisível, mas que nós, espectadores, podemos facilmente determinar,
pois que esse ponto somos nós mesmos: nosso corpo, nosso rosto, nossos olhos. O
espetáculo que ele observa é, portanto, duas vezes invisível: uma vez que não é
representado no espaço do quadro e uma vez que se situa precisamente nesse ponto
cego, nesse esconderijo essencial onde nosso olhar se furta a nós mesmos no
momento em que olhamos. E, no entanto, como poderíamos deixar de ver essa
invisibilidade, que está aí sob nossos olhos, já que ela tem no próprio quadro seu
sensível equivalente, sua figura selada? Poder-se-ia, com efeito, adivinhar o que o
pintor olha, se fosse possível lançar os olhos sobre a tela a que se aplica; desta,
porém, só se distingue a [pág. 04] textura, os esteios na horizontal e, na vertical, o
oblíquo do cavalete. O alto retângulo monótono que ocupa toda a parte esquerda do
quadro real e que figura o verso da tela representada reconstituiu, sob as espécies de
uma superfície, a in-visibilidade em profundidade daquilo que o artista contempla:
este espaço em que nós estamos, que nós somos. Dos olhos do pintor até aquilo que
ele olha, está traçada uma linha imperiosa que nós, os que olhamos, não poderíamos
evitar: ela atravessa o quadro real e alcança, à frente da sua superfície, o lugar de
onde vemos o pintor que nos observa; esse pontilhado nos atinge infalivelmente e
nos liga à representação do quadro.
(Michael Foucault)

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