quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

UESB - A audácia dessa mulher


A Audácia dessa Mulher – Ana Maria Machado
 por Mara Rute Lima 

Pela primeira vez, a UESB escolhe Ana Maria Machado para figurar entre as leituras obrigatórias do seu processo seletivo. O prazer de trabalhar com a obra dessa escritora que tanto admiro não tem preço. Ela, conterrânea de Machado de Assis, uma das primeiras mulheres a dirigir a Academia Brasileira de Letras e traduzida para 20 países, famosa por livros infantis escreveu mais de cem livros, que venderam acima de 18 milhões de exemplares.

Essa é a minha terceira leitura desta obra. Tenho o grave defeito de não conseguir explicar um livro por ecos de leituras passadas. Portanto, a cada lista de livros obrigatória o ritual é sempre o mesmo: compro a obra, leio, marco novamente e, às vezes, comparo minhas anotações com anotações anteriores. Mas dessa vez a tarefa é nova: é a primeira vez que transcrevo Ana Maria para um vestibular e foi um prazer enorme ter apresentado essa escritora para vocês, sobretudo pela leveza de sua escrita, por suas intercomunicações com grandes autores e, como ela nos apresentou uma faceta interessante de uma lacuna de um grande clássico machadiano.

Para entender esse livro que também é uma estrada para seu sonho de se tornar universitário é preciso ir por partes.
Segue aqui algumas a carta de Capitu e questões aplicadas no nosso curso on-line que estará disponível para inscrição aberta a partir do dia 10 de fevereiro. 

Eis a carta que é, na verdade, uma versão – a voz de Capitu para a famosa história contada por Bentinho. 
 
 
 
Vevey, 28 de março de 1911. 



Minha querida amiga Sancha, 



Bem imagino tua incredulidade ao receber esta carta. Seguramente me tens por morta e enterrada há mais de vinte anos. E subitamente te escrevo, da Europa, sem nem ao menos saber se estás viva ou se esta carta, afinal, te chega às mãos, visto que o único endereço que tenho é o de teus parentes no Paraná. Haveria tanto a dizer-te, sobre todas as cousas que se passaram nestes quarenta anos, contados dia a dia, desde a trágica manhã em que a catástrofe te trouxe a viuvez e deixou tua filhinha na orfandade. Inúmeras vezes compus este relato mentalmente, mas outras tantas o deixei de lado sem saber por onde começar, nem que palavras usar para dar conta das razões que me moveram. 
Sei agora que tenho pouco tempo e não me cabe mais adiar. Deixo ordens expressas para que este envelope te seja enviado após meu falecimento, que segundo o médico não deve tardar muito. Sei, assim, que teu olhar só estará percorrendo estas linhas quando não haverá mais resposta possível neste mundo. As lembranças e emoções que deito ao papel não têm mais o poder de mudar o curso dos acontecimentos. Meu gesto serve apenas para trazer-me, a mim, um pouco de paz. E talvez também a ti, garantindo-te a certeza de que não guardei ressentimentos de ti (sim, eu sabia, vi os olhares entre ti e meu marido). 
Antes de ir-me, gostaria de despedir-me de minha tão cara amiga de infância e de te dizer que só agora parto, aos 68 anos de idade, do outro lado do oceano, levando entre minhas melhores lembranças desta vida a preciosa amizade que nos fez compartir momentos de alegria e de dor, mas que não foi capaz de me fazer escolher a total sinceridade para contigo nestes quase quarenta anos em que a vida me arrancou de nossa cidade luminosa, beijada e batida pelo mar e me transplantou para estas montanhas, onde me deixou encerrada e sem horizonte. 
Ao leres o ocorrido, na certa entenderás que era impossível que eu me dirigisse a ti sem te magoar ainda mais. Só por isso não o fiz, apesar de todas as saudades e doces memórias. Agora, porém, a verdade é um dever. Espero que me compreendas, me perdoes como te perdoei, e rezes por mim, intercedendo ao Padre Eterno por esta pobre alma a quem muito poderá ser perdoado porque muito amou, segundo promete a Escritura. Acompanha esta carta um caderno de receitas que mamãe me deu pouco depois de sairmos do colégio, e no qual nunca mais escrevi desde a manhã em que ficaste viúva, quando nele fizera as últimas anotações, antes de saber da tragédia. Verás que ao longo do tempo, além de nele copiar receitas de cozinha e maneiras de fazer modelos de tricot e crochet, de quando em quando depositei em suas páginas registros de meu estado de espírito. Por vezes foi ele meu único amigo confiável, naqueles momentos que bem conheces, em que nossa condição de mulher nos obriga a agir com discrição e cautela, por vezes até com dissimulação. 
Sugiro que interrompas aqui a leitura desta carta e folheies as páginas do caderno — cujas receitas, se desejares, poderão depois ser passadas a tua filha para que não se perca inteiramente o saber de alguns sabores. Não precisas dizer-lhe que o caderno pertenceu a sua madrinha. Deixe-a na ilusão de que morri há muito tempo. Como verás, nem mesmo meu nome está mais na primeira página dos escritos[1]. Há certas memórias que, se ajudarmos, até Deus esquece. 
Com a leitura, poderás acompanhar o que me ia na alma. Confirmarás quanto eu sempre amei meu marido e como entre nós duas nunca houvera antes daquela fatídica noite cousa alguma que maculasse nossas simpatias, nossa amizade começada no colégio, continuada e nunca interrompida até que um lance de fortuna fez separar para sempre duas criaturas que prometiam ficar por muito tempo unidas. 
O que se seguiu à descoberta daquela noite, e que nem imaginas, tratarei de contar-te resumidamente. 
Na manhã seguinte, aturdida e abatida, escrevi aquelas notas em meu caderno e depois fui à missa com prima Justina. Ao regressar, soube que Santiago fora chamado às pressas à tua casa, porque teu marido se afogara. Não pude deixar de recordar, imediatamente, que ainda na véspera eu pensara em sua morte, e na minha também. Igualmente pensara na tua morte e na de meu marido, cheguei a pedir aos céus que elas se abatessem, tão ferida e dilacerada me encontrava eu com a descoberta da traição. Devido à lembrança dessas orações recentes, sentia-me como se meus pensamentos houvessem provocado a tragédia, como se a morte dele, tua viuvez e a orfandade de minha «filhada tivessem como causa única meus desejos secretos. Ao chegar a hora da encomendação e da partida do corpo, teu desespero foi muito além do que eu podia suportar. A olhar fixamente o cadáver, supliquei com todas as minhas forças que ele me levasse consigo, pensei em lançar-me ao mesmo mar que o levara e que agora me atraía, como se a única maneira de findar meu sofrimento fosse ser tragada pela mesma ressaca que o arrebatara e ainda bramia diante da casa. Nos dias e semanas seguintes, ajudei-te como pude a arrumar tuas cousas e preparar tua mudança para o Paraná. Por vezes desejava falar-te, contar que eu vira os olhares trocados por ti e Santiago. Outras vezes, desejava confessar-te que a morte que te atingiu fora invocada por mim. Não ousei. E depois de tua partida, continuamos nos escrevendo como se nada houvesse mudado em nossa amizade. De minha parte, essa correspondência constituiu uma mentira e uma falsidade que sempre me molestaram muito e só agora clareio. 
Nessas cartas, outra coisa que te ocultei foi o motivo que me fez vir para a Europa com meu filho. Eu já havia proposto antes a Santiago essa viagem, ou uma temporada em Petrópolis. Sofrendo de melancolia nessa ocasião, ele vivia calado e aborrecido. Dizia que os negócios andavam mal. Propus-lhe vender as joias e os objetos de algum valor, até que tornassem a andar bem. Respondeu-me secamente que não era preciso vender nada, pegou do chapéu e saiu. Então vivia assim, sempre irritado. Com o pequeno, ainda mais do que comigo, se tal era possível. Evitava-o quanto podia, respondia com aspereza a suas perguntas, fazia-o chorar a todo momento. Para ver se melhoravam as cousas, propus meter o menino ao colégio, de onde só viria aos sábados. Pois crês que nesse dia, o pai saía, buscava não jantar em casa e só entrava quando ele estava dormindo? Aos domingos, trancava-se no gabinete ou saía outra vez. Quando acaso se encontravam, era doloroso constatar o contraste entre o menino, alegre, turbulento, expansivo, cheio de riso e de amor, e a evidente aversão que lhe tinha o pai e que já não podia disfarçar. Como não disfarçava o horror que minha presença lhe causava. 
Houve, porém, um sábado em que se encontraram. Não sei o que houvera antes, mas logo antes de sairmos para a missa, o menino entrou correndo no gabinete do pai, chamando-o com sua alegria de sempre, querendo beijá-lo. Fui atrás, devagar, e cheguei a tempo de ver Santiago forçando o filho a tomar uma xícara de café[2], a ponto de empurrá-lo pela goela abaixo da criança. Como o pequeno não quisesse, o pai insistia. Mas depois mudou de ideia de repente, recuou, começou a beijar doudamente a cabecinha dele e a exclamar que não era pai dele. Ouvindo isso, decidi interferir. Entrei no gabinete, disse ao menino que saísse. 
Pedi explicações daquela cena e das lágrimas dos dois. Ele repetiu que não era o pai do menino. Estupefata e indignada com tamanha injúria, pensei que não resistiria à dor. Mas quis saber de onde vinha tal convicção, insisti para que falasse tudo, teimei para que fosse sincero, a fim de que eu soubesse do que estava sendo acusada e pudesse me defender. Acabei por lhe dizer que, se não achava que houvesse defesa possível, eu lhe pedia nossa separação. Já não podia mais! 
Minha querida Sancha, tanto tempo se passou, tantas dores se somaram a essa, e meu coração ainda se confrange ao recordar esses instantes que eu não acreditava estar vivendo, mas cuja realidade o próprio tempo se encarregou de confirmar. Pois Santiago passou então a acusar-me de ter tido meu filho com teu marido! Era demais! Até os defuntos! Nem os mortos escapavam aos seus ciúmes! 
Eu sabia a razão da acusação. Era a casualidade da semelhança. Como se não as houvesse na natureza... Seguramente te recordas de que teu pai mesmo gostava de mostrar como eu era parecida com o retrato de tua mãe que pendia na parede da sala. Lembra-me sua insistência em mostrar como nossas feições eram semelhantes, a testa principalmente e os olhos. Dizia até que nosso gênio era um só, parecíamos irmãs. Por isso, tu e eu seríamos tão amigas... 
De qualquer modo, a convicção de meu marido era sincera. De nada me valeria argumentar. Nem eu o desejava. Não se tratava mais da pessoa por quem me apaixonara ainda menina e com quem eu desejara compartilhar toda a vida. Desde então, dentro de mim, passei a chamá-lo pelo sobrenome, como se se tratasse de outro homem. Talvez fosse essa uma derradeira tentativa terna de preservar o apelido familiar para o menino que fora meu companheiro de folguedos, o rapaz que por tantos anos eu esperara, o homem dos primeiros tempos do casamento, que me deu tanta felicidade. Feliz como um passarinho que saiu da gaiola, dizia ele. Mal suspeitava eu que saíra apenas para dentro de um quarto cheio de espelhos, que me fazia supor estar entre as árvores e o céu aberto, mas se limitava a me prender, num vertiginoso jogo de ilusões que se repetiam ao infinito. 
Fui à igreja, confiei a Deus todas as minhas amarguras, na esperança de que Sua vontade um dia explicaria tudo, se assim o desejasse. Trouxe comigo a certeza de que a separação era indispensável. Eu não poderia conviver com tão infamante suspeita. De regresso, ao limpar a bandeja na cozinha, derramei o café frio da xícara na cuia que servia de caneca ao papagaio. A ave tomou e morreu. A bebida que Santiago forçava pela goela abaixo de nosso filho estava envenenada. Mais uma vez dissimulado, Santiago não quis que soubessem de nossa separação. Preferiu fazer algo diverso. Embarcamos num paquete como se fôramos de passeio para a Europa, numa viagem em que meus tormentos só não acabaram comigo de uma vez porque eu sabia que tinha que me fazer forte, pelo meu filho. Era meu único consolo. 
A bordo, conhecemos uma professora do Rio Grande, de quem me fiz amiga. Chamava-se Eugênia. Acabou vindo conosco para a Suíça e, depois que Santiago tornou ao Brasil, ficou ensinando a língua materna a meu filho e me fazendo companhia. Gostarias de conhecê-la, Sancha. Conversaríamos muito, as três. Sendo uma pessoa que desde cedo teve que trabalhar arduamente para ganhar seu sustento, Eugênia tinha um entendimento diferente das cousas do mundo, que me foi de muita valia. 
Ao cabo de alguns meses, convenci-me de que Santiago só podia estar doente, para ter imaginado uma cousa daquelas. Talvez algum dia pudesse curar-se daquela enfermidade. E entendi que meu filho seria mais feliz se soubesse que seu pai o queria. No afã de tentar assegurar ao menos um pouco dessa afeição, comecei a escrever cartas a Santiago. Respondia-me com brevidade e sequidão. Eu procurava mostrar-me cordata, até submissa, afetuosa — por vezes até me permitia revelar-me sinceramente saudosa. Mas de nada adiantou. Por uma antiga vizinha de nossa casa na Glória, que encontrei casualmente em Lausanne, soube que Santiago vinha algumas vezes à Europa e voltava com notícias minhas, como se acabasse de viver comigo. Mas a verdade é que nunca me procurou. Mais uma dissimulação, entre tantas... 
Decidi também simular. Já que estava mesmo vivendo uma nova vida, decretei para mim mesma a morte daquela moça alegre e feliz que gostava de bailes no Rio de Janeiro e levava uma vida tão mais leve. Abandonei meu apelido de menina e passei a me apresentar como Lina, usando a outra metade de meu nome. Mas sou Lina apenas para os poucos amigos íntimos. Todos me conhecem mesmo é como Madame Santiago. Com a ajuda de Eugênia, encontrei um posto de trabalho numa pensão para estrangeiros. De início, como ajudante de cozinha, depois como camareira. Aos poucos, passei a governanta. Era uma solução que garantia casa e comida para mim e o menino, permitindo-me que não tocasse no dinheiro que Santiago ocasionalmente enviava. Deixava-o como garantia para imprevistos. Dos meus próprios ganhos, custeava a educação de meu filho. 
Quando ele completou os estudos, quis muito voltar ao Brasil e ver o pai. Eu não tinha como impedi-lo, nem podia contar-lhe os verdadeiros motivos da separação. Além do mais, confesso que tinha alguma esperança de que esse encontro servisse para que Santiago reconhecesse como fora injusto com ele. Com o passar dos anos, as semelhanças de meu filho com teu marido tinham se atenuado enormemente. Bastava ver como o rapaz era bem mais baixo, menos cheio de corpo, e como todas as suas cores eram diversas, vivas. 
De minha parte, porém, eu não desejava mais contato algum com Santiago. Para mim, estava morto. Como eu para ele. Impus, então, uma condição para que meu filho retornasse ao Brasil. Primeiro, ele escreveria ao pai, contando que eu estava morta e enterrada. Não faria mesmo diferença para ninguém, já que eu não tinha mais família e havia anos não trocava notícias contigo, minha única amiga. Ninguém sofreria com essa mentira. Em seguida, ele embarcaria para o Brasil, trajando luto, e procuraria o pai. 
Assim foi feito. Não sei como se passou o encontro, meu filho em suas cartas não me contou miudezas. Mas deve ter sido bom, pois o pai concordou, ao cabo de alguns meses, em pagar-lhe uma expedição arqueológica à Grécia, ao Egito e à Palestina, em companhia de dois amigos da universidade. Quando a viagem científica terminasse, ele viria à Suíça encontrar-me. Nunca veio. Restava-me passar pela dor suprema em minha vida de tantas dores: a febre tifoide o levou. Enterraram-no na Terra Santa. Os amigos depois vieram visitar-me, trazendo um desenho da sepultura. Foi um cruel imprevisto contra o qual nada pôde fazer aquela quantia que eu reservara para enfrentar vicissitudes inesperadas. 
Por essa época, a dona da pensão resolveu retirar-se dos negócios. Eugênia achou que seria de bom alvitre que eu utilizasse o que poupara e mais o dinheiro reservado para garantir a continuidade de meu sustento e me preparasse para poder ter uma certa tranquilidade na velhice. Fez-me ver, também, que um desafio novo nesse momento me ajudaria a levantar-me do desespero em que estava mergulhada com a morte de meu filho. Sentia-me como um fantasma, pairando na irrealidade, roubada de meu futuro, amputada de meu passado, sem vínculos com meu país, minha cidade, minha gente, desprovida até de meu próprio nome. Deixando-me guiar pelos conselhos de Eugênia, comprei então a pensão, onde venho trabalhando até este final dos dias desta minha segunda vida. Foi uma boa decisão, que me forneceu os meios de sobreviver materialmente e muito fez por mim ao me impor a necessidade de ocupar-me com um mundo exterior a meus tormentos. 
Inúmeras vezes me lembro de ti e sinto falta de tua presença amiga. Rezo por ti com frequência, pedindo a Deus que tenhas igualmente podido ter uma nova vida com menos infortúnios, e que a lembrança dos dias da juventude te ajude na velhice. Que estejas bem, minha amiga, e que nos encontremos no Senhor. E que Ele tenha piedade de uma mulher que, se um dia teve a audácia de crer que poderia se valer da reflexão e das ideias para convencer um rapaz a ir contra as ordens da mãe, os planos da família e desrespeitar uma promessa feita a Deus, fê-lo apenas por amor, seguindo os ditames de seu coração, e na esperança de ser feliz. 
                                         Tua 
                                              Maria Capitolina 
 


[1] Explicação para o nome ter sido arrancado do caderno.
[2] Essa é uma interessante questão para a prova porque aparece tanto da obra de Machado quanto na de Ana Maria Machado.




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