Senhorita Simpson – Análise Comentada
Por: Mara Rute Lima
UESC 2012
Primeiras Palavras:
Que ano difícil! Diminuição de
vagas, o ENEM aparecendo como forma de ingresso, universidades trocando
empresas elaboradoras de provas... E não significa que você esteja sem chance,
mas que dá para ficar mais ansioso dá. Só que agora é hora de fazer sua parte.
As mudanças já aconteceram e, nesses
poucos dias que faltam para a UESC o que precisamos é nos preparar. Afinal, não
se trata de fazer apenas uma prova, mas sim de dar o primeiro passo na conquista
de muitos planos de sua vida. Por isso, antes de falar especificamente do livro
gostaria de dizer que essa angústia é compartilhada por muitos que, como você,
tem esse mesmo sonho. O que faz a diferença é seguir o caminho do seu objetivo
com fé e estudo.
O livro aqui apresentado não será
um obstáculo na linguagem ou um convite a rever seus conhecimentos sobre
periodização literária. Ele possui uma linguagem simples e traz temas de nosso
tempo.
Vamos juntos?
Mara Rute Lima
Sobre a
novela:
A
Senhorita Simpson
Novela que dá
título ao livro, A senhorita Simpson é a história contada por Pedro sobre ele
mesmo e um grupo de alunos num intervalo de tempo em que ele entra num cursinho
de inglês. Ele, e quase todos os colegas são tipos sociais mal sucedidos que
compartilharão das aulas e das experiências com os colegas. Terão como
professora a Senhorita Simpson americana que dá aulas de inglês e transa sem
compromisso com seus alunos. É com Miss Simpson que Pedro aprenderá a forma de
se relacionar no século XXI: mais desempenho menos emoção e terá de volta o
respeito de sua mulher.
A novela é um convite a, através da
história de nossa personagem narradora, colocar em espelho as formas de
relacionamentos de nosso tempo. É
importante ressaltar que uma leitura superficial dessa história pode levar o
leitor a reduzir Miss Simpson a uma depravada sexual quando na verdade essa é
uma história que envolve inclusive os novos papéis dos gêneros sexuais na nossa
sociedade. Não deixe de ler sobre gênero, sexo e sexualidade porque você pode
ser convidado a escrever sua proposta de redação sobre isso.
Para facilitar a compreensão da história
deixe-me apresentar algumas personagens:
Pedro, o narrador com um pai extremamente
liberal sexual é casado com Antonieta que lhe abandonou quando arranjou um bom
emprego. Solteiro e sem ambição resolve entrar num cursinho de Inglês onde
conhece Acácio, jogador de futebol que depois se reintegrará ao time, o Gordo
funcionário do Banco Central, Santos homem fiel a esposa que terminará por
descobrir que essa lhe traia e que possivelmente carrega um filho do amante,
mas ao vê-la em casa toda sensual numa noite termina por voltar a apaixonar-se
perdidamente por ela. Ao longo da história essa mulher é controladora e tem
crises de ciúmes do marido, mesmo traindo-o. Além desses ainda tem Contijo,
Paiva e outros colegas de curso.
Além de sua esposa, ao longo da história
Pedro se envolverá com algumas mulheres e esses envolvimentos servirão para o
leitor como marcas de suas mudanças, que se dá depois que ele se envolve com
Miss Simpson. Antes dela ele tinha um relacionamento com sua esposa, que não o
admirava e com a empregada Lucélia, com quem se envolveu a princípio pela
curiosidade de transar com uma mulher negra. Quando foi expulso de casa pela
esposa imaginou ir morar com Lucélia e grande foi sua surpresa ao perceber que
essa tinha namorado e fazia com ele sexo casual. Depois delas transa com sua
professora de inglês Miss Simpson por arranjo de seus colegas, mas chega a sentir por ela uma
espécie de ternura. A completa frieza no tratamento de Miss Simpson com ele nos
dias posteriores ao encontro ensina a Pedro uma forma de relação onde sentir é
o menos importante. Assim, daí em diante não terá mais envolvimentos, mas
relações amorosas ocasionais com a professora, Ana - empregada de sua esposa e
Mara Regina, esposa de seu pai. Termina
tendo o convite de sua esposa para retornar para casa e por saber que sua
esposa também se envolvia com Ana, essa não vê problema algum na relação dele
com a empregada.
Mas, Pedro termina a história assim:
“ Pelos meus cálculos, seria durante a
viagem de trem de Porto Suarez para Santa Cruz de La Sierra que eu completaria
trinta anos. Este trem é internacionalmente conhecido como O trem da morte, num
tipo de humor poético e macabro. Para mim, no entanto, esta morte tinha ao
mesmo tempo um sentido simbólico e literal. Pois, aos trinta anos, eu estaria
deixando para trás uma vida.
Antes de pegar minha mochila, no Chateau,
eu passara numa farmácia, onde furara uma das orelhas, para colocar nela um
brinco dourado. Ao trinta anos, eu estaria deixando para trás não a minha
juventude, mas a minha velhice”.
Logo,
ele aprendeu a ser sem compromisso, ou seja, adequou-se a forma de vida de seu
tempo.
Vale ressaltar as comparações entre essa
professora e a Elza de Amar, verbo
intransitivo.
Sobre os contos:
Apesar de histórias com personagens
distintas e em lugares completamente diferentes, de Moscou ao interior de São
Paulo, esses contos são unidos pela arte. O conto o duelo trata do nascimento de uma história, a vida de um autor e
sua construção literária além do processo de publicação. No conto que se passa
em Moscou efeito bumerangue o autor
trata da literatura e a ausência da liberdade, além da cultura como artifício
para práticas políticas e uma discussão sobre a pintura vanguardista. Bem menos
clara, mas também presente, o autor faz uma excelente leitura da imagem de um
programa de TV como símbolo de um país decadente em historieta de uma república, já na mulher-cobra o assunto é uma artista (escrava) em sua fuga e ele, o
próprio Sérgio Sant’anna, explica como os autores se apoderam das histórias
para marcarem suas existências. A história de um homem sozinho numa estação ferroviária se passa com Mário e
Oswald Andrade e gira em torno da análise de um quadro de um pintor? Pintora?
Desconhecido. E por último o discussão
sobre o método é um espetáculo
urbano à serviço dos jornais e revistas,
do próprio governo e do povo que se alimenta de sangue e circo.
Vamos às
histórias...
O DUELO
- Esse
conto é uma oportunidade de reflexão sobre a produção da literatura em nosso
tempo com os desafios de um mundo não tão inspirador aliado a enxurrada de
literatura produzida para ser vendida.
O duelo é entre o escritor e o editor de
livros, entre o escritor que escreve a história da sua vida, mas que não pode
publicar porque não agrada ao editor que o convida a se tornar tradutor – um
pouco humilhante para quem tem muito a dizer, e termina com o acesso de cólera
do escritor que joga o editor numa lata de lixo numa clara metáfora de que ele
não sucumbirá aos desejos da produção de
uma literatura ao gosto do mercado.
Trechos escolhidos:
A
abertura do conto é a apresentação do autor feita em primeira pessoa e do seu
oponente, o editor. Sobre si mesmo o narrador ressalta aspectos interiores e psicológicos
e em oposição apresenta aspectos
externos do editor: De um lado
vinha eu (de onde? desde quando?), com meu jeito nervoso de andar (muito
cigarro, muita angústia), olhando fixo para um ponto cravado dentro de mim
mesmo, eliminando todo o supérfluo da rua, deixando apenas contornos,
esqueletos de prédios, postes de luzes amareladas, capas de chuva, gotas
brilhantes, neblina, embora fosse dia, ainda, e fizesse sol. Um bom observador
apontaria que eu coxeava um pouco, não me lembrando de que forma fora atingido:
provavelmente por dentro.
Há um momento em que cordas se partem, e é tudo.
Do
outro lado estava ele, o paletó na cadeira, um colete de botões abertos e uma
gravata afrouxada ... e sobre a mesa uma estatueta relativa a um prêmio
empresarial qualquer.
E livros, pastas, contratos bilíngües. Papel, muito papel, eis o problema.
O narrador enquanto espera para falar com
editor evita os galanteios falsos: ou
sentir-me obrigado a small talks, galanteios,
saber quem era ela, a secretária-recepcionista, explicar-me desde o princípio
para que tudo terminasse a seu tempo e do modo apropriado (na cama?). Eu estava
exaurido e chega. E ainda esperando diz um pouco sobre o editor e faz uma reflexão sobre a inteligência:. Ele era um homem inteligente, não posso
negar, não que isso importe tanto, em geral a inteligência não passa de um
artifício para camuflar interesses os mais mesquinhos, aliás, os únicos:
vaidade, poder, dinheiro, com tudo o que propiciam.
O conto inteiro faz reflexões sobre o ato
de escrever como essas:
-Também
vou ser franco com você, seu filho da puta. Qual o seu parâmetro para a
avaliação do meu livro? As merdas que o público anda comprando ou as merdas que
os resenhistas andam elogiando?
- Há
uma gaveta ali - ele apontou com o charuto - que nós chamamos de limbo, uma
piada interna - sorriu. - Se você quiser, poderemos guardar seus originais e,
na reunião do próximo ano, do conselho editorial. .. Você deve saber melhor do
que eu que certos livros amadurecem na gaveta, como se fossem frutas. Ou então
amadurecemos nós, diante do livro, pode ser.
De repente a sociedade redesperta para
certas coisas, sei lá, fenômenos epidêmicos como o romantismo obcecado...
“Como
saber se Ifigênia vende a não ser pondo ela à venda?”
Limitei-me,
porém, a olhar a janela, porque estava exaurido, já disse, e era um cara sem
futuro, e mesmo o meu passado se apagava sem aquele livro.
- Como fazer literatura aqui? - ele disse, com
um gesto largo e bonachão para a praça cheia de vadios, largando-me o braço. -
Aqui, nesta paisagem sórdida. A não ser uma literatura também sórdida, nem
mesmo proletária, com essa multidão de lumpens e pequenos criminosos. ... Aqui
o sexo e a nudez são por demais escancarados, algo bruto, e a corrupção está no
rosto das pessoas, os homens com seus bigodes, e sempre bicheiros nas
histórias, nos filmes, vulgaridade.
Foi só
depositar minha maleta no pequeno chalé que eu alugara e abrir a janela para
apreciar o fresco entardecer na floresta, que percebi o equívoco: a montanha
sempre fora para mim um espaço mental e imaginário que eu criava como
contraponto ideal às tardes sufocantes lá no viaduto.
Tome
cuidado, rapaz, porque aos poucos você vai substituindo a vida real por isso. E
de repente você olha ao seu redor e não vê mais nada, nem você mesmo, só
palavras.
O autor também aproveita o conto para
fazer, através de sua relação com Ifigênia, uma leitura das formas como a
sociedade moderna se relaciona:
. Do
contrário, uma relação podia tornar-se mecânica, rotineira e enfadonha,
exigindo cada vez mais perversões, encontro momentâneo de dois corpos, enquanto
os seus respectivos egos passeiam solitariamente em pensamentos até prosaicos
do tipo "quem será que ganhou o jogo neste domingo?" ou por
devaneios mais perigosos abrangendo terceiras pessoas.
(...)
há horas em que um relato não pode prescindir de certa crueza. Mas de resto,
reconheço, as descrições sexuais perderam todo o atrativo para o homem moderno,
eroticamente blasé, a menos que se acrescente um elemento distorcido, bizarro
até, como a rainha Vitória e seus anões, ou melhor, cortesãos.
E foi
como uma fera que ela retorceu seus olhos, enquanto também eu, como um animal
do campo (...), perdi-me dentro dela e gozei sem economizar-me em todo o meu
egoísmo e também meus olhos deviam deixar transparecer o ódio aniquilador que
existe dentro de uma luta mortal.
Depois de encontrar-se com o editor em sua
sala e ouvir da impossibilidade da publicação de sua obra, o escritor e o
editor saem para almoçar, por cortesia do editor. O narrador saberá mais tarde
os interesses do editor de que ele traduzisse algumas obras e o almoço foi na
verdade uma caminhada até o Mc Donalds o que fez com que o narrador percebesse
que não era ele uma figura com quem o editor ia almoçar de fato. No meio do
caminho eles começam algumas conversas sobre o fazer literário que já foram
apresentadas e mais algumas que aqui estão:
- Em
algum ponto do caminho, talvez uma revolução houvesse resolvido. Não se
constrói uma civilização sem guerras e revoluções; não se faz isso sem sangue.
Um homem cultivado é uma espécie de herdeiro pródigo e privilegiado de inúmeras
gerações de bárbaros guerreiros. Enquanto que aqui fomos quase sempre covardes,
acomodatícios, culpados, cristãos, apesar de não menos criminosos, só que
mesquinhos.
Nessa história há a forte presença do fluxo
de consciência em que o autor para os acontecimentos e apresenta reflexões
sobre outras questões além da narrativa e sobre si mesmo. Eis aqui algumas considerações sobre ele:
De
volta à vida interior no meu cubículo. Existe algo de grandioso, solene e até
belo na solidão, Quando um homem, depois de ter tido o seu Quinhão satisfatório
de vida, resolve recolher-se a uma casa modesta e afastada, na montanha, para
aí desfrutar da memória dos seus amores, seus sucessos e fracassos, os livros que
ele não julga mais imperioso escrever, deixando as comportas abertas para uma
vida mais contemplativa. Mas e a miserável solidão numa tarde de calor ali em
frente ao viaduto, depois de um encontro de negócios fracassado? Os carros
continuavam a passar com seu ruído infernal, literalmente, e eu não podia
fechar as janelas ou as cortinas, porque não possuía um aparelho de
ar-condicionado; não conseguiria nem mesmo dedicar-me a uma leitura.
Ifigênia, a musa inspiradora do seu livro
tem claramente duas versões na história. A mulher real( Efigênia), com defeitos
e pouco encantamento e a mulher grandiosa que aparece no livro como Ifigênia.
Assim, o autor trabalha, no seu conto, a
temática do ficcional e do real na construção literária moderna.
Mas
foi em seus olhos que eu me impregnei de Ifigênia, a compreendi definitivamente
e, por extensão, a Mulher!
A
verdade é que Efigênia existia ... a verdadeira Efigênia não estava à altura da
ambição do meu projeto. Era uma moça de educação modesta e o simples fato de
que eu escrevesse alguma coisa, de que no meio daquelas palavras (é óbvio que
eu nunca mostrava nada a ela) houvesse gente de carne e osso vivendo histórias,
era o suficiente para uma admiração sem limites.
Jamais
consegui terminar qualquer trabalho enquanto Efigênia esteve comigo, e o seu
bilhete, na verdade, não se queixava de mim, apenas dizia que ela ia embora
para me deixar livre para o que era mais valioso em minha vida. Fiquei comovido
pra diabo e talvez até houvesse corrido em seu encalço, não contivesse o
bilhete, apesar da sua perspicácia bruta, um gravíssimo erro de ortografia: a
palavra saudade com l Efigênia escreveu que sentiria para sempre saldades de
mim.
Rasguei
o bilhete para não deixar qualquer prova para a posteridade, mas imediatamente
um vazio imenso começou a se apossar de mim, um vazio de Efigênia. Corri então
para a máquina e fiz jorrar toda a minha libido na história de um professor que
amava uma mulata ignorante...
O narrador conta um pouco sobre o livro que
traduz: Inacreditável o que as pessoas
podem pôr numa folha de papel...Marilyn Monroe, chorando convulsivamente, enfia
algumas pílulas goela adentro e diz que quer mais é que os russos e cubanos se
fodam. E por que K não fode ela, a sua gata loura? K pede meia hora ao
secretário da Defesa, põe o fone no gancho, esbofeteia Marilyn e diz que ela
não passa de uma puta histérica. ... Ele
olha demoradamente para o grande mito feminino da América, à sua mercê, e
consegue afinal uma ereção.
Enquanto fode sem amor a falsa loura falsamente desfalecida, pode pesar
calmamente as várias alternativas. Talvez jogar bruto com os cubanos não seja
má idéia.
O narrador não se dobra ao editor e vence o
duelo:
Atirei-o
na lata de lixo com seu terno, seu colete, seu relógio de bolso e a
correntinha, seu lenço de cambraia, seus ha-ha-has (...) Deixei-o lá dentro,
estupefato - ou mesmo não - com as perninhas pendendo para fora da lata, e
dei-lhe as costas. Fui descendo a avenida em direção ao mar lá longe, como num
sonho, pensando que se eu tivesse de escrever sobre ele, algum dia, talvez o
fizesse dormir um pouco no lixo, com todo aquele uísque no bucho, até que os
primeiros raios da aurora e os ruídos do trânsito matinal o despertassem.
Mas, num raciocínio mais realista percebe
que sua vitória não é tão significativa já que o editor sairia da lata de lixo
e iria para o escritório onde haveria
também roupas de baixo, camisas de linho, outro terno e outro colete, para que
ele pudesse sentar-se dignamente à sua mesa cheia de originais e retomar seus
pensamentos, leituras, calculando os fusos horários em seu relógio de bolso, de
maneira a telefonar para Mac Pherson sem tirá-lo impropriamente da cama e poder
contar-lhe que a coisa andava se invertendo ultimamente, pois em vez de
livrar-se ele de originais incômodos, um autor acabara de lançá-lo na lata de
lixo, ha, ha, ha, a risada dele ecoando em New York City e daí se espraiando,
em bochichos, para o resto da confraria, no resto deste planeta pequeno.
EFEITO
BUMERANGUE
É a história de Piotr Petrovicth que nos
será apresentado em Moscou tendo Nicolai, um antigo espião que estava sendo
punido, com o cargo de motorista para vigiá-lo. Petrovicth gostava de criar falsas
pistas ou colocá-lo em seu lugar como fez na manhã em que se dirigia para a
reunião do conselho pedindo para que esse parasse para que ele pudesse tomar
seu café da manhã. No lugar onde foi (o tradicional café Gogol) não foi bem recebido
pelo Boris que em outros tempos lhe fazia deferência e que ultimamente tinha
providenciado inclusive uma barata para seu prato.
Nesse dia, havia interesse no conselho que
Nicolai atrasasse a chegada de Petrovicth a reunião do conselho pois havia uma
conspiração para depô-lo do cargo de comissário para assuntos de cultura.
Enquanto ele toma seu café podemos ouvir a
discussão do conselho que é na verdade uma oportunidade para o leitor também
refletir sobre esse assunto – cultura e arte:
- Eis
o erro. O comissário para a Cultura deve ser um administrador da cultura. Os
intelectuais e artistas nunca souberam administrar a si próprios - retrucou
triunfantemente Markov. - O camarada Yassim, que na época também foi cogitado,
com melhores qualificações, para o cargo, tinha uma vasta experiência na
seleção e fabricação de livros, e jamais os escreveu.
Yassim,
que estava por ali, meio no ostracismo, captou aquilo como um sinal para sair
deste ostracismo. Tinha sessenta e nove anos e este era o seu momento:
- A
verdadeira cultura é a que conduz à verdade. E se encontrando a verdade
histórica no marxismo-leninismo , a cultura que se afasta da retidão do modelo
é uma falácia.
- As
verdadeiras cultura e inteligência são também aquelas que conduzem à ação. O
camarada Yassim deve compreender que não temos tempo para discussões
acadêmicas. O comissário Petrovitch estará aqui dentro de quinze minutos e
devemos estabelecer uma linha comum de conduta, para resolvermos rapidamente e
com firmeza o caso.
O caso era a deposição de Petrovitch do
cargo porque eles pretendiam criar um míssil bumerangue que era diabólico no sentido literal do termo:
na composição do seu combustível entrava até enxofre. Consistia no seguinte: no
caso de uma declaração de guerra - ou mesmo de uma guerra não declarada - em
que a União Soviética ou alguma nação amiga estivesse na iminência de ser
ocupada, o míssil poderia ser disparado rumo a algum ponto ermo e longínquo do
planeta, ou além, evitando radares e mísseis defensivos, para depois voltar
sobre o seu próprio rastro, caindo em cima do inimigo já no território nacional
ocupado.
Nesse momento da história fica claro que a
cultura era só um pretexto para aquela organização e eles julgavam importante o afastamento de Petrovitch por não
ser ele confiável - por causa de seus questionamentos éticos e seus valores
pautados nas leis internacionais ou no bem da humanidade. Para os que estavam
presentes naquela sala interessava que antes de tudo, se eles não inventassem
tal artefato os americanos inventariam e o objetivo era a proteção.
Quando Petrovitch chega a reunião finge
surpresa sobre ser ele o tema – revelando perspicácia. É convidado então a
ouvir as acusações:
a) contaminação da juventude soviética por
ritmos estrangeiros com seqüelas no comportamento dos jovens.
DEFESA DE PETROVITCH – O rock nada mais era do que a batida e o ritmo primais do ser humano
daí a sua aceitação universal, como a das marchas militares, com a vantagem,
para o rock de que esse podia ser utilizado para fins pacíficos.
Ainda ressaltou que havia por traz do rock
a anuência de que a União Soviética já estava pronta para absorver capitais
estrangeiros inclusive de jeans e mísseis. E contou a seguinte piada: determinado presidente norte-americano, com
seu senso de humor tipicamente capitalista e presidencial, haveria dito ao
primeiro-ministro soviético, numa reunião de cúpula fechada, que se os russos
estavam dispostos também a comprar mísseis, tudo bem: "Que se nós fôssemos
varrê-los do mapa, que ao menos o fizéssemos com as suas armas". Ao que se
teria seguido uma gargalhada e um brinde, e, pouco tempo depois, Watergate
e o resto.
b) o caso Daganaiev - Daganaiev era um pintor acadêmico e disciplinado, que resolvera seguir
à risca os postulados do realismo socialista aprendidos na escola. Pintava
trabalhadores, paisagens campesinas, fazendas coletivas, ginastas, Lenin no Mausoléu,
bailarinas do Bolshoi. Ele recebeu o apoio de Petrovitch e suas obras foram
compradas por uma senhora americana que tornou as obras de Daganaiev conhecida
e aclamada nos Estados Unidos e vista
como “ social demais” o que gerou a discussão se o sucesso da obra dele no
ocidente era um êxito ou um fracasso da obra socialista.
DEFESA DE PETROVITCH – melhor do que
discussões acadêmicas era promover os jovens pintores soviéticos.
Nesse momento o conto abre discussão para o
tema das vanguardas – objeto de estudo do modernismo: A arte
abstrata, construtivista, concreta, geométrica, optical, action painting,
minimal , qualquer coisa até o expressionismo, desde que abstrato, é menos
perigosa do que a figuração. Veja-se o
caso da música orquestral e instrumental, sem imagens e palavras e que por isso
mesmo dificilmente oferece perigo, por não conter uma mensagem explícita ou
implícita, que pode ser deturpada e absorvida como seu contrário, o que o
exemplo de Daganaiev acaba de ilustrar.
c) o envolvimento de Petrovitch com Sônia a
aeromoça que era contrabandista de originais literários que eram publicados no
ocidente.
DEFESA DE PETROVITCH - resolveu defender-se com um artifício que às vezes dá certo em
política, pela surpresa com que pega o adversário: a verdade. Disse que ela
era bela e ele ficara seduzido e que a amava
A comissão decide condená-lo porque segundo
eles, a confissão explica mais não justifica já que um homem de Estado não pode se deixar seduzir por uma
traidora espiã.
Mesmo assim Petrovitch defendeu Sônia
porque era um cavalheiro e jamais trairia o seu amor. Assim justificou as ações
de Sônia como sendo um serviço à literatura e à liberdade. Foi questionado por
estar possivelmente afirmando que a literatura soviética não era livre. Decidiu
então dizer que a liberdade era um conceito problemático que embaraçava até os
filósofos. Terminou por emitir um juízo de valor que lhe levou a condenação.
Foi
mandado para a Sibéria para trabalhos forçados que na verdade seria de professor
secundarista ... e segundo ele, talvez até se divertisse na viagem.
Nessa parte da história o autor propõe
algumas discussões sobre a arte e dá a Petrovitch a oportunidade de
reencontrar-se com o artista que ele tinha ajudado a tornar célebre Daganaiev.
Esse continuava a pintar paisagens
nevadas totalmente brancas, naquilo que, talvez jocosamente, apelidaram ali no
campo de figurativismo-abstrato e até conceitual. Porém o artista abriu, naquela
tarde, uma honrosa exceção para Petrovitch e pintou o seu retrato, naturalmente
contra um fundo branco. Só que, neste fundo branco, fez brotar, num impulso, um
raminho de capim. Sinal da primavera, da esperança?
-
Cuidado, Daganaiev. Muito cuidado com a figuração - disse Petrovitch, com a voz
embargada.
O conto apresenta outra cena sobre a
reflexão sobre o artista e a obra de arte quando por causa do frio Daganaiev
queima seus quadros para se aquecer e é repreendido por Petrovitch
- Mas
você está queimando sua obra, mestre! (...) Não sei se você é um gênio ou um
idiota.
- Talvez
ambas as coisas, Petrovitch.
O desfecho da história e o efeito
bumerangue:
O
Míssil Bumerangue foi um sucesso, pois veio a cair exatamente sobre as cabeças
daqueles que o idealizaram e sustentaram politicamente.
Ainda
como um efeito típico do Míssil, o camarada Piotr Petrovitch foi reabilitado.
Com sessenta anos de idade, deram-lhe um vago cargo de conselheiro na
"Corte"...
Aqueles
que gostam de melodramas românticos sentimos decepcioná-los. Ao
reencontrarem-se um dia Piotr e Sônia, numa Bienal do Livro no Brasil, à qual
ele compareceu como encarregado da representação soviética, não se atiraram nos
braços um do outro. Sônia engordara e não passava, agora, de uma próspera e
burguesa agente literária.
Mas o
efeito bumerangue não se limitou à política. Na esteira da reabilitação de
Petrovitch, muitos escritores e artistas se reintegraram à sociedade, entre
eles os pós-niilistas-performáticos, que se entregam agora de corpo e alma ao
movimento que maldosamente se batizou no Ocidente de minimalismo socialista,
visto naquele hemisfério como provinciano e datado.
Porém
o mais importante é que se respira agora, por toda parte, um clima de liberdade
responsável. O novo secretário-geral, além de grande estadista, é homem
simpático e bem-casado, dotado inclusive de senso de humor. Graças às suas
diretrizes é que tornou-se possível a publicação desta história, escrita
conjuntamente por anônimos ex-companheiros de campo de Piotr Petrovitch.
Ao
casal Gorbachev
dedicamos esta peça reabilitadora do comissário, cujo retrato, com um ramo
verde brotando na neve, ao fundo, adorna presentemente a parede da escola de
província onde Piotr Petrovitch lecionou, rebatizada singelamente com o nome de
Alexei Daganaiev.
Figuradamente,
mesmo depois de morto o pintor permanece no exílio ou no limbo. Porque até hoje
não se decidiram os críticos - sem nenhuma interferência oficial, diga-se a bem
da verdade - se o retrato é digno de ser transferido para algum museu da
capital ou de Leningrado, se trata de
uma obra de arte ou de um equívoco, o que nem mesmo Piotr Petrovitch se sente
em condições de esclarecer.
A MULHER COBRA
O
narrador começa a história tentando lembrar-se dos motivos que lhe levou até
aquele lugar para ver a mulher cobra, entre as opções estão o frio, a
solidão... O fato é que ele entrou e começou a observar o homem que apresentava
num púlpito a mulher-cobra, uma das sete maravilhas do mundo. Parecia, o homem
um daqueles manequins plásticos inexpressivos vistos em lojas de ternos
vagabundos no interior do Brasil.
Aproveita a oportunidade para fazer uma reflexão sobre o homem: O homem é o animal mais desgraçado e
provocador de desgraças sobre a face da terra e outras faces porventura
existentes. Só existem duas coisas grandiosas saídas do ser humano: a música e
a imaginação, a capacidade de criar realidades que não são - mas se tornam -
reais.
Estava um pouco constrangido de estar
naquele lugar para o espetáculo por isso olhava para os lados verificando se
alguém podia reconhecê-lo. Entrou e observou as vaias que um indiano (o mesmo
apresentador) recebia no palco. Indiferente o
indiano tocava flauta e a mulher-cobra, dançando em espirais ascendentes,
surgia de um alçapão. As vaias se transformaram em urros lúbricos e depois em
silêncio. A mulher-cobra estava nua, porém o corpo tatuado, onde predominava o
verde, em vários tons, não deixava brechas para o obsceno.
Mas
onde a mulher-cobra era verdadeiramente uma cobra era em seus olhos, que
emitiam chispas.
Era o mesmo olhar que eu vira na janelinha da bilheteria e um arrepio gelado
percorreu a minha espinha, comunicando-se com os arrepios gelados nas espinhas
de todos os outros espectadores. Talvez eu tenha resolvido entrar em busca
dessa emoção, quem sabe? Fôramos informados, à porta, através do megafone, de
que mediante módica quantia se poderia desfrutar de uma hora de amor com a
mulher-cobra depois do espetáculo.
Depois de ouvir essa informação o autor
conta da busca que os autores fazem por histórias e justifica que estar ali
vendo aquele espetáculo talvez seja para ter algo para contar.
Eu
pensava em esperar o fim do espetáculo, pagar a módica quantia e fazer amor com
a mulher-cobra. E por favor não me venham com psicanálise, este método que consiste
em desvendar os fenômenos e desejos pelo seu lado mais obscuro, ou mesmo pelo
seu lado contrário.
Eu
queria fazer amor com a mulher-cobra, embora isso me enchesse de medo, apenas
para poder contá-lo aos amigos, nem que fosse através de cartas enviadas com
selos belgas aos quatro cantos do mundo e principalmente a um canto no Brasil,
que é o meu. Confessem, não é para isso que se viaja: para contar aos outros?
E eis
que nesses quatro cantos amigos e amigas diversos sairiam por alguns instantes
do seu paradoxal egocentrismo para pensar em Sérgio Sant' Anna ou mesmo
comentarem entre si: "Sérgio está lá em Bruxelas e transou com uma
mulher-cobra. Ora vejam só, uma mulher-cobra". Isso faria de mim - para
eles e talvez até para eu próprio - uma pessoa existente, pelo menos enquanto
durasse o assombro provocado. E desconfio que não apenas eu, mas todos nós,
nos sentimos inexistentes. Por isso é que é paradoxal o egocentrismo, no que
Galileu estava certo, se é que entendem a relação. Então fabricamos
acontecimentos e histórias para podermos narrá-los, uns aos outros,
convencendo-nos reciprocamente de que existimos. E é assim que produzimos cada
vez mais carma e acontecimentos, fazendo rolar a história maior da espécie, que talvez já devesse estar
extinta, sem nenhum prejuízo para todas as outras espécies, diga-se de
passagem.
O
estilo das cartas, com ligeiras variações, seria mais ou menos esse:
Os
olhos dela, a mulher-cobra - enquanto dançava uma dança pseudo-oriental sem a
menor preocupação de torná-la convincente, afinal a audiência não merecia -
emitiam chispas do ódio ancestral de sua espécie por todos os homens. Um ódio
direcionado, sobretudo, para aquele que a escravizava com nada mais nada menos
que música.
O narrador diz que o indiano direcionou-lhe
o olhar e nesse instante a mulher cobra deu o bote que não foi morder o homem
mais fugir para sempre daquela prisão para
quem sabe se prostituir nas ruas de Bruxelas. Uma mulher tão sem identidade ...
mulher? Cobra? Que seria difícil encontrá-la.
Depois de contar o fim da história da mulher-cobra
o narrador reafirma a necessidade de, como escritor, ouvir e contar tais
histórias:
Sou um
estrangeiro em Bruxelas ou mesmo em qualquer parte. Porém, como sabem, ser
testemunha é para mim uma questão de sobrevivência. Esta coisa que me fascina
nos acontecimentos, fazendo com que eu, narrando-os, possa sentir-me existente,
ao menos por algumas horas, antes que novas formas informes voltem a debater-se
dentro de mim (é horrível).
Por
isso, quando conto uma história, vou até o fim.
Curvei-me sobre o indiano, que me dirigia débeis sinais ... Agarrando-me pela
camisa, o indiano suspendeu-se o suficiente para que eu pudesse sentir o breve
aroma de incenso em sua respiração. E antes que esta respiração cessasse de
todo, comunicou-me ele que ia dizer suas últimas palavras.
HISTORIETA
NUMA REPÚBLICA
É a história de um país que vive uma crise
política e que poderia ser o retrato de qualquer país subdesenvolvido com
problemas políticos e econômicos. O que dá a essa história um tom de
representação universal.
A história começa com a irônica informação
de que a crise nesses países bolivianos, ou seja, subdesenvolvidos é objeto de
estudo de Harvard que finalmente estuda um tema digno de ser estudado,
criticando assim os objetos de estudo dessa universidade.
Em meio à crise, o presidente, já sem
entender-se com os ministros e nem confiar em sua equipe vai com
seus capangas, numa emissora de TV e tem que esperar acabar uma reprise de
programa para o grupo social rico que já se mudou para Miami e dividir o
programa com um desconhecido cantor cabeludo.
O conto apresenta o caos que vivia o país
de assaltos, bombas, metralhadoras, esvaziamento das ruas... e vamos tendo
conhecimento desse caos a cada pronunciamento do presidente que aparece como a
fala de um homem que não tem nem mesmo um discurso coerente para nação, como
teria um plano político-econômico?
Entre seus deslizes:
- Não
se esqueçam de que aqui, muito antes dos brancos chegarem, floresceu uma
civilização - prosseguiu o presidente, como se todos houvessem acompanhado o
seu solo silencioso.
Esquecia-se
ele próprio de que era branquíssimo e tinha orgulho de seu puro sangue
espanhol.
O
presidente olhou rapidamente para a folha de papel e pediu coragem a seus
compatriotas. Disse que os momentos de grandes cataclismas eram também momentos
de grandes confrontações dos homens consigo mesmos, quando se afirmava a
seleção natural dentro da espécie.
O
presidente fez uma pausa e fuzilou com os olhos o assessor de imprensa. Tinha
medo de que o acusassem de estar um pouco exageradamente à direita. Ele, quase
um socialista.
Tentou
corrigir: "Os que não sobrevivessem teriam também cumprido uma sublime
tarefa, a de abrir espaço para um novo tempo".
Não tendo quase mais ninguém no estúdio, o
presidente deu às costas a câmera e
saiu. Nesse instante um servente entra para varrer a sala, e depois o cantor veio,
sem que ninguém chamasse, para apresentar sua canção. Tal cena passará por uma
análise do narrador:
Aquela
imagem de um servente varrendo o vazio era uma volta a mais no parafuso da
estética caótico-artificial-suicida dos 90, cerne do irrealismo e,
politicamente, uma brilhante metáfora do país.
Especialistas
de Harvard detectam no irrealismo a sensação ancestral do homem de que a
realidade não passa de uma imagem imprecisa a que damos contornos para não nos
desesperarmos. Presentificando tal sensação, o artista irreal acaba por
oferecer-nos uma outra realidade, aquém ou além das aparências, reportando-nos
a uma ligação cósmica no interior de nós mesmos: o vazio pleno.
Veja as duas imagens propostas pelo
narrador como belo:
a) Lá
fora, a paisagem correspondia não só à descrição poética do presidente quanto
às premissas do irrealismo segundo os de Harvard: ruas desertas com uma enorme
lua dando contorno a uma cidade fantasmagórica cheia de escombros. Era bonito.
b)
Quando o carro arrancou, o assessor de imprensa encostava-se ao poste onde
antes estacionara o travesti. A luz néon dava-lhe um ar pálido, quase
cadavérico. Mariposas esvoaçavam mais acima, como pássaros da noite. Era
bonito.
O desfecho da história é o presidente nas
ruas quase vazias parando para uma prostituta que era na verdade um travesti.
Mesmo sabendo de tal informação o presidente aceita o travesti. Segundo o conto
ele andava meio solitário desde que sua “jovem esposa” fora se tratar em Miami
donde ele só tinha notícias do envolvimento dela com o próprio médico.
E termina por confessar ao travesti:- Ando cansado - suspirou ele, para o
travesti. - Só não me mando para Miami porque os comunistas tomam conta. Numa
clara ausência de compromisso com sua nação. Talvez isso explique o caos em que
essa se encontrava.
O
HOMEM SOZINHO NUMA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA
O conto já começa com a descrição sobre
homem que na verdade é personagem de um quadro sem título de um pintor anônimo
presumivelmente da segunda metade do século passado. Esse quadro foi doado ao município
quando o casarão de uma antiga fazenda ia ser demolido:
O
homem ali sentado no banco, a maleta no colo, apoiando nas mãos o rosto com uma
expressão fatigada. Uma das probabilidades é que haja perdido o trem e terá de
aguardar outro por muitas horas ou mesmo todo um dia, pois percebe-se, pela
modéstia da estação, que este é um ramal de província e secundário. E talvez
existam poucas coisas que tornam um ser humano mais impotente e derrotado que a
simples e longa espera. Pois nada se realiza que possa fazer existir o tempo e
flui-lo. E qualquer um que ali esteja, sozinho num banco de estação
ferroviária, parecerá um retirante, ainda que sua aparência denote cuidados até
um tempo recente.
O mais
terrível, porém, neste quadro, é o que não vemos nele.
Pois o
homem fixa um vazio que necessariamente povoa de recordações ou presságios.
Como se este olhar penetrasse também no interior da casa, onde estarão bailando
morcegos e as assombrações que o homem abriga em sua alma, delineando por vezes
seus contornos fugidios: um riso de mulher, uma taça de champagne, uma veste branca
esvoaçante numa valsa.
Lá
fora o vento uiva, enquanto na sala o gramofone arranha essa valsa muito bela,
como se emitida de salões longínquos, tornando indecifrável se tal cena
pertence ao território do que foi perdido ou se do desejo que não chegou a
realizar-se.
Esse tal quadro ganha notoriedade nessa
história porque ele foi visto por dois ilustres artistas da literatura e arte
brasileira. Mário e Oswald de Andrade - os precursores do modernismo
brasileiro. Ironicamente os ilustres vieram de trem como se o futuro tivesse se
encontrado com o passado, como afirmou Mário. Já Oswald, encantado com o
advento e invencionices da modernidade, afirma que faltava ao quadro
locomotivas.
O conto apresenta um pouco da natureza dos ilustres modernistas como por exemplo a
predileção por mulheres de Oswald que no conto flerta com a professora,
enquanto o prefeito discursa. E
apresenta a preocupação do futuro primeiro secretário da cultura do Brasil:
Mário
de Andrade disse aos presentes que a inaugu¬ração de uma biblioteca era sempre
motivo de júbilo. Pois ali, naqueles pequenos quadriláteros impressos e encadernados,
achava-se inscrita boa parte da aventura humana, da qual todos participávamos.
E que uma biblioteca situava uma cidade, por menor que fosse, na fronteira de
todo o Universo.
A maior parte da história será dedicada
para desvendar questões sobre o quadro. Eis algumas delas:
O
rapaz contou que uma dessas histórias era que não se tratava de um pintor, mas
de uma pintora. Uma linda mu¬lher apaixonada que retratara a partida do noivo
para um sanatório de tuberculosos.
Foi aí
que Oswald, sentado um pouco mais adiante, passou a prestar atenção na
conversa. Mário estava dizendo ao jovem que lhe parecia o contrário:
- Pelo
jeito do modelo, meu palpite é que foi ele o abandonado.
-
Nesse caso, talvez fosse a mulher pintora a tuberculosa - ponderou o jovem. - E
teria pintado o quadro de memória lá no sanatório.
..........................
- Já
pensaram que pode ser um auto-retrato?
-
Através de nenhum espelho ... - disse Mário, pensativo, interessando-se pela
jovem, que o ganhou definitivamente com o próximo lance:
- Os
espelhos são interiores e projetam para o pintor um reflexo que contém
simultaneamente a figura dele pró¬prio e da paisagem onde se acha encerrado
pelas recordações.
Mário
ia dizer mais. Ia dizer que talvez um nome adequado para a obra seria:
Auto-retrato do suicida momentos antes de atirar-se sob as rodas da composição.
E que soube que, na Europa, outro jovem artista afirmava que os títulos eram um
elemento tão essencial na pintura quanto a cor e o desenho. Pensando, porém, na
mórbida palidez do jovem ao seu lado, acabou não dizendo nada.
No
final da noite os poetas rejeitaram o convite dos poetas do local para
terminarem a noite num bordel, Mário foi para o seu quarto pensativo sobre o jovem poeta da cidade, a moça inteligente,
a pintora possível e o homem sentado so-zinho na estação ferroviária. Já
Oswald termina sua noite no quarto da professora.
UM DISCURSO SOBRE O
MÉTODO
A história começa com um trabalhador que na
pausa da limpeza da marquise decide sentar-se à beira dela para fumar uma
metade de seu cigarro quando percebe ser o centro das atenções, coisa que nunca
tinha acontecido com ele antes. Era ele o potencial suicida. Mas ele não tinha
pensado nisso até que ali, naqueles minutos ele teve oportunidade de passar em
revista a sua vida e pesar essa possibilidade, afinal de vez em quando todo
mundo pensa nisso.
Eis
alguns motivos:
a) No
seu bolso só havia a carteira profissional
e algumas poucas moedas, insuficientes para tomar o ônibus e voltar para casa.
Costumava andar com a cabeça baixa como uma forma de achar moedas.
b) Gastou o dinheiro da passagem para preencher o vazio no estômago com um
cafezinho, enchendo três quartos da xícara com açúcar, o que lhe proporcionava
umas tantas calorias, embora ele não pensasse assim, em termos de calorias, mas
da diminuição da vontade de comer e, como requinte, que um cigarro, mesmo pela
metade, era bem mais saboroso depois de um café.
c)
quando as condições metereológicas favoreciam dormia na rua perto do serviço.
Só era ruim porque tinha que matar o tempo até a hora do trabalho. Mas, tinha a
vantagem de não ver o que a mulher e os três filhos estariam passando com a despensa vazia.
Tais reflexões e a platéia lá embaixo
gritando pula lhe permitiram descobrir, um
tanto perplexo e até fascinado, que esta era uma alternativa plausível para um
ser humano como ele, em dificuldades, mas de posse de todos os seus movimentos.
E isso lhe concedia uma liberdade insuspeitada e uma leveza, uma vez que um fio
muito tênue podia separá-lo da meta comum à espécie, que é não sofrer. ... Outro, em seu lugar, talvez se magoasse com
o pouco que a assistência dava à sua vida. Mas, como já vimos, ele também se
dava pouca importância, como um coadjuvante muito secundário, quase
imperceptível, de um espetáculo polifônico. Por isso, também jamais se
cristalizara a hipótese de forçar o destino com uma arma na mão, assaltando
pessoas físicas e jurídicas, embora passasse por sua cabeça, como na de todo
mundo, de vez em quando ...
O autor faz uma leitura bem simples da
natureza desse homem que chama a atenção de alguns passantes da grande cidade:
Ele
era um homem que vivia nas imediações do presente, pois o passado não lhe
trazia nenhuma recordação agradável, em especial, e o futuro era melhor não
prevê-lo, de tão previsível. A data de pagamento, porém, era um mar¬co
cronológico ao qual ele se apegava.
Ele
não era burro, apenas não crescera num ambiente propício a aprimorar sua
educação.
E,
como fez Clarice Lispector com Macabéa
ou Graciliano com Vidas Secas, nos apresenta a ignorância e a exploração desses
trabalhadores, mas aqui acrescenta que aquele que o explora é também explorado
por algo muito maior, o capitalismo e a idéia das multinacionais:
O
sujeito que o recrutara por um salário mínimo lhe dissera que ele ainda tinha
sorte, pois o desemprego grassava no país. Era um sujeito que gostava de usar
verbos desse tipo, de dicionário, que lhe pareciam conceder dignidade e pompa
às suas palavras, embora ele não chegasse a materializar em sua mente tais
substantivos abstratos.
Autoridade e importância, sim, eram prerrogativas das quais ele se revestia em
seu cargo, ele ali sentado com a gravata e a palavra, enquanto que os homens
que desfilavam à sua frente permaneciam de pé e mudos, a não ser por certas
respostas quase monossilábicas como "sim senhor", ou "não
senhor" quando se tratava de vícios como a cachaça. Se audiência fosse um
pouco mais qualificada, ele discorreria também um pouco mais sobre os problemas
do país, que provinham do atraso do povo, a desonestidade e incompetência dos
políticos, agravadas pelo gigantismo do Estado. Na intimidade do lar, ele
apontava ainda causas como as condições climáticas, uma colonização de
degredados e a mistura de raças. Ele era um homem da iniciativa privada numa
posição de comando intermediário, embora achasse que ganhava pouco, o que era
amenizado pela perspectiva de subir alguns degraus, desde que fosse perseverante
e duro até o ponto da inflexibilidade. E o nome Panamericana se revestia para
ele de uma aura multinacional, apesar de não ser mais do que isso, uma aura
esperta que, a bem da verdade, contaminava mesmo o homem lá na marquise, em seu
uniforme com aquelas letras gravadas significando para ele alguma coisa que não
entendia bem e por isso respeitava, algo ligado a competições esportivas que o
Brasil disputava.
Alguma coisa imponente, sem dúvida, tanto é que eles eram proibidos, em tese,
de vestir os uniformes fora do horário de trabalho, justamente para evitar que
os empregados manchassem aquele nome envergando-o em botequins ou bancos de
praça e gramados.
É interessante a forma como o autor
apresenta a platéia que assistia ao homem. Incentivavam que ele se jogasse e
quando perceberam que era apenas um
trabalhador vaiaram. Será um retrato de nossa sociedade?
Mas com essa atitude ele se magoou como se
escolher viver fosse para ele a atitude errada. E nesse momento recebeu um
insight de consciência social por perceber que aquelas pessoas lá embaixo eram
iguais a ele e precisavam de sangue e circo. Nesse caso ele seria o espetáculo
e era seu sangue.
Percebeu também que ele exercia um certo
poder sobre a massa. Veja o trecho que reflete essa questão:
E esta
vaia, sim, foi recebida por ele com mágoa, porque os gritos anteriores tinham
sido algo assim como o entusiasmo da arquibancada diante de um atleta e, de
repente, era como se ele houvesse executado a jogada errada. Com o escovão e o
pano nas mãos, e o balde a seus pés, ele virou-se novamente para a platéia e
deu um passo miúdo adiante, para ouvir distintamente os gritos de
"pula", "pula".
O fato
é que ele jamais estivera num palco, um pedestal, e isso afetara sua modéstia.
Não é preciso conhecer a palavra pedestal para saber que as estátuas repousam
sobre uma base. Como também não é preciso conhecer a palavra polifônico para
ouvir as muitas vozes e o conjunto de sons da cidade. E haveria sempre alguém
que pudesse narrar isso por ele, até que as condições sócio-econômico-culturais
da classe operária se transformassem no país e ela pudesse falar com a própria
voz.
E
aqui entra o elemento arte na história, esse homem estava a serviço de um
espetáculo da vida real:
Em
compensação, isso ampliava sua consciência poética, talvez dando razão àqueles
que vêem na arte uma redenção do sofrimento. Aproximava-se a hora do
crepúsculo, uma hora bonita, ele também achava. Para realçar tal beleza na
melancolia, havia a possibilidade desta tornar-se também a hora do seu crepúsculo,
que ele podia fazer belo e significativo. Se pulasse, transformar-se-ia numa
personagem de jornal, um mártir da crise econômica, merecendo mais do que um
simples registro, porque teria conseguido transformar a avenida Rio Branco lá
embaixo, assim batizada por causa de um barão (que ele desconhecia), num
pandemônio, com o soar das sirenes e um carro do corpo de bombeiros que ocupara
um bom trecho do asfalto, o Estado usufruindo da oportunidade de retribuir o
dinheiro arrecadado dos contribuintes.
Havia também
qualquer coisa de existencialista nele, com esse negócio de viver intensamente
um momento limite e dar-lhe um sentido, como alguma personagem de Jean-Paul
Sartre, além de ter sido acometido, há pouco, de uma 'oa dose de náusea
existencial em relação a si próprio e à massa humana. Por outro lado, mesmo em
condições sócio- econômicas mais favoráveis, haveria o absurdo da existência.
Ele era um absurdo. Uma consciência largada no mundo, que podia morrer a
qualquer instante e não era feliz.
Não cedendo ao espetáculo não “doando seus
sangues ao jornal” – ver música do Rappa – o salto, que se opõe a essa história.
O candidato a suicida começa a apresentar algumas possibilidades em sua
vida como progredir no ramo de vidraças
e assoalhos ou até mesmo participar de um programa de espetáculos na TV, ou o
futebol ( alternativa dos sem alternativa no Brasil). No caso dele o futebol
não seria alternativa, pois na infância tinha sido expulso de um time.
O autor também diz que pular poderia ter
sido uma alternativa para voltar aos seios maternos, mas essa maternidade é
apresentada por uma mãe que bate em casa e acalenta nas marquises para
conseguir dinheiro.
Mas o que de fato poderia salvar o homem de
não pular seria o amor de fato. Não sua mulher que tinha com ele, dado aos
desgastes, uma relação de pau e buraco. Quem poderia salvá-lo era a datilografa
envolvida com homens mesquinhos ou casados que sonhava em se relacionar com um
homem que precisasse dela. Mas, como para ter um amor, num momento de desespero
é preciso ter ao menos um pouco de beleza e o homem possuía a feiúra da pobreza
então estava mesmo destinado a solidão. Logo,
a esse homem, só restava apenas o amor de
Deus , mas o Cristo desde que foi inaugurado nunca tinha salvo ninguém
nem mesmo diminuído as enxurradas de água que desciam do seu morro.
Então sem amor, sem Deus o homem abre os
braços por exibicionismo ou imitação trocando seu papel de homem que limpa a
marquise por outro que agradava mais o publico – talvez pela popularidade do modelo
(suicida).
Mas nesse momento os policiais entram para
o seu espetáculo:
- O senhor, desça daí que está preso. O
homem da marquise foi tratado por senhor pela primeira vez.
E do outro lado o corpo de bombeiros também realizando seu
espetáculo transmite uma “mensagem de esperança” para o rapaz de 25 anos que
queria dizer que tudo aquilo não passava de um mal entendido. Que ele estava
ali apenas realizando seu trabalho, mas a verdade é que aqueles minutos em que
lhe foi dado a possibilidade de tirar sua vida muita coisa nele mudou.
Poderia
ter explicado, simplesmente, que estava limpando vidraças e que tudo não
passava de um mal-entendido, era só ver o balde etc., e checar na Panamericana
- Serviços Gerais.
Mas a
verdade é que haviam ocorrido em sua mente alguns fenômenos bastante complexos,
que modificaram a sua visão de mundo e que ele gostaria de expor, inclusive a
si mesmo, mas para os quais não encontrava palavras.
Mas a escolha por dizer “é como se fosse
outro” para um bombeiro que aprendera uma comunicação mecânica e superficial
deu a ele uma nova identidade: louco.
No entanto o narrador o define de modo
diferente:
Uma alegoria social. Social, política,
psicológica e o que mais se quiser. Aos que condenam tal procedimento metafórico,
é preciso relembrar que a classe trabalhadora, principalmente o seu segmento a
que chamam de lúmpen , ainda está longe do dia em que poderá falar,
literariamente, com a própria voz.
Eis o final da história com todos os seus
desfechos e simbologias:
O executivo não apareceu bem na história,
onde, ao contrário do que pensava, também não era sujeito, mas uma reles peça,
primeiro passo numa derrocada que se iniciaria com a sua demissão e terminaria
com o seu suicídio, quando, por um sentimento inato de justiça, viesse a
aplicar em si próprio o mesmo código severo que costumava destinar aos
subordinados. Mas isso já é outra história.
O bombeiro,
nem tanto: implicou com o almofadinha que tripudiava sobre os despojos de sua
ação, que nem mesmo chegara a ser heróica - ele, o veterano de tantos incêndios
e escombros de enchentes -, e disse que o rapaz só ia trocar de roupa no
hospital psiquiátrico, para onde seria levado. Suas palavras também foram
registradas e, mais uma vez, com toda a justiça, a corporação apareceu bem
diante da opinião pública, como um lampejo de esperança de que nem tudo estaria
perdido.
Quanto
à personagem principal da história, o
homem da marquise, ao saber do seu destino, em outras circunstâncias talvez
se sentisse ferido em seu ponto mais vulnerável, o que o teria feito, quem
sabe, aproveitando a vigilância afrouxada, pular enfim para a morte. Não por
causa da perda do salário, propriamente, pois já se encontrava há muito a um
pequeno passo do vazio econômico absoluto. Mas porque perceberia, com clareza,
que a Panamericana tinha sido até então para ele não apenas um emprego, uma
firma na qual trabalhava, mas um invólucro, materializado pelo uniforme, dentro
do qual se enfiava - ele que se sentira, desde o berço, como uma espécie de
coisa oca - e que, se não lhe fornecia uma identidade marcante, o tornava parte
de uma equipe, como no futebol, permitindo que - contrariando o regulamento -
passeasse entre os mendigos do Aterro sem sentir-se um deles, ainda que também
não tivesse nem um puto no bolso.
O
sujeito do corpo de bombeiros - que indiscutivelmente surgia diante dos seus
olhos como a pessoa de maior autoridade moral, dentre todos, ali - falara numa
troca de uniformes no hospital psiquiátrico, do mesmo modo que fizera, a
propósito dele, sem titubear, um diagnóstico preciso: louco. Não havia então
por que desconfiar e ele caminhava
com
uma satisfação até ansiosa para trocar de papel e de equipe.
Na
verdade, ele já se encontrava sob outra jurisdição.
Não a
dos dois homens de branco que chegaram para levá-lo numa ambulância, ele
envergando o uniforme da Panamericana e tudo. A jurisdição sob a qual ele se
encontrava era a do "outro", aquele alguém possível que soprara pensamentos
em sua cabeça, sobre a marquise. E ele previa, intuitivamente, que lá no
hospital deveria haver um pátio onde, flanando à vontade debaixo das árvores ou
sentado num banco, ele teria todo o tempo do mundo para encontrar e conhecer o
tal' 'outro", até que os dois se tornassem a mesma pessoa e falassem com a
mesma voz.
Além de ser uma história da luta de um autor para ver
sua obra ser publicada é também a história de um homem cuja existência foi toda
condensada para a produção de uma obra. É importante ressaltar que a história
da literatura tem exemplos recheados disso como é Balzac, Camões e Fernando
Pessoa.