PRIMEIRAS PALAVRAS:
Tenho recebido muitos e-mails pedindo uma explicação sobre A Invenção de Orfeu. Como eu disse jamais comentaria um livro que foi estudado por Jorge Araújo. O que mais eu poderia dizer? Jorge sempre diz tudo. Mas então resolvi apresentar um roteiro simples para quem sabe, despertar em vocês a paixão por ler tão interessante obra.
A QUESTÃO DA UESB 2010.2
Então, seguindo o roteiro da questão do ano passado. Eis a questão:
Texto I
Um barão assinalado
Sem brasão, sem gume e fama
Cumpre apenas o seu fado:
Amar, louvar sua dama,
Dia e noite a navegar,
Que é de aquém e de além-mar
A ilha que busca e amor que ama.
Texto II
A linguagem
Parece outra
Mas é a mesma
Tradução
Mesma viagem
Presa e fluente
E a ansiedade
Da canção.
Lede além
Do que existe
Na impressão.
E daquilo
Que está aquém
Da expressão.
Marque com V ou F, conforme sejam as afirmações verdadeiras ou falsas:
Os fragmentos, contextualizados na obra, permitem afirmar:
1. o poema mantém diálogo com outras obras da tradição literária. V – é uma das principais características da obra.
2. O narrador, no fragmento I, apresenta-se ao leitor e evidencia o seu intento de descobrir novas terras, ampliando as fronteiras físicas do mundo. F – era uma questão de interpretação do texto que estava na própria prova.
3. O narrador, no fragmento II, sugere ao leitor ir além da superfície do texto a fim de alcançar o seu sentido profundo. V – Também dependia da interpretação do texto na própria prova.
4. O poema A Invenção de Orfeu caracteriza-se pela ruptura com o rigor formal da narrativa épica, evidenciando o uso tão somente dos versos livre e brancos. F – é marcado pela mistura de versos inclusive o próprio autor começa no parnasianismo, passa pelo simbolismo até chegar a modernidade.
5. O narrador sugere, na obra, uma viagem de caráter metafísico em busca da plenitude espiritual. V é uma das marcas da obra.
O que se pode perceber com a questão é que para ser bem sucedido o aluno deveria conhecer algumas características da obra e interpretar o texto na prova. Então segue abaixo um recorte das principais características da obra sugerida pelo meu mestre Jorge Araújo e o estudioso Luciano Marcos.
Depois alguns textos para você conhecer.
Espero ter ajudado.
Mara Rute
O poeta se utiliza do absurdo e do maravilhoso, elementos que proporcionam inesgotáveis possibilidades para o enriquecimento de sua poesia.
Os caminhos da Literatura de Jorge de Lima
A crítica concorda em geral que o percurso poético de Jorge de Lima é distinto dos demais poetas de sua geração e que ele se destaca como um dos mais ricos e de maior complexidade de nossa literatura. Jorge de Lima inicia-se como poeta parnasiano, posteriormente, no ano de 1925,adere ao Modernismo com outro poema antológico, “O mundo do menino impossível”.O tema regional, a linguagem coloquial, o folclore e o elemento negro marcam seus versos. Este último aspecto proporciona ao poeta mais uma de suas grandes realizações – e das mais representativas de nosso modernismo –, o célebre “Essa negra Fulô”. Logo após, o poeta converte-se ao catolicismo e juntamente com Murilo Mendes publica Tempo e Eternidade (1935). Naquele momento, sua poética evidencia influências do Surrealismo e de suas preocupações religiosas. Compartilhando essas características, assim como o apelo ao inconsciente, ao universalismo e à valorização da palavra poética surgem suas duas obras consideradas mais importantes: Livro de Sonetos (1949) e sua criação máxima, Invenção de Orfeu (1952).
SINTESE: Jorge de Lima, poeta sucessivamente regional, negro, bíblico e hermético.
INTERESSANTE - Jorge de Lima dedicou-se não só à poesia, mas também à pintura e à colagem... além de ensaios esparsos em jornais e revistas. O poeta foi também deputado, médico e fez várias tentativas frustradas para se firmar no comércio.
Na antiguidade, era dado à poesia o poder de tornar presente os fatos passados e futuros, de renovar e restaurar a vida. A palavra cantada. É este poder ontopoético que Jorge de Lima busca trazer para Invenção de Orfeu, o poder de instaurar uma realidade própria à poesia, de iluminar o mundo que sem ela se extinguiria.
O fazer poético em Jorge de Lima é concebido a partir da forma, a sua linguagem é trabalhada e seu conteúdo mágico privilegiado. Em Invenção de Orfeu. Aqui, vemos um engenhoso trabalho poético que “dá a medida exata da linguagem e que reúne todas as outras, combinando o onírico, o apelo social, a angústia metafísica, a reflexão mística com o expressionismo e a reiteração barroca.” (Araújo, 1986, p.29).
É recorrente em Invenção de Orfeu o diálogo que o poeta empreende com a poética clássica, através das referências a Dante (A Divina Comédia), Virgílio (A Eneida), Camões (Os Lusíadas) e Milton (O Paraíso Perdido) como também à poesia moderna .... Com esse livro, o poeta pretende realizar seu projeto mais corajoso: criar uma “biografia épico-lírica” e interpretar as dores coletivas.
Nele, combinam-se, em dez cantos, formas poéticas múltiplas, mundo particular e místico, distribuídos por temas, subtemas emotivos, num verdadeiro rio metafórico. Formalmente, utilizasse da montagem, da superposição de diferentes moldes poéticos, do alexandrino clássico, da redondilha popular, das sextilhas
trovadorescas, do soneto, da estrofe única e longa, etc.. A busca de expressão própria, o cultivo de formas e elementos temáticos novos, tudo isso constitui a riqueza de situações em que se configura a poética de Jorge de Lima.
Podemos dizer que o universo de Invenção de Orfeu carrega um sentido utópico, já que propõe uma nova possibilidade para os homens, entre elas a de superação do individualismo, da hostilidade, estabelecendo uma nova ordem, mais solidária e mais sensível, similar à da arte. O poeta é, então, um visionário que tenta reorganizar o caos em novo mundo, em um momento utópico e cristão, caracterizado por um desejo de reencontro do homem com o éden perdido.
Invenção de Orfeu inicia-se com o canto denominado “Fundação da Ilha”, e o termo “fundação” é bem sugestivo, já que denota o estabelecimento dos alicerces para a edificação de seu poema. Portanto, o que o poeta pretende é estabelecer a base de seu poema (o que sustenta e possibilita qualquer edificação).
O vocábulo “ilha”, constantemente utilizado pelo poeta, recebe uma variada gama de significações, seja no seu sentido mais usual e histórico de acidente geográfico, da ilha de Santa Cruz (Brasil); ou em seu sentido metafórico-literário, sugerindo as fabulosas ilhas medievais, as ilhas utópicas renascentistas, as ilhas literárias (presentes nas obras de Camões, Dante, Thomas Morus, John Milton, Homero, etc.) como também do paraíso bíblico. O poema de Jorge de Lima trará para si todas estas possíveis relações intertextuais, mas também as transcende para assumir um sentido próprio em Invenção de Orfeu.
A preocupação com o conteúdo do texto desloca-se para a preocupação com a forma do texto, visão metalingüística que percorre todo o poema, principalmente caracterizado pela técnica da montagem, processo de composição que desmistifica o texto enquanto “intocável”, ou com uma tradição que conceberia a obra como “acabada”. O texto passa a se decompor em outros mais, estabelecendo uma “circularidade” e/ou “espiralidade” que possibilita o diálogo intertextual com outros textos, do mesmo modo que com ele próprio.
Em Invenção de Orfeu, podemos dizer que o desenvolvimento do seu texto se apresenta em três tempos: o primeiro, é o momento da Criação, o Éden, a felicidade primitiva, real e sonhada; o segundo, refere-se ao instante da Queda, da perdição, do obscurecimento, destruição e morte; o terceiro, é aquele da salvação, Redenção, em que poema e poeta se vitalizam na fé, na esperança e no amor.
Nesse sentido, sua poesia prioriza o ato da criação concordando com o significado constitutivo da imagem órfica que se dá, principalmente, na utilização que o poeta faz da inspiração noturna e do sonho como espaço de elaboração de sua poesia.
Assim, Orfeu representa a imagem do libertador e do criador que estabelece uma ordem superior no mundo, uma ordem sem repressão.
O poeta está em busca da transcendência e é através do poema que ele tenta superar as contradições do mundo moderno.
Este sonho do poeta só pode se realizar através da arte, pois é a partir da representação artística que ele tenta reordenar este mundo e passar sua mensagem de esperança futura. Nele, o poeta reconcilia o tempo do passado com o presente e o futuro; o espaço, o aqui e o acolá; e finalmente ambiciona reunir todas as pessoas em um único corpo. É esta utopia que Invenção de Orfeu nos proporciona. É o lugar onde os espaços e os tempos são extinguidos, e todos os seres, numa espécie de confraternização universal, formam um único corpo. Nesse “espaço-tempo”, os encontros mais surpreendentes podem ocorrer.
Trechos escolhidos:
Mesmo sem naus e sem rumos
Mesmo sem vagas e areias,
Há sempre um copo de mar
Para um homem navegar
...
Reinventamos o mar com seu colombos
Com a linguagem dos livros ignoradas;
Reinventamos o mar para essa ilha
Que possui “ cabos-não” a ser dobrados
E terras e brasis com boa aguada
Para as naves que vão para o oriente.
...
Não esqueçais escribas os somenos,
As geografias pobres, os nordestes
Vagos, os setentriões desabitados
E essas flores pétreas antilhanas.
...
Vejo-vos em fantasmas uma vezes
E outras vos ostentais reincidentes,
Que doces prostitutas pareceis
Vistas assim do beco com essas lentes.
....
Que noite se condensa e que muralha
Preserva dos juízes os declives?
Que despido há no mundo realmente
Sem as roupas que a vida lhe teceu?
....
Como todo o amoroso ódio e a angústia mansa
Há na face um desânimo latente;
qualquer coisa exaurida na distância
para dar à paixão, outra vertente.
Entristeço-me ao ruído persistente
Do tempo para trás como a memória,
Permaneço ora ileso ora ilusório.
Que segredo tão árduo eu esse doente!
E entre temeridades e temores
Dou às coisas irreais nova constância
Sob o peso dos seres meus e vossos.
Pois de todos os grandes desatinos
Que possuem densidades diferentes,
Diante de muitos sou sozinho e ossos.
...
E esse velho e atroz poema?
Quem acaso o arquitetou? Que mão sem braço o escreveu?
Que Lenora o mereceu?
Que mulheres vivem nele?
Que loucura o escureceu?
Ó tecido de memórias
Recuadas de meu tempo
Que eternidade comeu!
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